Garçonete
Por Honório de Medeiros
Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A noite apenas começava. Mas ela já parecia estar muito cansada. Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. “Melhor não”, disse aos meus próprios botões. A fotografia - melhor dizendo, a reprodução dividia com outras, em preto e branco, a atenção dos freqüentadores. “É a que chama mais atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”, perguntei-lhe. “Sei lá”. “Porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra.
Olhei novamente para a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinqüenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma. Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas há algo de aflito no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão exacerbada atenção. Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, contou-nos que não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas a servir de modelo. Tampouco houve produção. Exceto a idéia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo.
Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios profusos. Ela pareceu-me interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, respondeu-me, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficamos com o passar dos anos”.
A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista. Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra. Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, que meu olhar não alcançava.
“Você não se preocupa com sua beleza?”, perguntei-lhe. “Como assim?” “Essa história de você trabalhar a noite toda”.“Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma "miss””. “O problema é que não adiante ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo para me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”.
“Quanto você ganha aqui, por mês?” “Uns quinhentos”. As meninas, as adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a televisão e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve. Ganham em torno de cinqüenta reais por programa. E fazem dois ou três por dia. Dá uns quatro mil por mês.
A conta chega.
“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”, diz-me ela. “Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”. Ela não esperou qualquer comentário meu à sua resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar porque lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente.
Desço a escada e ganho a rua. Vou a busca do carro lembrando de um romance que fez furor quando eu era adolescente: “Sidarta”, de Herman Hesse. Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, contemplando as águas de um rio. Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a busca do oceano, o rio continua no mesmo lugar. A vida passa mas está. O homem vai mas a humanidade permanece. Fim de noite.
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