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quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

MEMÓRIA: RAFAEL NEGREIROS, O INDOMÁVEL


Rafael Negreiros ao lado de Ivonete Paula em evento na ACDP

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Alguns anos atrás, final dos anos oitenta, eu e Franklin Jorge resolvemos lançar um jornal em Pau dos Ferros que cobrisse, para o Estado, todo o Alto Oeste. Seria semanal e iria para as bancas aos sábados.

Foi algo insano, mas naquela época não tínhamos noção acerca da aventura na qual nos meteríamos, e a história da “Folha do Alto Oeste” um dia será contada, através de “perfis”, “sueltos” e “bicos-de-pena”, como somente Franklin Jorge sabe fazer.

O que importa, entretanto, é registrar que Rafael Negreiros foi nosso primeiro e mais importante colaborador e, já no terceiro ou quarto número criou, com a iconoclastia que o caracterizava, a figura do “ombudsman” jornalístico – que a Folha de São Paulo criaria algum tempo depois, se arrogando pioneira, sem saber que no Sertão do Rio Grande do Norte essa experiência já existira. 

Naquele artigo Rafael Negreiros desancou o jornal com tiradas tipicamente suas: ironias cortantes, entremeadas por observações pertinentes e oportunas acerca do exercício do jornalismo, em um artigo que ele enviou para publicação, divertindo-se com nosso possível constrangimento.

Publicamos, claro, e graças a ele fizemos história. 

Talvez tenha sido essa a única vez que mantive um contato mais estreito com ele, apesar de conhecê-lo desde menino. O final da minha infância e início da adolescência – os últimos anos nos quais morei em Mossoró – foi cheio do que chamávamos de “as histórias de Rafael”, casos que eram contados nas esquinas da província e nos deliciavam pelo espírito de rebeldia, sem que disso tivéssemos noção.

Víamos Rafael – pelo menos eu via – como alguém que tinha coragem de tomar posições. Para mim não importava que posições fossem essas, mas, sim, seu destemor com as quais as assumia e defendia, além do torrencial volume de erudição que envolvia cada escrito. 

Anos depois acompanhei, por intermédio de Fernando Negreiros, filho caçula e amigo meu de infância, seu distanciamento da turbulência que o caracterizava. O tempo, domador de homens, cumprira seu papel como sempre deslealmente, porque escolhera para cúmplice anões morais com os quais Rafael Negreiros se recusava a compartilhar a experiência de sorver a vida daquela forma tão sua e tão peculiar.

Era o fim de uma era de titãs em Mossoró. Homens símbolos. Os contemporâneos dos seus últimos dias – imberbes arrogantes e pragmáticos, desletrados e vazios – sequer sabiam, quando o conheciam, ou dele ouviam falar, com que graça esdrúxula, humor derruidor, inteligência aguda, Rafael desmontava as armadilhas da mediocridade cotidiana. 

E hoje, com raras e honrosas exceções, lembram-no por seu talento menor – o humor, a excentricidade – desconhecendo, lamentavelmente, que se a coragem de firmar opinião usando como veículo a iconoclastia tivesse nome, seria, com certeza, Rafael Negreiros.

Existe ainda uma outra faceta de Rafael que eu considero ímpar. Lembra um poema atribuído a Borges que depois soube-se não ser de sua autoria. 

No poema, em tom confessional, o autor ou a autora lamentava-se, olhando para o próprio passado e adivinhando a velhice que chegava a passos largos, não ter aproveitado um pouco mais da vida com coisas pueris. 

Aparentemente pueris, digo eu, como um banho de chuva, mar, quem sabe de rio ou açude, o cavaqueado com os amigos do peito, a piada pronta, o espírito zombeteiro, discussões literárias, gargalhadas... 

Não importa caro autor ou autora, Rafael Negreiros fez isso por você. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

ERCÍLIO PINHEIRO, O GÊNIO ESQUECIDO


* Honório de Medeiros                 

“Um dom dado por Deus”.

Assim Seu Chico Honório começou a me falar de sua amizade com o grande cantador de viola e repentista Ercílio Pinheiro, de quem foi amigo próximo.

Nascido em Luiz Gomes, Rio Grande do Norte, no Sítio Arapuá, no dia 13 de novembro de 1918, e morto prematuramente em 9 de abril de 1958, aos quarenta anos de idade, Ercílio, desde pequenino, versejava batendo em uma lata, “desafiando” sua irmã.

Cedo aprendeu as técnicas de sua arte através de Inocêncio Gato, com quem fez sua primeira cantoria. E cedo, também, veio morar em Mossoró, onde exerceu a atividade de locutor da Rádio Tapuyo até se entregar totalmente à viola.

Seu Chico recorda suas próprias e primeiras cantorias – com Antônio de Lelé, na casa de Zé Honório, em São João do Sabugi; com Justo Amorim, na casa de Cabo Palmeira, patrocinada por Zuza Patrício; com Chico Monteiro na fazenda de Sinhozinho Crisóstomo, a cinco léguas de Alexandria, todas tiradas a cavalo, no novenário de Santo Izidro.

Eu o deixo divagar mergulhado nas lembranças de quase setenta anos atrás. Ele, entretanto, não demorou a repetir: “Ercílio foi uma dádiva de Deus.”

“Hospedei Ercílio e Dimas Batista em Mossoró. Ercílio era um homem correto, digno, honesto. Transpirava honestidade. Morreu dezessete dias antes de você nascer. Foi o melhor cantador de viola do Brasil em sua época. Respeitava todos seus companheiros, mas, os superava em muito”.

“A grande teima, naqueles anos, era qual dos dois cantadores era o melhor: Ercílio ou Dimas. Houve um desafio célebre, na década de cinquenta, entre os dois, um desafio real, não esses de hoje, onde tudo é combinado, que começou de tarde, varou a noite e ganhou a madrugada e somente parou por que o juiz da cidade – Taboleiro do Norte, Ceará – deu por encerrada a peleja, dando-a como empatada”.

“Ercílio era irmão de João Pinheiro e seu sócio no bar “Irmãos Pinheiro” aqui em Mossoró. Esse bar é tradicional ponto de encontro de comerciantes, políticos, advogados, ainda hoje, mas a maioria de seus familiares mora em Taboleiro do Norte, no Ceará. Ele tinha entre um metro e setenta e um a um metro e setenta e seis. Era muito magro. Branco, calvo, cabelos finos, usava óculos com grau muito forte porque era quase cego em consequência de uma miopia. Fumava cigarro de palha ou de fumo cortado”.

“Eu o conheci quando era chefe de trem na linha Mossoró-Sousa. Como era seu admirador, terminamos criando amizade por conta das viagens que ele fazia para ir cantar”.

“Na verdade, devo a Ercílio minha vinda para a Igreja Católica. Um dia, quando já estávamos perto de Mossoró, ele me perguntou: Chico, você já fez sua Páscoa? Respondi-lhe que nunca tinha me crismado, nem feito Páscoa. Ele me ofereceu os livros que eu tinha que estudar e me disse que ia me levar a Frei Luis. Esse Frei Luis era um terror. No dia seguinte fui me confessar com Frei Luis, a mando de Ercílio, e lhe disse que nunca tinha me confessado. Levei um grande carão e ganhei uma penitência de sete padres-nossos de joelho. Até que não foi muito pesada. A segunda confissão foi com Frei Damião. Ercílio foi quem encaminhou. Novo carão e novas penitências”.

“Quando Ercílio vinha a Mossoró eu já sabia: de manhã, lá pelas dez horas, nós nos encontrávamos e a outros amigos na praça do Pax, para conversar sobre cantoria, repente, cantadores, viola”.

“Ele era muito admirado, entre outras qualidades, por ter o que os entendidos chamam de “pulmão limpo”, ou seja, sem pigarro, um canto claro e bonito. Uma vez, não me contive: Ercílio, quem é o cantador que você teme em uma disputa? Não temo ninguém, respondeu. Aliás, continuou, não disputo com ninguém, só comigo mesmo. Mas eu sempre me fiz respeitado na minha profissão. Agora respeito e sou respeitado por Dimas Batista”.

“Assim é o gênio”, concluiu Seu Chico. “Estudou à luz de lamparina, mas seu dom, esse não tem como aprender, nasceu com ele.”

PS. 

“Honório, relendo agora o relato do seo Chico Honório sobre o meu pai o qual encontra-se no livro que escrevi, cada vez mais dou importância as verdadeiras amizades.
Me emociono sempre quando leio ou escuto comentários sobre ele porque me orgulha muito ter tido um pai que só deixou coisas bonitas para que repitam, não só do poeta como do homem. 
Não tive ainda o prazer de conhecê-lo, mas sou grande admiradora do seu pai, ele é uma pessoa encantadora.
Estive com ele antes do lançamento do livro, e ele me prometeu que viria, mas, desistiu em virtude do estado de saúde da sua mãe. 
Logo que for a Mossoró o visitarei e desta feita levarei a viola do meu pai, que ele sempre me fala que tem vontade de revê-la.
Você sabe que esta, foi um presente do seu pai ao meu? Muito obrigada, adorei seu blog. Lua Pinheiro.”

domingo, 28 de janeiro de 2018

ARIANO SUASSUNA E O ARISTOCRATA PELO ESPÍRITO

Ariano Suassuna

* Honório de Medeiros

Acabei de ler a apresentação que Ariano Suassuna, fez da obra de um seu parente, Raimundo Suassuna, acerca da genealogia da família que lhes deu o sobrenome ("Uma Estirpe Sertaneja Genealógica da Família Suassuna"; A União; 1993; João Pessoa). 


Ariano, a quem Raimundo Suassuna pedira que fizesse uma apresentação "simpática", de seu livro, praticamente escreveu um ensaio onde, entre outras coisas, abordou duas coisas que me chamaram a atenção: seu orgulho por ser um "Suassuna"; e o seu conceito de "aristocracia". 

É preciso que se diga que o orgulho de Ariano com o fato de pertencer a essa lendária família nordestina é decorrente da intensa, profunda, ligação que ela tem com o Sertão. 

Ariano Suassuna entende que existe uma aristocracia pelo espírito, que é profundamente diferente daquela resultante de títulos nobiliárquicos. 

Ele estabelece essa diferença confrontando o "homem", com o "cortesão". Neste caso, chega a manifestar, implicitamente, um verdadeiro asco dos títulos comprados, recebidos por favores prestados através de subserviência, barganhados, ou oriundos de qualquer outra forma utilizada por serviçais do poder que caracterizam, em última instância, o comportamento dos alpinistas sociais. 

A verdadeira aristocracia, para Ariano, é aquela adquirida pelo espírito. Essa nobiliarquia é decorrente de uma postura moral ilibada, aliada a um exponencial senso de honra e vocação pública. Aristocrata, então, seriam Albert Schweitzer, Gandhi, Albert Sabin, entre outros.

Titãs morais, verdadeiros cavaleiros da távola redonda, homens sem mácula e sem medo, sempre à disposição dos injustiçados ou a serviço de causas mais que nobres. Individualidades poderosas, que se recusaram ser conduzidas, cooptadas, amordaçadas.

Não aceitam ser a folha que o rio leva para o mar; muito antes, pelo contrário, assemelham-se às represas que domam a marcha das águas.

Essa aristocracia pelo espírito de Ariano é fecundada, em termos ideológicos, por um socialismo que lembra o cristianismo primitivo em sua perspectiva ética.

É como se ele acreditasse que a verdadeira revolução seria aquela promovida através da encampação da dignidade como único fulcro da conduta humana, legitimando-a.

É um contraponto dialético à ética burguesa que exposta a olho nu por suas contradições básicas, mostra a conduta humana amesquinhada por obra e graça da lógica do capitalismo. Esse burguês, caricato, cortesão, jamais diria: "ao Rei tudo, menos a honra", mas, sim, "à elite tudo, até o bolso".

Trata-se de uma crítica ética ao capitalismo. A busca do lucro, revestida pelo fetiche ideológico da "competição", da "livre concorrência", amesquinha o homem que aceita participar de tal jogo.

Um aristocrata pelo espírito, cuja conduta é calcada na honra, no senso de justiça pública, recusa-se a aceitar uma competição cujo resultado final seja a obtenção de um ideal tal como, por exemplo, a obtenção de lucro.

Talvez haja algo de quixotesco na dimensão humana de Ariano Suassuna. É interessante, entretanto, observar o quanto sua concepção filosófica, nesse aspecto, aproxima-se daquela professada por Saint-Exupèry, aristocrata pelo espírito e por genealogia, em seus escritos de "Cidadela", livro póstumo.

E, por outra, do "bushido", o caminho do samurai. Note-se que Yukio Mishima, em seu comentário acerca do "Hagakure", um manual escrito por um samurai, para samurais, critica asperamente os nobres por ele chamados de "aristocratas de contas de despesas". 

Ou seja, tanto para Ariano, quanto para Saint-Exupèry e Mishima, o homem, assim considerado, é aquele que transcendeu o apequenamento, o amesquinhamento inerente à ética do capitalismo, da qual nos fala Max Weber, e tornou-se um aristocrata pelo espírito.

Aristocrata pelo Espírito: Não considerei correto o título "aristocrata do espírito". Difícil dizer por quê. Acho que "aristocrata pelo espírito" expressa com maior clareza a idéia de uma nobreza obtida através do espírito - tudo aquilo que caracteriza o humano, como a razão, incluindo, inclusive, o seu pendor místico. 


* Arte em Poemia - wordpress.com

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

MANOELITO OU DA ARTE DE APRISIONAR O INSTANTE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Alguns anos atrás o antigo Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito.

Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes.

E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor expunham sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos, como o querem alguns filósofos, ditam a forma - jamais o contrário.

Embora seja compreensível a razão do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros de antigas famílias da cidade para o vernissage, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. 

No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias que ele compôs.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas fotos expostas.

Um fato no mínimo curioso para um evento aberto ao público para homenagear a arte - embora também a memória por ele construída - de um artista finalmente e justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor do acontecimento foi ter sido chamado a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado pela família de Manoelito ao município de Mossoró.

Não é à-toa a importância que estudiosos de grandes universidades do sul dão ao acervo.

Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que se perdeu, ao longo do tempo, em decorrência da incúria dos órgãos públicos.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico.

Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinquenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva científica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Entender como Mossoró avançou no tempo é entender aspectos da história das cidades, do Sertão, Nordeste, Brasil, enfim, de nós mesmos.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do cientista, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos. Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida.

E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era exigido o aprisionamento daquele instante específico através de uma fotografia.

Ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em delírios de arte.

Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento.

Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - de que somente artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

COMADRE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com                                      

O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto. Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar.

Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos a fio de sabão e água.

Por fim sua vestimenta: um vestido, cor clara, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco de margens largas, torcido, propositadamente feito para receber e acomodar o saco de roupas.

Pois Comadre, como se pode perceber, era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E estava sempre feliz.

Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos nervosos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa na hora do almoço.

Lá em casa, mais aos sábados que em qualquer outro dia, por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha.

Era o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos. Sempre embalados por uma xícara de café e pão com manteiga, às vezes até mesmo um bolo de ovos.

Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. 

Naquele local, sem que eu me desse conta na época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente.

Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.

Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência.

Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com uma alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo e angustiado. Poderia ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.

Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntei: “Comadre, por que a senhora é tão feliz?” “Meu filho”, respondia-me com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.” “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo?” “E a violência, a fome, as doenças...?” “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.”

E seguia lépida e fagueira, a chistar, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó em toda a minha metafísica.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"SEU" LULA

* Honório de Medeiros          

Ali e acolá, em livros que somente alguns leem, seja por que deliberadamente os procuram, seja por um desses acasos da vida nos quais eles aparecem sem que saibamos como nem muito menos a razão, me deparo com seu nome.

Está posto em um pé-de-página, ou em algum parágrafo, incidentalmente, fugazmente.

Recentemente, ao reler a literatura norte-rio-grandense acerca da saga lampiônica em Mossoró – Raul Fernandes e Raimundo Nonato da Silva – lá estava seu nome, “en passant”, como teria dito, trazendo expressões próprias do jogo de xadrez, que amava tanto, até o cotidiano.

Foi exatamente o jogo de xadrez que me levou a conhecê-lo. Eu e vários de minha geração, a quem ele pacientemente ensinou a jogar. 

Tínhamos em torno dos oito anos e nosso mundo era muito simples: brincar no Colégio Diocesano, brincar no patamar da Igreja de São Vicente, brincar em casa nas raras vezes em que a rua nos era proibida por castigo ou doença. 

E brincar de aprender a jogar xadrez nas tardes provincianas de Mossoró, anos sessenta, na pequena casa onde Lula Nogueira - “Seu Lula” - vivia sozinho com o filho solteirão – uma figura misteriosa a quem quase nunca víamos e acerca de quem falávamos aos sussurros.

“Seu” Lula morava nessa casinha branca com área de entrada diminuta, porta e janela dando imediatamente para a sala, saleta, salinha que era de visita e jantar ao mesmo tempo. Do lado esquerdo de quem entrava dois quartos: o primeiro, com janelão para a rua, era o seu; o outro, do filho.

A sala emendava com uma pequena cozinha dela separada por uma mureta onde pontificava um filtro de água de cerâmica e um varal de madeira de empilhar pratos, meio escondidos por um pano.

Tudo muito normal, tudo muito comum, não fosse uma mesa oficial de xadrez colocada perpendicularmente à janela da sala para aproveitar a luz do sol, na qual ficavam postados, desde sempre, livros e revistas argentinas acerca do jogo, além de majestosas e manuseadas peças tipo “Stauton” para os embates enxadrísticos.

Embora possa me lembrar de “Seu Lula conversando de nossa rua, principalmente na roda de “Seu Napoleão”, onde o escutei, entre perplexo e admirado, certa vez, afirmar enfaticamente que somente morreria após a passagem do ano 2000, tais incursões eram raras.

Certo, mesmo, era passar em frente à sua casinha, fosse manhã ou tarde, e encontra-lo defronte ao tabuleiro de xadrez, mão esquerda com dedos polegar e indicador apoiando a cabeça, cigarro esquecido embora aceso entre os dedos médio e anular, enquanto a mão direita movia as peças para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ou na diagonal, na tentativa de criar ou solucionar problemas enxadrísticos que já haviam lhe granjeado reputação nacional. 

Podia, também, ser o caso de estar, simplesmente, reproduzindo uma partida de xadrez de grandes mestres internacionais.

Depois eu, como os outros, fui embora. O mundo nos esperava. Nunca esquecemos – aqueles que fomos seus alunos – nosso professor de xadrez.

A ele ofereci, em silêncio, minha primeira medalha de ouro nos Jogos Estudantis do Rio Grande do Norte, disputando pela então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte.

Basta, ainda hoje, ver peças tipo “Stauton”, ou mesmo um tabuleiro oficial, que volto no tempo para aqueles dias já longínquos quando um menino magro, tímido, e um ancião de mãos nodosas, emoldurados pela claridade solar que ultrapassava a janela da sala e escandia a fumaça dos muitos cigarros fumados ou esquecidos, jogavam intermináveis partidas nas quais somente a profunda gentileza do professor impedia uma humilhação contínua ao aluno.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

JALES COSTA

 * Honório de Medeiros                               

Em 1982 a eleição para o Governo do Estado do Rio Grande do Norte assumiu, como em todo o País, as proporções de um plebiscito: de um lado, a Democracia; do outro, a ditadura, que aos poucos se desmanchava.

Eu, João Hélder Dantas Cavalcanti, Evandro Borges, Rossana Sudário e outros colegas, tínhamos refundado o Centro Acadêmico do Curso de Direito em uma Assembleia Geral Extraordinária histórica, com a participação maciça dos estudantes que combatiam o bom combate nas esquinas do Campus Universitário, resolvemos levar à frente um projeto ousado: promover um debate entre os candidatos ao Governo do Estado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Conseguimos o apoio do Reitor Diógenes da Cunha Lima para sua realização no auditório central da UFRN.

Junto com João Hélder fomos, pessoalmente, convidar Aluísio Alves e o jovem Prefeito de Natal, José Agripino, que contrariando os conselhos dos seus principais assessores para não enfrentar uma plateia hostil e uma velha raposa com fama de grande debatedor, não hesitou: “vou ao debate!”

Tínhamos, por fim, que escolher alguém para moderar o evento: um professor respeitado pela Academia, pelos alunos, um símbolo do Brasil pelo qual lutávamos nos corredores da Faculdade. Não houve dúvidas. A decisão foi unânime e pacífica. Teria que ser Jales Costa.

Já naquela época Jales Costa era uma lenda entre os alunos do Curso de Direito, pelo seu passado de perseguido político e pós-graduado na Europa – algo ainda bastante incomum – bem como pelo incômodo que causava por suas posições politicamente avançadas, entre seus colegas reacionários ou conservadores. 

Culto, inteligente, extremamente acessível, raciocínio rápido e logicamente irreprochável – sempre a desnudar e levar ao ridículo as obviedades do senso comum -, irônico e bem humorado, nosso professor de Introdução ao Estudo do Direito, profundo conhecedor do pensamento de Hans Kelsen e de História, era muito respeitado entre os alunos do Curso.

Nunca nos deixava na mão. Contávamos sempre com ele para os seminários, debates e painéis que promovíamos.

Dono de um estilo peculiar ao escrever, sintetizava, em si, o lado noturno da poesia e o lado diurno da ciência acerca dos quais nos deu conhecimento Gaston Bachelard.

Uma petição sua era uma aula de raciocino lógico e sintético que aprisionava o leitor e o encaminhava para seu destino final, a conclusão, por uma linha reta, jamais obstaculizada via adjetivos desnecessários e figuras supérfluas de estilo.

Uma aula da saudade, como a que ministrou para a minha turma concluinte, a oportunidade de magnetizar seus ouvintes por intermédio de uma peça literária cujo conteúdo, todo expresso via trechos escolhidos a dedo da poesia canônica, era sempre a oportunidade de expressar seu perfeito domínio da forma por ele escolhida.

Anos depois de ter sido seu aluno tive o privilégio de ser seu colega de escritório. Não tenho como expressar a alegria dessa convivência. Em sua sala, às vezes se tornava difícil deixar de lado a conversa envolvente que o caracterizava, para cuidarmos do ramerrão do dia-a-dia.

Eu, especialmente, aproveitava para agregar conhecimento nas infindáveis discussões filosóficas que se prolongavam até a hora de irmos ao Café São Luís, na Princesa Isabel, centro de Natal, um dos seus hábitos diários.

Mestre e Doutor em Direito pela Sorbonne, jamais surpreendi Jales Costa em um gesto menor no que diz respeito aos títulos que possuía ou aos muitos e especiais amigos que granjeara mundo afora.

Lembro-me que uma ocasião, em um Encontro Nacional de Faculdades de Direito realizado em Natal, cuja maior estrela seria Luiz Alberto Warat, o professor argentino da pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina famoso em todo Brasil, este, ao chegar, nos apresentou uma única exigência: queria ver Jales Costa que, na ocasião, convalescia de uma cirurgia.

Havia sido Secretário de Educação do primeiro governo Sarney que, naquela época, ainda infundia respeito por ter sido da “banda de música” da UDN, mas nunca falava a respeito.

Simples e reservado quanto a sua vida pessoal, nos cativava pela modéstia e altivez nas atitudes. 

Faz parte do folclore ao seu respeito entre nós, que privamos de sua amizade, o apoio incondicional, na época da Ditadura, a uma greve dos professores da Universidade para a qual seus colegas reacionários ou conservadores torciam o nariz: em reunião na Coordenação do Curso propôs, aos que boicotavam o movimento, a renúncia, por coerência moral, ao aumento salarial ao qual fariam jus caso este fosse obtido no final da luta.

Impressiono-me, ainda hoje, com a presença de Jales Costa na nossa memória. Sempre estamos recordando alguma história sua.

Foi-se muito cedo e nos deixou a impressão que sua vida transcorreu como um esquete teatral intenso, marcante, irônico e cheio de humor tais quais as suas tiradas: certa vez, chegando ao escritório, ao lhe perguntar de onde vinha, me disse que fora cortar o cabelo com “Bigode”, famoso cabeleireiro da Natal daquela época. Perguntei-lhe como fora a conversa, me lembrando da loquacidade marcante de “Bigode”. “Ele me perguntou como eu queria o cabelo. Em silêncio, lhe disse. E assim foi.”

Não à toa, às vezes me quedo perguntando a mim mesmo, testemunha da época e deste Brasil, o que nos diria Jales Costa de tudo isso que nos avassala e nos deixa perplexos.

Algo inteligente, claro; iluminador, penso; mordaz, com toda certeza.

A ele, e à falta que nos faz, faço esta singela homenagem.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

AQUELAS NOITES DO SERTÃO



* Honório de Medeiros

Em memória de Compadre Adauto Fernandes.



Naquelas noites do Sertão a escuridão tomava conta da entrada do Sítio onde, à luz do lampião, Compadre Adauto Fernandes - eu, menino, o chamava assim, e ele assim me tratava - reunia, no seu entorno, a família e os amigos para uma xícara de café e ouvirem as estórias que constituíam a antiga tradição oral dos nossos antepassados.

Às vezes havia lua e o mar de prata criava ademanes fantasmagóricos nos arbustos lá fora, no terreiro; ao vê-los instintivamente aproximava-mo-nos um pouco mais do círculos dos adultos e somente relaxávamos quando sua risada cristalina pontuava essas estórias; até então, ele nos deixara, a todos, em permanente suspense.

Decerto nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo e a um desses "causos" em especial. Dizia respeito a alguém do seu conhecimento que para fugir de um compromisso social jurara, através de bilhete, estar, em casa, de repouso e, ao voltar de um forró onde se esbaldara a noite inteira, em outra localidade, mal apeara do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos - ela, sua esposa, jazia nos braços das filhas nos estertores da morte.

Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto arrepiante dos rasga-mortalhas...  

Eram estórias de amor, gestas, ódios de família, tesouros enterrados, botijas, estes descobertos por intermédio de sonhos que precisavam de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente, raptos consensuais ou não, caçadas às onças nas quais somente a habilidade sobrenatural do caçador o fizera escapar com vida, pescarias milagrosas, recuperação da saúde via feitiços e orações de benzedeiras e curandeiros, secas e invernadas desmedidas, justiça divina a corrigir desmandos humanos, feitos com armas, aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado, os segredos da Serra das Almas...

Na forma arrastada com a qual meu compadre contava suas estórias havia uma magia que segurava a atenção: uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa no encadear das frases buriladas com palavras que Luis da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de "matutês", por pura ignorância, uma sabedoria antiga de quem herdara e cultivara o dom de contar uma estória.

O desfecho sempre ensinava uma lição de vida e, não raro, eram belíssimos achados a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira, na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos.

Mas Compadre Adauto Fernandes não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos integrantes daquela raça de titãs que colonizou o Sertão e que nasceu no começo do século XX. Dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, certa vez me confessou por que não votara no candidato a prefeito que entusiasmava, então, sua numerosa família: "meu compadre, se ele não consegue arrumar sua casa, como vai arrumar a dos outros?" Não deu outra. Foi uma desastre. E quando lhe indagávamos, ansiosos, acerca do inverno, tão esperado todos os anos, respondia calmamente: "isso é com Deus, mas a experiência dos antigos diz que..."; quase sempre acertava.

Compadre Adauto Fernandes também era um poeta, em um certo sentido, alguém com o dom de dizer belamente, em momentos especiais, com tiradas de brilho incomum, algo que nunca brotaria, com facilidade, dos nossos corações e mentes. Dele escutei, certa vez, quando falávamos da morte, rompendo um seu mutismo inabitual, que "a morte, para quem fica, é uma saudade sem esperanças". Acaso alguém poderia ser mais preciso e poético ao descrever esse sentimento? De outra, referindo-se aos caminhos e descaminhos de um amigo comum, saiu-me com essa, aludindo à eterna vitória da esperança sobre a razão: "compadre, quem nos puxa mesmo é a mão da ilusão..."

Tantos anos passados, todos nunca esquecidos. Tantas vidas vividas e sua lembrança não esmorece. As vidas, meu compadre, sem homens como você, íntegro, único, profundo, está cada dia mais parecida com o que lhe ouvi dizer várias vezes a esse respeito - "é uma roca sem fuso!".

Arte: ahoradaprincesa.spaceblog.com 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

TUDO É IGUAL, DE MANEIRA DIFERENTE



* Honório de Medeiros


No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, nós todos, derreados na cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde. Estamos no Sertão. 

A mão esquerda controla a nobre cabeça do cavalo. A direita, terminando no dedo indicador esticado, seus quartos, o "motor". Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no final de tarde. Ouvem-se as cigarras. Os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar deixando seu registro sonoro. Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco no qual um idoso "sensei" de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado por todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles. Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios e gritos?

"Uma questão de sinergia", disse-me ele, logo depois. "A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados."

Entendo, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. É algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, é um fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, quase minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

As sequências começam. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, as mesmas pedras onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. Essas imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real. O Claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos seus olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe um leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens...

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de "Go Rin No Sho", o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura... Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há. Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a estratégia para combater dez mil. Mas essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada. O nada...

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Musashi, ele me dissera, antes: "tudo é igual, de maneiras diferentes..."

Então nos dispersamos. Dias singulares, esses. Cada um de nós percebe de forma muito diferente a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf? Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessas "maneiras diferentes" de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã é outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam. É hora de ouvir estrelas...

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.

Arte: razorfoot.wordpress.com

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

HÉLIO XAVIER DE VASCONCELLOS




Honório de Medeiros


                               Quando Hélio Xavier de Vasconcellos assumiu a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Norte, no Governo José Agripino, eu era recém-formado e tinha sido seu aluno na disciplina Direito do Menor, no Curso de Direito da Federal.
                Vivíamos o começo dos estertores da Ditadura.
                Contratado pela Prefeitura Municipal do Natal, um pouco antes, gestão Marcos César Formiga, graças a instâncias de Avany Policarpo, a quem tinha sido apresentado por Eri Varela, para criar e desenvolver uma ação social por nós denominada “Projeto Juventude”, estava entregue à sonolência burocrática desde que a movimentação gerada pelos concursos literários, shows, recitais, teatro de arena, enfim, música, literatura e politização de lideranças jovens, e desenvolvida nos bairros populares, começou a incomodar os vereadores “da situação” e sua hegemonia ambulatorial. Pediram minha cabeça. Avany não admitiu. Esvaziaram-me completamente.
                Hélio, tão logo convidado para a Secretaria de Educação, me telefonou e convidou para fazer parte do que ele chamou de “meu gabinete”: eu, enquanto assessor “especial”, seu Chefe de Gabinete Virgílio Fernandes, hoje Desembargador do Tribunal de Justiça do Rn, e Omar Pimenta, seu grande amigo e companheiro, Coordenador dos Núcleos Regionais e Educação.
                Hélio fez uma gestão notável, apesar de todos os pesares, mesmo torpedeado pela esquerda e direita, incompetentes como sempre, do Rn. A esquerda dizia que ele se vendera; a direita, que não era confiável. Não preciso esmiuçar esse momento da história do nosso Estado. Quem vale a pena saber, sabe. Espero que o tempo lhe faça justiça.
                Daquele período, tirante o trabalho em si, dois momentos foram inesquecíveis, para mim. No primeiro, Hélio me chama em seu Gabinete e diz: “o Governador mandou me chamar para perguntar se era verdade que você estava trabalhando comigo. Confirmei e lhe perguntei se tinha algum problema. Ele me disse que um grupo de vereadores (os mesmos que boicotaram o Projeto Juventude) tinha lhe dito, em audiência, que você era do PMDB autêntico, tinha trabalhado na campanha de Aluízio, e era comunista. Eu respondi que, de fato, você tinha trabalhado na campanha de Aluízio, e integrava o PMDB Autêntico, mas era de minha inteira confiança. Quanto a ser comunista, eu disse se fosse por ser comunista, o primeiro a ter que sair era eu, que não negara esse fato quando recebera o convite para ser Secretário. Zé Agripino riu e mudou de assunto”.
                Eu fiquei até ir para Brasília, integrar o Governo da Nova República.
                O segundo momento foram vários, muitos, sempre com o mesmo feitio: terminava o expediente, tarde da noite, e lá íamos Hélio, Omar, eu e Virgílio tomar uns dois ou três uísques nos bares da noite, a repassar o presente, projetar o futuro, e rir à bandeiras despregadas das estórias que o “Vermelhinho”, como o chamava Virgílio, contava com uma maestria insuperável, “causeur” de primeira, como o era.
                Duas delas, de tão boas, eu lamento muito não poder contar aqui...
                Dos professores que tive, alguns foram muitos importantes; poucos, essenciais; muito poucos, além de essenciais, eu trago em meu coração com respeito, admiração e afeto.
                Jales já se foi. Hélio é um deles.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

"ATÉ QUE TUDO CESSE, NÓS NÃO CESSAREMOS!"


 
 
Honório de Medeiros

                               Em 1979 entrei no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Vinha do Curso de Matemática Pura, onde a mim faltara vocação. Ainda estávamos em plena ditadura militar. Críticas ao Governo ainda eram feitas com muito receio. Não fazia muito tempo que a repressão implicava em tortura e desaparecimento. No Planalto, Figueiredo iria substituir Geisel e continuar a “abertura política lenta e gradual” timidamente iniciada por seu antecessor, sob a batuta de Golbery do Couto e Silva.
                        O Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, do Curso de Direito, cujo grito de guerra era “até que tudo cesse, nós não cessaremos” fora extinto em anos anteriores, assim como todos os outros, e substituídos por Diretórios Acadêmicos que representavam cada Centro Universitário. A razão era óbvia: era muito mais fácil os órgãos de repressão controlarem diretórios acadêmicos, em bem menor número, que centros acadêmicos, um por cada curso existente na Universidade.
Nos corredores do curso um grupo de estudantes, dos quais eu fazia parte, se reunia habitualmente para discutir política, principalmente a participação no processo que se desenrolava à conta-gotas Brasil adentro, e livros, muitos livros. Tínhamos em comum o hábito da leitura, o amor pela discussão, o interesse pela política.
Em certo momento, logo no começo do curso, resolvemos dar um passo além: refundarmos o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, de tantas e gloriosas tradições.
Realizamos duas notáveis Assembléias Extraordinárias para as quais todos os alunos do curso de Direito foram convidados e compareceram em massa. Contávamos, também, com a simpatia de alguns poucos professores do curso, principalmente Jales Costa, de saudosa memória pelo exemplo, cultura e empatia com seus alunos.
Ressurgiu, então, o Centro Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte! Seu primeiro presidente, após a refundação foi João Hélder Dantas Cavalcanti. Tive a honra de ser o segundo, dessa vez com disputa eleitoral.
O Centro Acadêmico viveria momentos impressionantes logo após seu retorno às atividades: fizemos o primeiro debate, no Brasil, entre candidatos a Governador do Estado, em pleno auditório da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cedido, para nosso espanto, pelo Reitor à época, professor Diógenes da Cunha Lima, justiça seja feita. O evento foi noticiado pela grande imprensa brasileira. Em noite memorável, Aluizio Alves e José Agripino Maia debateram, sob a mediação do Professor Jales Costa, acerca dos destinos políticos do Brasil e do Rio Grande do Norte naquela que seria a primeira eleição direta para Governador do Estado após o Golpe de 64.
Aqui ressalvo a conduta do então Prefeito de Natal, por eleição indireta, José Agripino Maia. Eu e João Helder fomos a sua residência para convidá-lo. Sabíamos que todo seu “entourage” era contra sua ida ao debate. Fizemos o convite, ponderando acerca de quão ruim seria para sua imagem as fotos de sua cadeira vazia em pleno auditório lotado, e quão ruim seria para a democracia que estava ressurgindo sua negativa em participar. Jussier Santos, um dos seus secretários municipais, fez uso da palavra se colocando contra a participação de José Agripino, alegando que toda a platéia presente seria, com certeza, claque de Aluísio Alves.
José Agripino, entretanto, não hesitou e confirmou sua presença. Ponto para nós e para a democracia.
Não paramos por alí. Dias depois colocamos para debater entre si, sob minha mediação, os dois candidatos principais ao Senado da República pelo Rio Grande do Norte: Roberto Furtado, pela oposição, e Carlos Alberto de Souza, pela situação. Carlos Alberto levou uma claque disciplinada para aplaudi-lo, liderada por Eri Varela, um seu assessor. A noite foi tumultuada, mas tudo terminou acontecendo da melhor forma possível.
E continuando o exercício de ousadia, realizamos vários encontros nos quais foi discutida abertamente, com a presença maciça de estudantes e professores, a relação entre marxismo e Direito. Para um desses debates foi convidado, especialmente, o ex-Governador Cortez Pereira, naquele momento ainda cassado em seus direitos políticos. Não tenho certeza, mas Cortez Pereira uma vez me disse que tinha sido a primeira manifestação pública dele desde sua cassação.
Por fim, e não menos importante, fizemos também o primeiro debate, no Brasil, entre os candidatos a Reitor à sucessão do Professor Diógenes da Cunha Lima, mesmo que o pleito viesse a ser, como de fato o foi, realizado de forma indireta. Todos concorrentes compareceram. Lá estiveram Pedro Simões, Dalton Melo, Jales Costa, Genibaldo Barros e Lauro Bezerra.
Resgato essas lembranças graças ao impacto das manifestações que estão ocorrendo no Brasil e que, segundo minha avaliação é muito importante politicamente. Posso estar enganado, mas acredito que mudanças reais estão acontecendo. Desejo ardentemente que o povo enseje as mudanças que o Brasil precisa, principalmente no que diz respeito ao combate feroz e determinado contra a corrupção.
E tendo resgatado essas lembranças aproveito para homenagear meus companheiros de luta daquela época: João Hélder Dantas Cavalcanti, Evandro Borges e Rossana Sudário, em nome dos quais abraço todos quanto estiveram conosco naquelas gloriosas manhãs na sala F1 do Setor V, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, gritando, juntos, felizes, ansiosos para mudar o Brasil, “até que tudo cesse, nós não cessaremos”.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

MANOELITO E A ARTE DE APRISIONAR O INSTANTE

Honório de Medeiros

Algum tempo atrás o Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito. Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes. E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor diziam de sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos como o querem os filósofos ditam a forma - jamais vice-versa.

Embora seja compreensivo a causa do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros das antigas famílias da cidade para o vernissage, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias que ele compôs.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas fotos expostas. Um fato no mínimo curioso para um evento aberto ao público para homenagear a arte - não a memória por ele construída - de um artista finalmente justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor do acontecimento foi ter sido chamado a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado pela família de Manoelito ao município de Mossoró. Não é à-toa a importância que estudiosos das grandes universidades do sul lhe dão. Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que já se perdeu em decorrência da incúria dos órgãos públicos.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico. Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinqüenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva científica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do cientista, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos. Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, os estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida. E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era exigido o aprisionamento daquele instante específico através de uma fotografia.

Mas ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em delírios de arte. Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde nela está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento. Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - na qual somente os artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

domingo, 16 de janeiro de 2011

COMADRE

cidoportugues.blogspot.com

Honório de Medeiros

O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto. Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar. Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos a fio de sabão e água. Por fim sua vestimenta: um vestido, cor clara, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – que ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco de margens largas, propositadamente feitas para receber e acomodar o saco de roupas.

Pois Comadre, como se pode perceber era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E estava sempre feliz. Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos nervosos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa na hora do almoço.

Lá em casa, mais aos sábados do em qualquer outro dia por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha. Era o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos. Todos embalados por uma xícara de café e pão com manteiga.

Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. Naquele local, sem que me desse conta naquela época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente. Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.

Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência. Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com aquela alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo e angustiado. Poderia ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.

Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntei: “Comadre, por que a senhora é tão feliz?” “Meu filho”, respondia-me com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.” “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo?” “E a violência, a fome, as doenças...?” “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.” E seguia lépida e fagueira, a chistar, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó em toda a minha metafísica.