quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O TEMPO PASSADO E O TEMPO PRESENTE (MISSÃO VELHA)


* Honório de Medeiros

A memória do Coronel Isaías Arruda insiste em vencer o tempo e a apatia geral do nordestino com sua história, e aos poucos o transforma em mito na cidade que tomou pelas armas e onde exerceu seu poder de senhor feudal até que a morte viesse buscá-lo da mesma forma como viveu: violentamente.

Continuei relatando para Antônio Gomes o resultado da viagem ao Cariri.

“Estamos em Missão Velha”, disse-lhe. “Enquanto vagávamos no entorno da pequena praça principal fomos abordados e depois apadrinhados por Esly Almeida Melo, da velha aristocracia rural caririense e sua tradicional atenção sertaneja".

"Seu Esly, aposentado, filhos criados e no mundo, descia ou subia em busca da Matriz – depende do referencial – a pé, limpo, perfumado, barba feita, cabelos bem penteados acomodados na brilhantina, bem vestido, ‘puxar um terço’."

"Simpático, conversador, piadista, tornou-se nosso cicerone, historiador informal e foi o maior responsável pela obtenção, quase milagrosa, através das mãos da professora e escritora Célia Magalhães, de uma fotografia dos anos 20 onde o Coronel Isaías Arruda, ao lado de vários outros, todos de paletó claro, diferencia-se pela altura, a trigueirice e o porte altivo."

"Ali estava aquele que foi, juntamente com Massilon Leite, o responsável pela invasão de Mossoró por Lampião".

"Célia Magalhães é bem jovem, foi Secretária de Educação de Missão Velha e escreveu acerca dos ex-prefeitos da cidade. Ela e seu Esly nos levam até a senhorial residência de Luís Jucá Arraes Maia, primo do ex-governador de Pernambuco, já falecido, Miguel Arraes."

"Luis Maia é considerado o “intelectual” de Missão Velha. Já quase não fala e anda, vítima de uma trombose."

"Mostra-nos sua coleção de selos e moedas antigas avaliada, por baixo, em mais de seiscentos mil reais. Já foi procurado por colecionadores do mundo inteiro". 

"Enquanto ele se comunica precariamente com o Professor Pereira, que nos acompanha desde Cajazeiras, tento invadir com meu olhar curioso os segredos daquela casa mais que centenária, cercada por construções muito antigas – sobrados geminados com janelas avarandadas que se abrem afastando-se cada banda para um lado, e separadas da rua por uma grade de proteção de ferro batido ornamentada com flores-de-lis estilizadas."

"Nada consigo. O sertanejo abre todas as portas de sua casa aos estranhos bem recomendados, mas conservam fechadas, a sete chaves, as portas de sua intimidade."

"Mesmo assim posso compreender até fisicamente a dor da castelã quando me fala que há mais de quarenta anos está desterrada ali, em Missão Velha, longe de Fortaleza, da família, dos filhos que se foram, do bulício da cidade grande, do mar, de tudo quanto ama, pois há o dever de ir, até o fim, no compromisso que assumiu ao pé do altar."

"‘A pior fase’, disse-me ela, ‘foram os três anos que passei enterrada no sítio.’"

"Como não compreender essa sensação que acomete aqueles condenados ao ritmo lento da cidade pequena – cinza vida cinza – que anseiam vivamente pela febril velocidade da cidade grande?"

"O verde do Cariri, um verde que se destaca pelo imenso contraste com o semi-árido dos carrascais, poeira, sol-a-pino, grotões que havíamos deixado um pouco antes..."

"A mansão feudal de Isaías Arruda, lá passamos, na qual há, inclusive, sala-de-armas e passagem subterrânea. A estação de trem, palco de tantos episódios históricos, similar a de Aurora, onde o Coronel Isaías tombou ferido de morte após levar, estranhamente sem reagir, embora estivesse armado, vários tiros desfechados por inimigos políticos seus."

"O prédio da Prefeitura por ele construída. A misteriosa história acontecida na casa onde hoje funciona a Secretaria de Educação. Os escombros de um passado já longínquo, mas presente, ainda recendendo a pólvora, sangue, baraço e cutelo da aristocracia rural sertaneja firmada em um ancestral código de honra. Os ‘cabras’, os jagunços, os cangaceiros. A Igreja legitimadora e terrena, também profana, com seus representantes abençoadores de bastardos e assassinos, semeadores de filhos e ilusões, testemunha engajada da vilania com a qual o povo, deserdado de clima, de poder, de bondade, carrega consigo, como última esperança, o paraíso que lhe foi prometido e do qual não se sabe se realmente lhe vai ser entregue.”

"O tempo passado e o tempo presente, confundidos na imagem que Missão Velha nos deixa na memória, quando lhe damos nosso adeus, e vamos em busca de outros fragmentos da história do Cariri, dos nordestinos sertanejos, dos homens, enfim".

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

LÓGICA INFANTIL

Bárbara

* Honório de Medeiros

Guardei várias histórias de Bárbara, minha filha, quando ela era criança. Uma delas, de quando tinha cinco anos, segue abaixo 

A mãe passa em frente à Escola Doméstica, em Natal, e Bárbara diz:

- Mamãe, me mostre a Escola Doméstica que eu quero ver um gatinho.

- Um gatinho?

- É mamãe, o gato não é um animal doméstico?

- Não é isso, minha filha. Esse doméstico aí não tem nada a ver com bicho. Animal doméstico quer dizer que pode ser criado dentro de casa, como o cachorro e o gato.

- Certo.

- Quando entraram no elevador, em casa, Bárbara se virou e comentou com a mãe:

- Mamãe, então eu sou um animal doméstico!

- Como assim, minha filha?

- É, mamãe. Eu não sou criada em casa? Então eu sou um animal doméstico. Tem gente que é criada na rua...

terça-feira, 31 de julho de 2018

O TEMPO, ESSE DESTRUIDOR DE LEMBRANÇAS

* Honório de Medeiros

Para Seu Chico Honório, onde ele estiver.


O tempo, esse destruidor de lembranças, nem sempre consegue êxito quando é confrontado com os vestígios físicos com os quais se confunde a imagem de alguém muito amado. É isso que concluo enquanto passo em frente à Igreja de São Vicente e dobro à direita, vindo pela Alberto Maranhão, do centro de Mossoró, cumprindo o percurso tantas vezes trilhado em minhas vindas de Natal para visitar Seu Chico Honório e Dona Aldeiza, como são conhecidos meus pais na cidade onde nasci. 

Assim o é porque nada me evoca com tanta firmeza a lembrança do meu pai quanto essa capela, destinada a ser um bastião fundamental na defesa da cidade ante o ataque de Lampião no longínquo ano de 1927, na qual ele, durante tantos anos, exerceu com a lhaneza no trato e a humildade no coração que o caracterizavam, o ofício de Ministro da Eucaristia.

Nossa história, a história de minha família com essa Capela é antiga e densa. Minhas lembranças de menino são permeadas de acontecimentos nos quais a Igreja, seu patamar onde nós, as crianças dos arredores, nos reuníamos, durante o dia ou à noite, para todos os tipos de brincadeiras possíveis e imagináveis em uma cidade cujos delinquentes eram todos conhecidos pessoais do Delegado e da população; seu interior, onde, à luz mortiça das velas, entoávamos as ladainhas cantadas na festa de Santo Antônio e aspergíamos os presentes com o incenso farto derramado dos turíbulos; as festas religiosas, as missas, tudo isso era o ponto central, o começo e o fim, o alfa e o ômega da nossa vida ainda fortemente delineada a partir dos laços invisíveis das relações familiares por ela albergados. 

Meu pai nos acordava cedo, a mim e a minha irmã, aos domingos, para nos aprontarmos e seguirmos para a missa na capela, que ele acolitava, juntamente com outros fiéis. Minha mãe, por sua vez, uma das responsáveis pelo coro, também compunha o grupo de moradores do entorno da Igreja que a faziam funcionar com a regularidade própria da face terrena dessa instituição milenar, a Igreja, sem a qual não é possível entendermos nossa civilização ocidental e cristã.

Durante a semana, noite após noite, reuníamos-nos sob sua inspiração para rezar quando o dia chegava ao fim e o sono nos aguardava, e, então, agradecíamos a Deus por tudo de bom que havíamos conseguido no tempo passado, desde a alimentação farta à saúde em ordem, seguido das intercessões para a obtenção de graças, mesmo que somente a manutenção da rotina feliz em que vivíamos.

Seja durante a semana, seja nos domingos, seja em que dia fosse, ainda hoje, a presença de meu pai, manso, discreto, polido, humilde, prestativo, com sua fé simples, inquebrantável, onipresente, foi e é uma referência moral da qual não me afastei, nem me afasto, e que norteia os exemplos e as conversas com os quais cuidei, e cuido, com as limitações próprias, da educação dos meus filhos. No meu casamento, um casamento feliz em todos os aspectos, o exemplo de sua relação com minha mãe, o respeito mútuo, o carinho permanente, a parceria sempre reiterada quando surgiam os obstáculos que a vida insistia em nos apresentar, estava sempre presente.

Conto para meus filhos, sempre que posso e a ocasião é oportuna, o pouco que sei de meu pai. Falo para eles de sua vida dura, no início; estranha, sob muitos aspectos; de renúncia, sempre, inclusive a uma parte de si, sua arte, o repente, a viola. Conto-lhes acerca de sua jornada espiritual, de sua crença ingênua no começo de sua vida adulta. Depois lhes recordo os anos de entrega à Igreja Católica, aos seus fundamentos, aos seus princípios, a tudo quanto, ao longo dos séculos, a manteve presente na história do Homem.

E quando, ao ir para Mossoró, entro na cidade, desço até o centro, pego a Alberto Maranhão, e passo em frente à Igreja de São Vicente, ao me lembrar dele, e de Dona Aldeiza, parece que os vejo: ele ao lado de Padre Sátiro Dantas, atento, enquanto este oficia; ela, nos primeiros bancos, defronte ao altar, no qual se postava o coro.

Então o passado se confunde com o presente e a Igreja de Deus, a Igreja de São Vicente, tão presente na nossa história pessoal, ajuda-me a vencer o tempo, pois resgata, com sua presença ante meus olhos, minha vida de menino e adolescente, e a imagem sempre tão cara de Seu Chico Honório e Dona Aldeiza em minha memória.

AS MULHERES SERRANAS


As serras

* Honório de Medeiros

Ah, as mulheres da Serra, frescas, em flor, sem nada que as enfeite exceto a simplicidade. Elas vestidas de simplicidade. “Uma carne sadia, abundante e rosada”, como descreve Proust, em “No Caminho de Swann”. Nada artificial, nelas. Não há um jogo sequer nas suas atitudes para com os homens. Ou com as mulheres. Beber, comer, amar, é tudo tão natural! Swann “prefiria infinitamente à beleza de Odette aquela de uma pequena operária fresca e rechonchuda como uma rosa, de quem se enamorara...” Em contraposição eis o universo urbano recheado de mulheres excessivamente enfeitadas, com a mente tomada por negaceios e dissimulações, no afã infindável de seduzir: o óculos de sol, a roupa de grife, o olhar tecnicamente distante, o celular através do qual são armados os lances do jogo. Por quem, no final, Vaumont se apaixona em “As Relações Perigosas”, de Chorderlos de Laclos, senão pela viúva Merteuil, por sua inteireza de sentimentos e ações, distante de qualquer dissimulação, a pureza da mulher que ele julgara tão fácil seduzir e descartar?