sexta-feira, 3 de outubro de 2025

UMA OBRA ESSENCIAL ACERCA DA ELITE POLÍTICA



Gaetano Mosca (1858-1941)


* Honório de Medeiros


Tempos atrás, recebi La Clase Política, de Gaetano Mosca, com seleção e introdução de Norberto Bobbio, edição popular (livro de bolso, trocando em miúdos) do “Fondo de Cultura Económica” de 1984, México, após procura na qual se alternavam períodos de calmaria e outros de busca frenética.

Desconfio, claro, muito embora sejam reais as dificuldades de encontrar esse texto – tomo como prova o fato de somente agora conseguir encontrá-la – que era para ser assim mesmo, ou seja, não me seria fácil adquirir, manusear, analisar e criticar metodicamente, em seus detalhes, a obra que Gaetano Mosca, já octogenário, classificava como “seu trabalho maior”, “seu testamento científico”, e à qual dedicara suas melhores energias durante quarenta anos, como nos lembra Norberto Bobbio em sua introdução.

Isso porque dou como certo que os livros têm vida, e muito mais que adquiri-los, somos, por eles, adquiridos, tal como nos leva a crer Carlos Ruiz Zafón em seu A Sombra do Vento, quando nos apresenta ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, localizado em misterioso lugar do centro histórico de Barcelona, fantasia, bem o creio, nascida de suas leituras do imenso Jorge Luis Borges e de seu maravilhoso conto “A Biblioteca de Babel”, em Ficções.

E, em tendo vida, e vontade própria, houve por bem A Classe Política brincar comigo de gato e rato, sem dúvida por considerar que meus arroubos juvenis criticando Marx, nos corredores da Faculdade de Direito, firmado em leituras ainda pouco digeridas, da obra de Karl Popper e Raymond Aron, não mereciam ainda o respaldo final de uma metódica construção teórica da qual resultava a hipótese – que assombrava meus pensamentos em seus contornos imprecisos – de que há uma elite dominante presente em todas as sociedades, sejam quais sejam elas, seja qual seja a época.

É como nos diz a apresentação do livro, em sua contracapa: “Mosca considera que hay uma clase política presente em todas las sociedades. Gobiernos que parecen de mayoría están integrados por minorias militares, sacerdotales, oligarquias hereditárias y la aristocracia de la riqueza o la inteligencia”.

Percebo, portanto, que A Classe Política aguardou o momento certo: quando fosse possível, na medida de meus esforços, compreender que há uma relação entre sua idéia central, a Teoria da Evolução de Darwin - naquela vertente anatematizada da Sociobiologia – e a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que me permitisse iniciar, para mim mesmo, a descrição do fenômeno jurídico em sua totalidade, certo ou errado, seja como sistema de normas jurídicas, seja como fato social.

Assim, restou ler, ler de novo, e reler, o que escreveu, acerca da “elite política” esse italiano nascido em Palermo, em 1º de abril de 1858, falecido em Roma em 8 de novembro de 1941, aos oitenta e três anos.

Foi professor de “História das Doutrinas Políticas” na Universidade de Roma e Docente Livre em Direito Constitucional na Universidade de Palermo. Ensinou, também, na Universidade de Turim, foi Deputado, Senador do Reino, Subsecretário das Colônias, e colaborador do Corriere della Sera e La Tribuna.

Em 19 de dezembro de 1923 se retirou da vida política ativa e se dedicou exclusivamente a seus estudos, em particular no campo da história das doutrinas políticas.

É preciso ler, com especial atenção, um capítulo denominado “Origens da doutrina da classe política e causas que obstaculizaram sua difusão”, no qual Mosca credita o pouco conhecimento da “teoria da elite política” à hegemonia do pensamento de Montesquieu e Rousseau.

Hegemonia essa, ouso dizer, que serve como uma luva feita à mão na estratégia adaptativa de aquisição e manutenção do poder empreendida pelas elites dirigentes após a Revolução Francesa de 1789, que culminou, no campo do Direito, na inserção, em Constituições Federais, de princípios jurídicos difusos que se prestam a serem interpretados de acordo com as conveniências de quem os interpreta.

Curioso é que muito embora eu, finalmente, tenha conseguido pôr minhas mãos nessa obra, ela ainda não me veio por inteiro. Trata-se, no caso, de uma seleção de textos feita por Bobbio. Tanto que, no final, há um capítulo no qual se apresenta o resumo dos capítulos omitidos. Nestes, há uma refutação das doutrinas do materialismo histórico e da concepção segundo a qual deveriam chegar ao governo os melhores, tema retomado por Karl Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, onde critica Karl Marx e Platão.

Ou seja, a busca continua.


@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

domingo, 28 de setembro de 2025

PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: O DIREITO ENQUANTO FENÔMENO DO PODER POLÍTICO

 




*Honório de Medeiros


O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: O DIREITO ENQUANTO FENÔMENO DO PODER[1] POLÍTICO[2][3]

 

1)  A sociedade[4] é constituída por um conjunto[5] de fatos[6] que se entrelaçam[7]. É possível identificar vários desses fatos específicos: 

a)  O fato econômico;

b)  O fato religioso;

c)  O fato político;

d)  O fato jurídico, etc. 

2)  Há um método para estudar o conjunto desses fatos: o científico. Aqui se pode pensar em monismo metodológico[8], ou seja, há somente uma ciência[9], e esta pressupõe: 

a)  Um Objeto;

b)  Uma teoria acerca do Objeto;

c)  Uma testabilidade. 

3)  A ciência que estuda o conjunto dos fatos sociais é a Sociologia. O ramo da sociologia que estuda o fato jurídico é a Sociologia Jurídica. 

4)  O fato jurídico pressupõe o campo jurídico, portanto o campo jurídico possui uma lógica (complexo de causas) que lhe é externo e que determina seus pressupostos estruturais (complexo de causas) internos (interior do campo jurídico). Para que se perceba essa realidade imagine-se um jogo de xadrez: a lógica externa (complexo de causas) estabelece quem são os participantes, qual é o jogo, quais são as regras; a lógica interna (complexo de causas) estabelece como vai acontecer o jogo a partir dessas premissas estabelecidas exteriormente. Para que se perceba a dependência da lógica interna em relação à lógica externa basta que se imagine a possibilidade desta impor novos jogadores, novo jogo, novas regras[10]. 

5)  Essa lógica interna, campo específico da dogmática jurídica ou teoria geral do direito é de natureza técnica: diz respeito à construção dos conceitos próprios internos do campo jurídico, tais quais o de validade da norma jurídica, eficácia, hierarquia das normas, normas coativas, normas imperativas, normas permissivas, normas atributivas, bem como produção da norma jurídica, interpretação e discurso legitimador do campo jurídico ou legitimação retórica[11]. 

6)  A sociologia política conjectura que a lógica externa que engendra o campo jurídico[12] é resultante de relações de domínio (Poder[13] Político[14])[15]. A comprovação advém da história: a história das normas sociais e das normas jurídicas é a história da imposição de regras aos dominados pelos dominantes (surgimento do Estado – a norma jurídica abstrata e geral substituindo a regra social concreta e casuística). 

7)  Nesse sentido o caráter hegemônico de produtor da norma jurídica que é próprio do Estado e que a história comprova, inclusive no que diz respeito ao fenômeno da recepção. Caráter de legitimação da norma jurídica porque produzida pelo Estado para mascarar a ilegitimidade do próprio Estado. 

8)  Sendo o Estado[16] algo que resulta da Sociedade, e sendo esta uma realidade na qual o conflito, a discordância, a divisão, a luta de classes, o confronto grupal, o dissenso, é a essência, aquele somente pode surgir da imposição da vontade dos que detêm o Poder Político sobre os subjugados. 

9)  As relações de domínio se externalizam[17] através de: 

a)  convencimento: via propaganda (mídia), retórica (O Estado Sedutor)[18]; 

b)  constrangimento: através do poder econômico; 

c)  sedução: carisma; 

d)  subjugação: força. 

10)             No que diz respeito à subjugação o Poder Político se configura através de normas jurídicas produzidas através do aparelho estatal ou por este reconhecidas. Aparelho estatal que pode ser o Poder Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. 

11)             Sendo o Poder Político a fonte do Direito, manifesta-se por intermédio da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica[19]. Podemos contar uma história do Direito a partir dessa perspectiva: como se produzia, interpretava e aplicava a norma jurídica na era arcaica, antiga, medieval, moderna, contemporânea? Quanto à Norma Jurídica, temos que analisar o conceito de governo que lhe é inerente (território, população e governo); temos que expor e criticar suas características: soberania; tributação; força policial independente que pode agir contra o povo a quem, até então, estava restrito a posse de armas para a defesa comum da sociedade; a norma jurídica geral e abstrata em contraposição à norma social o mais das vezes concreta e específica; a burocracia; a centralização. 

12)             A ação política se exerce através do Direito. Neste caso o Direito é um epifenômeno do Poder Político.  

13)            O Poder Político é o parâmetro fundamental: está por trás de tudo, engendrando as soluções para transpor os obstáculos que possam surgir, ou seja, estratégias adaptativas. Não há vazio no espaço social. O Poder Político está sempre presente, havendo Estado. Mudamos seus titulares porque o Poder Político muda de dono de acordo com fatores tais como competências circunstanciais. Tudo é prolongamento ou instrumento do Poder Político.  

14)             A relação entre a esfera econômica e a esfera política é um problema de delimitação de campos, de exercício do poder político por distintos meios. A relação entre moral e política é um problema de distinção entre dois critérios de avaliação de ações. A relação entre política e direito é um problema de interdependência recíproca ficando, entretanto, o poder político com a última palavra. 

15)             Somente há direito onde houver em última instância a força. Não há outro direito senão aquele estabelecido direta ou indiretamente reconhecido pelo poder político (Thomas Hobbes). 

16)             É possível a redução do jurídico para o político, e do político para a teoria da evolução de Charles Darwin. É possível a redução do econômico de Marx para o poder político através de Darwin. É possível reduzir o Poder Político à teoria da evolução de Darwin.            


[1] Poder: capacidade que alguém possui de determinar a conduta de outrem.

[2] Política: conjunto de ações que objetivam a conquista do Poder (último, supremo ou soberano) em uma comunidade de indivíduos por sobre um território.

[3] Poder Político: poder exercido na Polis (cidade) ou seja, comunidade autosuficiente de indivíduos que convivem em um território (Estado).

[4] A sociedade é uma malha cujas linhas são as relações de domínio. Há uma lei natural social – a lei da evolução – à qual pode ser reduzida a conduta humana e que dá ao ser humano o aparato físico/mental para tecer as condições de domínio. Um fato social, qualquer que seja ele, é um conjunto de ações específicas de domínio. No modelo tradicional, o Estado legitima a norma jurídica – mas observemos que ele cria as regras que dirão quando estas são legítimas. Até onde a história pode alcançar o homem viveu em sociedade. Ele é uma anima social antes de ser um animal. Sempre houve, existindo sociedade, o fenômeno do Poder. Talvez, inclusive, não seja possível o primeiro sem o segundo, devido ao instinto de sobrevivência – sobreviver é mais fácil em grupo, e onde houver grupo haverá Poder, como demonstram todas as pesquisas realizadas em Psicologia Social. O Estado, entretanto, pertence a um estágio ulterior de civilização. Neste caso há ingredientes que exigem a presença de uma força armada que aja internamente contra quem não aceita a submissão, bem como uma legislação geral e abstrata para a gestão do território e de uma população, além de funcionários para cuidar dos impostos e da lei – a burocracia. O Estado é, assim, uma resposta adaptativa da espécie humana a um desafio de Poder.

[5] Os fatos teleológicamente encarados, ou seja, com um propósito específico: marxismo; darwinismo. Aparentemente sem um propósito espefício: “autopoiesi”. Através de Charles Darwin poderíamos pensar em uma evolução do mais simples ao mais complexo, sempre produzindo condições mais favoráveis de sobrevivência aos mais aptos, embora não se possa afirmar que essa evolução conduza para um progresso em termos de valores. Podemos avançar para um Estado mais evoluído e pior, em termos de valores. Spencer diria que há especialização e finalidade. A teoria da dinâmica de redes proporia a “autopoiesi” (mas para quê, por quê, com qual sentido?). O marxismo falaria em evolução para o comunismo. O funcionalismo ou a teoria de sistemas não se questiona acerca da causa e finalidade, tomando esse conjunto de fatos sociais como se sempre tivessem existido. Não questionar a causa e a finalidade é dar ensejo ao surgimento de uma teoria funcionalista da sociedade que advoga a semelhança entre esta e o corpo humano, no qual cada órgão cumpre uma função no sentido de se alcançar a saúde. No que diz respeito à sociedade seria a saúde social, ou paz social. O modelo funcionalista prega que assim como cuidamos da saúde de um determinado órgão para que ele não afete o todo, devemos cuidar do órgão social para que a paz não seja perturbada. Então, fala-se em Estado em Crise, e se defende o aperfeiçoamento do Estado. Isso conduz a soluções autoritárias porque engendra modificações nas legislações de controle. Não há Estado em Crise por que os pressupostos básicos de seu  funcionamento somente são ameaçados quando há uma revolução ou guerra. Esse tipo de perspectiva oculta as causas reais dos problemas cujos reflexos são sentidos através dos aparelhos do Estado e são conseqüências de conflitos no âmbito da Sociedade. Uma imagem diz mais: querer consertar o Estado para melhorar a sociedade é querer melhorar o carro cujos pneus estão ruins sem ajeitar as estradas. Tal visão de Estado tem a incumbência de ocultar a realidade. É como querer resolver o problema de hipertensão através de drogas sem resolver suas reais causas.

[6] Um elemento da realidade cuja existência é incontestável e pode servir de base para o raciocínio ou hipóteses (há de pressupor um realismo crítico).

[7] Esse conjunto de fatos entrelaçados forma uma rede, uma malha, uma teia, um sistema, um tecido social. Através de liames (relações) que vão ser mais ou menos densas depende de um certo contexto: as relações entre o fato religioso e o jurídico são mais densas no Irã que no Brasil.

[8] Dois obstáculos a esse postulado: 1) diferença ontológica entre fato social (existe por que o homem existe) e o natural (existe independente da existência do homem), superada por Émile Durkheim que propõe o postulado da identidade entre fato social e natural quanto à aplicação do método científico.

[9] A ciência dita humana ou do homem que advogue um método dialético, ou compreensivo, ou hermenêutico, vai esbarrar sempre na obrigação de submeter suas teorias ao controle da observação, para evitar a metafísica, as verdades auto-evidentes, e termina caindo no falibilismo popperiano. Essa ciência parte do pressuposto de Durkheim de que fato social e fato natural se equivalem enquanto objeto de um método da ciência.

[10] Revoluções, golpes de estado, etc. Uma outra imagem que pode ajudar: a lógica externa fornece o terreno, o material de construção e os construtores para que seja construída uma casa; esta casa pode ter qualquer forma, mas necessariamente terá que possuir sapata, teto, paredes, e tudo quanto nela ou para ela for feito está adstrito aos parâmetros impostos do terrerno, do material de construção, dos construtores...

[11] Se formos estudar o campo interno econômico, teremos que construir uma teoria do salário; entretanto essa construção está necessariamente adstrita a leis que regem o campo externo tal qual a do mercado. No campo jurídico podemos pensar em algo do campo interno tal qual a definição de validade da norma jurídica, sem o qual  não é possível a idéia de ordenamento jurídico. A definição de validade da norma jurídica é inerente a de ordenamento jurídico, que é inerente a de Estado, que é inerente a uma lógica do Poder Político.

[12] E o econômico, e os outros. Nesse caso há uma redução, ao político, com fulcro na Teoria da Evolução, semelhante à redução ao econômico feita por Marx com fulcro no materialismo dialético. 

[13] Tipos de poder (em “Política”, de Aristóteles): a) pai sobre o filho (patriarcalismo) – “ex natura”; b) senhor sobre o escravo (despotismo) – punição “ex delicto”; c) governantes sobre governados (poder político) – “ex contractu”.

[14] Características do Poder Político: a) critério da função: o Poder Político é a mente do corpo social; b) critério da finalidade: o Poder Político tem a finalidade de alcançar o bem comum (juízo de valor); c) critério do meio: o Poder Político se caracteriza pela utilização da força (“summa potestas”; poder soberano) que distingue a classe dominante.

[15] Podemos ver que incipiente no tráfico, no cangaço, nas comunidades nos limites das áreas urbanas, nos presídios, nas tribos das eras arcaicas, todos têm os elementos daquilo que irá constituir o Estado, À EXCEÇÃO DA NORMA GERAL E ABSTRATA.

[16] O Estado é um exemplo de como: a) um instrumento formal pode desenvolver-se ao longo do tempo em complexidade para suprir expectativas em relação ao manejo do Poder Político; b) algo pode surgir para resolver um problema específico de Poder Político – somente uma norma jurídica geral e abstrata daria conta de uma população maior, território maior, e complexidade de gestão maior. Uma vez surgido o instrumento, ele se auto-alimenta gerando condições para sua sobrevivência. Na verdade não é o instrumento em si, mas, sim, aqueles que o manuseiam.

[17] A categoria filosófica da “vontade” é o fio condutor para entender essa tipologia: na persuasão a vontade adere; no constrangimento, cede sem querer; na sedução, é contra mas cede querendo; na subjugação aniquila a vontade. Conceito de vontade em São Paulo, sem o qual não haveria livre-arbítrio, inferno, Igreja impondo seu reino. 

[18] A tendência a dizer que o Direito resolve as coisas é o mesmo que dizer que “o carro” é veloz, ou “o carro foi para a oficina”, ou seja, uma antropoformização para ocultar o verdadeiro sujeito da ação. É como quando o juiz diz: “não fui eu, foi a lei”.

[19] As normas jurídicas que aparentemente são conquistas dos menos favorecidos (mesmo que circunstancialmente), ou aquelas que aparentemente limitam o Poder de quem o detêm, são engolfadas pelos mecanismos construídos pela elite dominante – enquanto estratagemas – para assegurar o predomínio na interpretação e na aplicação. Portanto, normas jurídicas como as que asseguram isonomia somente se tornam eficazes em relação aos hipossuficientes quando estes dão demonstração de força política.


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