quinta-feira, 29 de agosto de 2019

A DEFESA DE JARARACA

* Honório de Medeiros

“Quem tudo compreende, tudo perdoa” (Leon Tolstoi).

No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, em Mossoró, no Fórum Municipal, atuei como advogado de defesa no júri simulado, sob a presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria Jararaca. Era a comemoração do aniversário da defesa de Mossoró ante o ataque do bando de Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima. Terminados os trabalhos o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por seis votos a um (6X1). Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.

1. Esta é uma história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo perdoa”. 

2. Antes, entretanto, peço permissão às senhoras e senhoras para mergulhar nas águas do meu próprio passado. 

3. Pois foi aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja de São Vicente. 

4. Ali ficava a casa de Rodolpho, depois a de Alfredo, e em frente, a dos Hollanda. Do lado, a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José Leite de Santana. 

5. Por que estiveram ali? Por que atacaram Mossoró? 

6. Por que atacaram Mossoró? 

7. Compilei quatro teorias. José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto. 

8. Mas como falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço? Como falar no cangaço sem falar da época no qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal, enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de se ter, nas próprias mãos, o próprio destino? 

9. Esses são os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto espécie. 

10. O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de homens que optaram por sobreviver SEM LEI E SEM REI, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em O Leviatã. O cangaço foi o último suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros. 

11. José Leite de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer. 

12. José Leite de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes mesmo de ser um homem mal. 

13. Não se trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha. Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos humanos. 

14. Como julgar José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer, se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro, não tinha nada. 

15. Pois foi este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em herói e o santificou. 

16. Herói por que ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem rei, os últimos deles. 

17. Santo por que intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e sofrimento. 

18. Não é possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão por todo o sofrimento que causou quando vivo? 

19. Não é ele um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus para ser as trevas que valorizarão a luz? 

20. Por que não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo; Pe. Cícero; Santo Agostinho; Maria Madalena; São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança? 

21. Somente a Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente santo. Mas assim como Padre Cícero, para o povo, ele já o é. 

22. Se o condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele ofertando o nosso perdão. 

23. Reconstituamos os últimos dias de José Leite de Santana: 13 de junho, final da tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde: concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia; o ordenança do sargento Kelé tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o Tenente Laurentino de Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o Tenente Laurentino volta de Natal; 18 de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo Tenente Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos Tenentes Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; Sargentos Pedro Sylvio, João Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; Cabos José Trajano e Manoel; soldados Militão Paulo e João Arcanjo; motorista Homero Couto. 

24. Coube aos soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os cangaceiros. 

25. Dirá depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada para o crime, dispersava-se lentamente..." 

26. Absolvamos o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite de Santana, absolvamos o cangaço.


Jararaca, preso e ferido, na Cadeia Pública de Mossoró, algum tempo antes de ser morto pela polícia, no cemitério de Mossoró, na noite de 20 de junho de 1927.


terça-feira, 27 de agosto de 2019

WE FOUND BILLY JAYNES CHANDLER!

* Honório de Medeiros


 Em uma quinta-feira do mês de setembro de 2015, publiquei um artigo em meu blog, cujo título é o seguinte: "WHERE IS BILLY JAYNES CHANDLER?"

Nele, eu e minha filha, Bárbara de Medeiros, contávamos o resultado de uma procura intensa por notícias acerca do grande escritor americano que viveu no Brasil e nele escreveu alguns dos clássicos da literatura sertaneja nordestina.

Billy Jaynes Chandler é um dos mais importantes escritores acerca do cangaço e coronelismo, fenômenos ligados entre si e característicos de uma certa época da história recente do Brasil. Suas obras Lampião, o Rei dos Cangaceiros, e Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns, são canônicas, seminais, inigualáveis. Recentemente meu filho, que mora no Canadá, por lá adquiriu o Lampião traduzido para o inglês.

Passaram-se os anos, e nada. Nenhuma notícia...

No início deste agosto, quase três anos depois, mais precisamente dia 8, postaram o seguinte texto no espaço reservado aos comentários ao blog (as traduções a seguir são de Bárbara de Medeiros):

 “Ginny disse...
I was googling my uncle and found this blog from back in 2015. I am Billy Jaynes Chandler's niece”.
 “Estava pesquisando o meu tio no Google e encontrei esse blog de 2015. Eu sou a sobrinha de Billy Jaynes Chandler”.

Eu não li essa postagem. Ocupado com outros interesses, havia deixado o blog um pouco de lado.

Por sorte nossa, Ginny também escrevera para meu email:
“I read uncle bill your blog, translated in English, and it put a smile on his face. He is now 87 and has lost his Portuguese language and has some memory issues. He told me it was ok to reach out to you.
Ginny Petersen”.
“Eu li o seu blog para o tio Bill, traduzido para o inglês, e isso colocou um sorriso em sua face. Ele tem agora 87 anos e perdeu seu conhecimento da língua portuguesa e tem alguns problemas de memória. Ele me disse que era ok eu entrar em contato com você.”

Eu e Bárbara não conseguíamos acreditar. Ficamos muito felizes. Bárbara ficara contagiada com minha admiração por Chandler. No domingo, dia 11, mesmo mês, tratamos de responder:
“I am very happy to know that he’s alive! I hope he is well, despite the memory problems. He is a true icon for us Brazilians, who study cangaço and the local culture. Do you know if he has written anything else? I’m sending you a picture of myself with my copy of his book, now a rarety over here. If possible (and I completely understand if any of you don’t feel comfortable) could you send me a picture of him? My daughter helped me a lot in my researches and would love to see it. Thank you for reaching out!”
“Eu estou muito feliz em saber que ele está vivo! Eu espero que ele esteja bem, apesar dos problemas de memória. Ele é um verdadeiro ícone para nós brasileiros que estudamos cangaço e a cultura local. Você sabe se ele escreveu mais alguma coisa? Estou enviando uma foto minha com a minha cópia de um de seus livros, que se tornou uma raridade por aqui. Se possível (e eu entendo completamente se vocês não se sentirem confortáveis) você poderia enviar uma foto dele? Minha filha me ajudou muito nas pesquisas e adoraria vê-lo. Obrigada por nos contactar!”

Ginny voltou a fazer contato:
“He did not write any more books, 4 books altogether. I recall while I was growing up, his visits to Brazil. Here is a picture of him last year just after his 86 birthday”.
“Ele não escreveu mais livros, foram quatro ao todo. Eu lembro quando estava crescendo, das suas visitas ao Brasil. Aqui está uma foto dele do ano passado, logo após seu 86º aniversário.” 

Nós:
“Thank you so much! He looks great! Do you think I could write a follow-up to my article, now that you have given me the great news that he’s alive? I’d simply mention you have reached out! Maybe I could use the picture? Only if you allow me, of course. Once again, thank you so much for this exchange of messages, you have no idea how much it meant to me and my daughter”.
“Muito obrigada! Ele parece ótimo! Você acha que eu poderia escrever uma continuação do meu artigo, agora que você me deu a ótima notícia que ele está vivo? Apenas se você me permitir, claro. Mais uma vez, muito obrigada por essas mensagens, você não tem ideia do quanto significa para mim e para minha filha!”

Ginny:
“You are more than welcome to do a follow-up. Your question to “where is Billy Jaynes Chandler” has been answered. He lives in Miami, Florida with his sister. :) I wish you could talk with him, he just doesn’t remember much, but has strong memories, although unclear, of his time in Brazil. 
Take care to you and your daughter”.
“Sinta-se à vontade para fazer uma continuação! Sua pergunta ‘Onde está Billy Jaynes Chandler’ foi respondida. Ele mora em Miami, Flórida, com sua irmã. :) Eu gostaria que você pudesse falar com ele, ele apenas não se lembra de muita coisa, mas tem fortes memórias, apesar de incertas, do seu tempo no Brasil. Lembranças a você e sua filha!”.

Muito obrigada Ginny. Estamos enviando esse artigo para você e fazendo a postagem no blog, para que quem puder tenha conhecimento dessa notícia.

Ficamos maravilhados em saber que Chandler está vivo. Torcemos por ele, desejamos que fique muito bem, e lhe enviamos um grande abraço aqui do Nordeste do Brasil, do Sertão que ele conheceu. 

Chandler. Hoje, com mais de 86 anos. Imagem gentilmente cedida por Ginny Petersen, sobrinha sua.