sábado, 10 de novembro de 2012

DO QUÊ NÃO DEVE SE ORGULHAR O PROFESSOR DE DIREITO

Honório de Medeiros

 Uma das armadilhas que o capitalismo impõe ao ensino jurídico é o conforto da aula técnica, exclusivamente voltada para a interna realidade do ordenamento jurídico, onde o que importa é o discurso intrinsecamente voltado para a norma jurídica e suas conexões com outras normas jurídicas, quando muito se permitindo, o professor, um arremedo de independência dessa camisa-de-força, ao tratar de princípios jurídicos de conteúdo indeterminado, fluídico, sem consistência, que esbarram, entretanto, em sólidos limites que nada mais são do que barreiras que o Estado e sua lógica de poder impõem (os limites que os grilhões em nossos pés estabelecem).

Ao se alienar consciente ou inconscientemente, reiterando essa prática de ocultar as questões subjacentes, essenciais, e que dizem respeito à própria estrutura do Direito, tal qual sua legitimidade, sua relação com o poder, sua relação com a justiça, seu status meramente técnico, por exemplo, o professor de Direito, seja por necessidade de sobrevivência, seja por ignorância, seja por comodismo, seja por cinismo, cumpre um papel pouco digno de reproduzir o modelo de exploração próprio da lógica do capital e, em o fazendo, não questionando, não criticando, não discutindo, crava, com o martelo da omissão, o prego da submissão e alienação nas mentes dos futuros profissionais do Direito, ajudando a construir, assim, a civilização doentia que estamos deixando como legado para nossos filhos.

GESTÃO PÚBLICA


Honório de Medeiros
 

Algum tempo atrás o Fórum Nacional da Previdência debateu, mais uma vez, os problemas da Previdência Nacional, e uma das propostas discutidas constava em um relatório elaborado por Vicente Falconi, do Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), de Minas Gerais, o mesmo que foi responsável, entre 2002-2006, pelo choque de gestão pelo qual passou o Governo de Minas e que culminou em zerar o déficit orçamentário, que era de 2,3 bilhões de reais, originando um saldo para investimentos, na época, de mais de três bilhões. 

Há algo de original, quanto à gestão pública, na “doutrina” Falconi? Não. Na verdade Falconi resgatou, para o setor público, o conceito “PDCA” (Planejar, Desenvolver, Checar e Agir) desenvolvido no Japão, mas criado nos EUA na década de 20, para a iniciativa privada. 

Agregue-se ao PDCA, mais especificamente no P, de Planejar, os famosos “o quê, porque, como e quando”, que a sopinha de letras está completa e o planejamento estratégico, pelo menos no papel, aparece perfeito. 

Na verdade, conforme a própria literatura acerca de gestão pública aponta, o grande problema está no “Checar”. Tradicionalmente as administrações públicas deixam de lado, quando existe algum planejamento – e o mais das vezes os governos começam sem nenhum – a atividade de checar e padronizar, se tudo estiver correndo bem, ou checar e corrigir, se algo não estiver dando certo. 

E deixam de lado graças a uma série de componentes dentre os quais avulta, pela importância, o despreparo e a falta de compromisso com aquilo para o qual foram conduzidos pelo voto popular, dos líderes políticos. 

Não há checagem porque não é dado prazo para o alcance da meta. Não é dado prazo porque não há decisão política de cobrar resultados quando ele termina. 

Pior: mesmo que houvesse prazos, o mau gestor não seria punido, vez que a razão principal de sua presença no “staff” decorre de conchavos políticos ou premiação espúria por conduta partidária. 

Não há acompanhamento rígido do planejamento estabelecido por que os compromissos políticos dobram as necessidades administrativas e todo o planejamento – quando o há – rui por terra já no primeiro ano de administração. 

Então podemos creditar o sucesso do choque de gestão em Minas Gerais à decisão política do Governador de implementá-la, contra tudo e contra todos. Acredito plenamente que deve ter importado sobremaneira a capacidade de Falconi no sentido de convencer o Governador Aécio Neves de que era possível alcançar as metas estabelecidas se houvesse respaldo às ações a serem desenvolvidas. Caso contrario teríamos mais uma boa intenção condenada. E o inferno, dizem, está cheio de boas intenções. 

O respaldo ao qual aludo acima é, principalmente, no sentido de punir todos quanto não estejam plenamente integrados ao planejamento. Se a checagem mostra que a meta não foi alcançada e isso não aconteceu por falta de competência ou interesse, então o gestor intermediário, ou seja, o responsável terá que se afastado imediatamente sob pena de comprometer o esforço total. Esse elo da engrenagem que não funciona é como uma célula cancerosa: se não for destruída imediatamente vai originar uma metástase no futuro. 

Portanto não há segredo. O problema é político. Embora seja necessário ressaltar: a tarefa de criar e conduzir esse processo demanda um “know-how” que não é para qualquer um. Existem ingredientes para além da “sopinha de letras” que somente são detectados, analisados e integrados por quem é do ramo: o gestor tem que ter vocação, talento e disciplina.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

DA ARTE DE CITAR LIVROS IMAGINÁRIOS

Alexandre Dumas pai
 
 
Honório de Medeiros
 
                        Em “Ficções”, Borges pondera:
 
                   “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em "Sartor Resatus" (...) Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários".
 
                   Borges cita Carlyle, de quem, possivelmente absorveu a técnica.
 
                   Entretanto Dumas pai, que foi contemporâneo de Carlyle, célebre ensaísta, também a utilizou.
 
Em “Os Quarenta e Cinco”, lá para as tantas, ao relatar uma correspondência enviada por Chicot a Henrique III e comentar a excentricidade do seu estilo, convida: “Quem quiser ter conhecimento dela encontra-la-á nas Memórias de l’Étoile”.
 
                   Ou, de fato, terão existido essas Memórias de l’Étoile e elas ocupam algum escaninho empoeirado do Cemitério dos Livros Esquecidos que Carlos Ruiz Zafón localiza em Barcelona?

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ, QUARTA E ÚLTIMA TEORIA, QUARTA PARTE

Honório de Medeiros



Quarta teoria: o ataque a Mossoró resultou de um plano político (quarta parte)
 

Acerca do mesmo episódio ocorrido em 10 de maio de 1927 o historiador Válter de Brito Guerra, em “APODI, SUA HISTÓRIA[1]”, é enfático:

O ataque a Apodi, de 10 de maio de 1927, por um grupo de bandidos, organizado no Estado do Ceará, município de Pereiro, foi resultado de uma vingança política, insuflada por elementos de fora, inimigos de Apodi. Na madrugada daquele dia, penetraram nesta cidade, causando pânico e terror à nossa população, nada menos que 18 bandidos, fortemente armados, comandados por Massilon Leite.

A empreitada, organizada e dirigida de longe, por pessoa ligada a importante família do Apodi, tinha uma terrível missão a cumprir na cidade. Em primeiro lugar figurava, no plano sinistro, o assassinato do então chefe político Francisco Ferreira Pinto, para cuja residência se dirigiram os bandidos, prendendo-o imediatamente[2].O vigário da paróquia, que naquele instante acabara de celebrar a santa missa, foi chamado às pressas, para salvar o chefe político, em poder dos cangaceiros, que já se preparavam para eliminá-lo.

Enquanto permanecia preso o chefe local Francisco Pinto, por cuja liberdade o bandoleiro Massilon exigia vultosa quantia em dinheiro, elementos do grupo terrorista praticavam na cidade, atos de violência, e assassinato. Tomada de terror, ante a ação dos cangaceiros, quase toda a população abandonou a cidade, buscando refúgio na zona rural, nos sítios e fazendas.

Desta cidade os cangaceiros se retiraram pela manhã do mesmo dia 10, entre as nove e dez horas, rumo ao distrito de Itaú, neste município.

Frustrado o assassinato do Coronel Francisco Pinto em 1927, quem sabe de propósito, como o veremos logo mais, mesmo assim não serenou o ânimo dos seus inimigos políticos. Em 1934, durante o Governo do Interventor Mário Câmara, novo atentado pôs fim a sua vida.

Conta-nos, ainda, o historiador Válter de Brito Guerra, em obra já mencionada:

Assaltada de surpresa, a cidade não teve condições de reagir ao premeditado ataque, sob o comando do temível Massilon, famoso por suas façanhas na história do crime e banditismo no Nordeste, onde se criou na época, um ambiente propício ao cangaceirismo.

Os ânimos serenaram e houve um período de relativa calma. Porém as marcas e os resquícios daqueles dramáticos acontecimentos, permaneceram vivos no espírito de muitos, sempre sequiosos de represálias.

O movimento revolucionário de 1930 veio reavivar os graves acontecimentos do passado. Não só em Apodi, mas em todo o Rio Grande do Norte, o panorama sofreu radical transformação, com o advento da revolução vitoriosa de 1930. Iniciou-se então, neste Estado, o mais revoltante período de hostilidade e humilhações contra adversários políticos decaídos. Com a vitória da revolução, a família Pinto em Apodi perdeu o mando político e administrativo, conquistando novamente o poder em 1935, com a vitória do Partido Popular.

Realmente, a Revolução de 1930 não cumpriu a missão a que se propusera. Os seus princípios, seus postulados e ideais, que serviram de alento àquela arrancada cívica, caíram por terra ou foram esquecidos. Prevaleceu, acima de tudo, a vontade dos oportunistas, que a tudo custo, queriam encastelar-se no poder, à sombra do governo revolucionário.

Instalou-se então no estado, o terrorismo político que tomou vulto a partir de 1933, com a designação do quinto Interventor Federal, filho da terra, nomeado pelo presidente revolucionário, Getúlio Vargas.
 
Mario Câmara, quinto Interventor Federal do RN

Incutira o novo governante em sua cabeça, a idéia de candidatar-se à sua própria sucessão, na eleição que se aproximava para governador do Estado. A partir desse momento, e com o objetivo de ganhar eleitores e conquistar chefes políticos, o interventor pôs em jogo a máquina administrativa do Estado, desencadeando-se, então, a mais violenta e desastrosa campanha política de que se tem notícia no Rio Grande do Norte.

A série de atos de suborno, coação e violências, segundo os depoimentos da história, preparada pelo partido do governo, espalhou-se por todos os recantos do Estado.

Nenhum município ficou livre das arbitrariedades que atingiram o Rio Grande do Norte em todas as direções, sob a conivência das autoridades governamentais.

Ao aproximarem-se as eleições de 14 de outubro de 1934, em plena campanha política, contingentes policiais foram destacados para cidades, vilas e povoados, com a finalidade de coagir os adversários do governo, generalizando-se o pânico e o medo entre as populações. Populações que se dividiam em duas facções partidárias: o Partido Popular, de oposição ao governo; e a Aliança Social ou Liberal, partido governista. Perrepista ou perré, era a denominação dada ao partidário da oposição, liberal ou Pela-Bucho, era o correligionário do Governo ou a pessoa filiada da Aliança Liberal.

A proporção que se aproximava o dia das eleições, a onda de crimes aumentava assustadoramente, sob as mais diversas formas. Prisões ilegais, espancamentos de adversários do governo. Assassinatos eram presenciados a todo o instante, ficando os criminosos livres de qualquer punição.

Em Apodi, onde o chefe político Francisco Ferreira Pinto liderava a corrente de oposição ao governo, as perseguições políticas alcançaram o seu ponto culminante. Sucediam-se as prisões, intimidações a adversários do partido governista, surras e ameaças de toda a ordem.

O esquema de opressão posto em prática, estarrecendo a opinião pública, não se limitou apenas às agressões físicas e desmoralizadoras, pelos agentes do partido revolucionário, de que foram vítimas chefes políticos de prestígio e respeito. O processo de violência evoluía a todo momento, amedrontando as famílias e eleitores oposicionistas.

Acontecimentos de maior gravidade começaram a surgir em diversos municípios do Estado; o assassinato de chefes políticos do Partido Popular. Isso devia fazer parte do plano preestabelecido, com o objetivo de aterrorizar o eleitorado e afastá-lo do pleito que se aproximava.

Incluído na lista negra da Aliança Social, comandada neste município pelos senhores Luis Ferreira Leite e Benedito Dantas Saldanha[3], estaria o líder Francisco Ferreira Pinto, ou Chico Pinto, como era chamado, assassinado nesta cidade no dia 02 de maio de 1934. O crime, praticado às caladas da noite, teve grande repercussão em todo o Estado, principalmente no seio do Partido Popular, onde o falecido gozava de elevado conceito. Era um dos chefes políticos de maior prestígio desta região. Não só pela expressão do colégio eleitoral que comandava, mas também pela sua bravura cívica e qualidades morais, que caracterizavam sua personalidade. Desenvolveu no município intensa atividade político-partidária, ao lado de João Józimo de Oliveira Pinto e João de Brito Ferreira, tendo sido eleito Prefeito Municipal e Deputado à Assembléia Legislativa Estadual.
 
O Coronel Benedito Saldanha seria o de botas longas e braços cruzados

Os métodos postos em prática pelo Governo e seus partidários com a finalidade de ganhar a eleição, não arrefeceram o ânimo dos eleitores populistas, que se mantiveram firmes nos momentos mais difíceis, quando sofriam as mais absurdas perseguições. A eleição de 14 de outubro de 1934, deu ao Partido Popular a mais consagradora vitória. Com a eleição de Dr. Rafael Fernandes ao Governo do Rio Grande do Norte, pela Assembléia Constituinte, o Estado voltou à sua normalidade. A paz voltou a reinar entre as famílias potiguares.

MASSILON

Massilon, desde o assassinato do Delegado de Belém do Brejo do Cruz, PB, entre 1923 e 1924, acossado pela perseguição policial, passou à proteção da poderosa família Saldanha, presença proeminente naquela cidade e arredores e oposição aos Dutras que a governavam e, mais especificamente, à Manuel Paulino Dutra de Morais, seu chefe político, aquele que trouxera, ao Brejo, o militar que seria assassinado pelo cangaceiro.

É o que soubemos por intermédio de Dna. Tércia Leite de Oliveira, sua irmã, graças à entrevista gentilmente cedida ao Autor pelo escritor Sérgio Dantas e realizada pelo Tenente Raimundo Nonato de Oliveira, este casado com Salete, filha de Fenelon Leite, irmão de Massilon.

Essa afirmação foi corroborada depois, em entrevista realizada pelo Autor com o Capitão Viana, da qual foi dado notícia um pouco antes, neste livro.

O mesmo Massilon, que foi apontado pelo Capitão Viana como tendo sido jagunço de Benedito Saldanha, era protegido de seu irmão Quincas Saldanha, a quem chamava de “Padrinho”, segundo Deusdedite Fernandes Pimenta, entrevistado pelo Autor, por Franklin Jorge e Kydelmir Dantas, em Março de 2009, na sua Caraúbas natal.
 
Coronel Quincas Saldanha

Relata Franklin Jorge em seu “site”[4]:

CARAÚBAS –Passei a tarde de sábado em Caraúbas, para onde fui a convite de Honório de Medeiros e Kydelmir Dantas, que iam com a missão de entrevistar Deusdedite Fernandes Pimenta. Ele nos recebeu em sua casa em animada “sessão nostalgia”, quando recordou que estivera nos braços do famoso Massilon Leite, incentivador de Lampião no ataque a Mossoró, fato ocorrido em 1927.

Em voz clara e cheia de energia, evocou ainda outras figuras populares de Caraúbas, entre as quais a não menos famosa de Quincas Saldanha que há mais de cinqüenta anos aterrorizou uma vasta região, cuja casa forte, um digno exemplar da arquitetura rural sertaneja, centro político da sua propriedade rural retalhada por seus herdeiros, ainda continua de pé, incorporada já ao perímetro urbano do município.

Homem corpulento e cordial, de 83 anos, Deusdedite tinha apenas alguns meses de vida quando a fazenda Timbaúbas, do seu avô Hipólito Fernandes, foi invadida por Massilon que se fazia acompanhar por oito ou dez cabras armados, onde pernoitou e trocou uma sela nova pela velha que trazia. Na saída, vendo-o nos braços da babá, tomou-o nos próprios braços e depois de alguns minutos o devolveu à negra que, assustada, tremia.

Definitiva, entretanto, para demonstrar a veracidade da afirmação alusiva ao vínculo entre Massilon e os Saldanha é a Denúncia oferecida pelo Promotor Público da Comarca de Souza, PB, Dr. Emílio Pires Ferreira, servindo“Ad-Hoc” em Brejo do Cruz, no mesmo Estado, em 10 de fevereiro de 1927, transcrita no Jornal “União”, da Paraíba, número 82, em 9 de abril de 1927, um sábado[5].

Nela vamos encontrar esse trecho, em grafia da época:

A excepção de MASSILON LEITE, pronunciado neste termo, por crime de homicídio que, apezar de já ter vivido sob a proteção de Joaquim Saldanha, estava ultimamente com Benedito Saldanha, irmão deste, no Estado do Ceará, os demais são moradores do mesmo Joaquim Saldanha e são tidos como homens afeitos do crime.

Massilon sabia, pois, que na Paraíba, desde que matara um Delegado, não havia mais lugar para ele. Dos beneficiados pelos seus crimes obtivera passaporte e amparo para começar outra vida longe dali. Cortara o território do Alto Oeste potiguar e reaparecera no Ceará, mais precisamente em Alto Santo, sob a proteção do Coronel Benedito Saldanha, grande proprietário rural na Região, irmão do Coronel Quincas Saldanha, este, por sua vez, latifundiário em Brejo da Cruz, Paraíba, e Caraúbas, Rio Grande do Norte.

OS CORONÉIS QUINCAS E BENEDITO SALDANHA

O Coronel Quincas Saldanha desde que saíra de Brejo do Cruz após o evento de 1926[6], e se fixara em Caraúbas, no Rio Grande do Norte, voltara seu interesse, secundando seu irmão Benedito Saldanha, fazendeiro em Alto Santo, Ceará, para a política do Rio Grande do Norte, com especial atenção pela Região Oeste, mais especificamente Caraúbas e Apodi, nesta alinhado à oposição radical ao Coronel Francisco Pinto, chefe político da cidade.

Abelardo Montenegro conta, em “FANÁTICOS E CANGACEIROS”[7] o seguinte episódio acerca do Coronel Quincas Saldanha, dando idéia da importância e liderança que desfrutava entre seus pares:

Em 1904, aproximadamente, o coronel Joaquim Saldanha enviava gado da fazenda Amazônia, nos limites entre Paraíba e Rio Grande do Norte, para Riacho do Sangue (Frade), Cachoeira (Solonópoles) e Jaguaribe-Mirim. Tempos depois, fazia retornar o gado. Comprava, ao mesmo tempo, boiadas para vender na Pedra do Fogo, em Pernambuco, e em Pocinhos, na Paraíba.

Diversos fazendeiros, entre os quais João Patrício de Almeida, da fazenda Serrote do Mato, João Roque de Macedo, da fazenda Arara, e Elpídio José de Queiróz, da fazenda Juazeiro, procuravam o coronel Joaquim Saldanha, que se hospedava na fazenda Arara, e pediam-lhes providências contra os Bocas e José Dantas. Saldanha assegurava-lhes que ia pedir a interferência do Padre Cícero Romão Batista, seu amigo, que se entenderia com o Governador Nogueira Acioli.

Algum tempo depois, surgiam as primeiras volantes da polícia cearense. Uma delas, comandada pelo tenente Romão Nunes, ficava sediada em Pereiro, sob a orientação do coronel Alcoforado.

Os Bocas e José Dantas tinham os seus ‘pombeiros’ que os avisavam da aproximação da polícia. Os assaltos, por isso, continuavam. Voltava a ser feitos apelos ao coronel Saldanha, que convidava um dos Bocas a comparecer a sua presença, não sendo, porém, aceito o convite.

Em outra viagem, recebia o coronel Saldanha, por intermédio de Francisco Melo, proprietário da fazenda Espinheiro, a relação dos principais culpados. Os Bocas, além de gado, raptavam mulheres.

Após vários convites, dois chefes Bocas iam à fazenda Espinheiro, onde estava arranchado o coronel Saldanha. Ao penetrarem no pátio da fazenda, eram alvejados a bala, morrendo um e saindo outro ferido.

O Coronel Benedito Saldanha, por sua vez, chegou a ser Interventor em Apodi em 1933, durante 6 meses e 14 dias. E foi Deputado à Constituinte Estadual de 1935 pela Aliança Social do Rio Grande do Norte, liderada pelo Interventor Mário Câmara.

Edgar Barbosa[8]fixou um perfil de Benedito Saldanha[9]ao relatar o seguinte episódio por ele protagonizado em 1934:

Na tarde de 29 de novembro, após um almoço na residência oficial do interventor, precisamente no dia do seu regresso do Rio, o Sr. Benedito Saldanha, candidato da Aliança Social à Assembléia Constituinte e figura de evidência do situacionismo, entrou, à frente de um grupo, no prédio d’A Razão. Chegando à redação do órgão do Partido Popular, o político aliancista, em companhia do Tenente José Paulino, sem declinar o seu nome nem os motivos que ali o traziam, entrou sem mais detença a depredar os móveis, rasgar papéis, quebrar caixas e empastelar os tipos com os quais se confeccionava A Razão. Tal empastelamento se deu à hora meridiana, em plena Avenida Tavares de Lyra, a artéria principal da Ribeira. Após, o Sr. Benedito Saldanha saiu dizendo ir à procura dos próceres oposicionistas, ameaçando assim de novas violências o Partido contra cujo porta-voz na imprensa agira tão desabragadamente.

Relembremos Válter de Brito Guerra[10]:

Incluído na lista negra da Aliança Social, comandada neste município pelos senhores Luis Ferreira Leite e Benedito Dantas Saldanha, estaria o líder Francisco Ferreira Pinto, ou Chico Pinto, como era chamado, assassinado nesta cidade no dia 02 de maio de 1934. O crime, praticado às caladas da noite, teve grande repercussão em todo o Estado, principalmente no seio do Partido Popular, onde o falecido gozava de elevado conceito. Era um dos chefes políticos de maior prestígio desta região. Não só pela expressão do colégio eleitoral que comandava, mas também pela sua bravura cívica e qualidades morais, que caracterizavam sua personalidade. Desenvolveu no município intensa atividade político-partidária, ao lado de João Józimo de Oliveira Pinto e João de Brito Ferreira, tendo sido eleito Prefeito Municipal e Deputado à Assembléia Legislativa Estadual.

E Giocondo Dias, célebre líder comunista, assim a ele se refere quando entrevistado pelo jornalista e escritor Luis Gonzaga Cortez[11]:

Giocondo -Claro. Havia uma grande instabilidade, permanente. E o que acontecia?Os políticos, tanto os cafeístas, como os perréis, trabalhavam a oficialidade do batalhão. Por exemplo, o capitão Everardo Barros de Vasconcelos, que depois foi general, era homem ligado aos perréis. Aluísio Moura, outro capitão, era ora ligado aos perréis, ora aos cafeístas, e assim por diante. Por outro lado, Café Filho, ao lado do apoio popular, era apoiado pelos Saldanha, pelo Benedito Saldanha, pelo Aristides Saldanha, que eram verdadeiros senhores feudais. Tinham um autêntico exército, forças que giravam em torno de 500 jagunços, à disposição deles. Conseguiram manter este status quo exatamente na medida que apoiaram a Revolução de 30.

CONTINUA...


[1] Coleção Mossoroense, Volume 1.145, Mossoró, RN, 2000.
[2] Grifei.
[3] Observemos a presença do Coronel Benedito Saldanha, a quem Massilon era ligado, segundo a Denúncia do Ministério Público de Brejo da Cruz e o depoimento de várias testemunhas, dentre elas o Capitão Viana.
[5] Ver, do Autor, “MASSILON”.
[6] A invasão de Brejo do Cruz executada por Massilon, acerca da qual se escreveu acima.
[7] Organização de Gildácio J. Almeida Sá; Expressão Gráfica Editora; Reedição; 2011; Fortaleza.
[8] “HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”; Edfurn – Editora da UFRN; Natal, RN; 2008.
[9] Em 6 de maio de 1934 o jornal “O Mossoroense” traz matéria com manchete de primeira página acerca do assassinato do Coronel Francisco Pinto por Roldão Maia, “cabra” de Benedito Saldanha segundo o historiador Marcos Pinto em “DATAS E NOTAS PARA A HISTÓRIA DE APODY”;Livro I; Coleção Mossoroense; Série “C”; Volume 1.164; 2001; Mossoró, RN.
[10] “APODI, SUA HISTÓRIA”; Coleção Mossoroense; volume 1.145; Abril de 2000; Mossoró, RN.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

SE NÃO FOSSE O ANEL



Honório de Medeiros
 
 
Como se encarnasse um sonho de adolescente, na terceira ou quarta volta em torno do salão onde casais dançavam ao ritmo das músicas daqueles loucos anos 70 ela me apareceu. 

Em um gesto instintivo levantei o copo de rum Montilla com coca-cola, como que oferecendo, enquanto a avaliava. Ali estava uma mulher bonita, muito bonita, pelo menos para o seu padrão: cabelos longos, crespos, cheios, displicentemente soltos e partidos ao meio, emoldurando um rosto oval perfeito no qual pontificavam um nariz diminuto acima de uma boca carmim/carnudo-vermelha e olhos sempre meio escondidos por longos e abundantes cílios; o corpo magro quase oculto por um daqueles vestidos longos, típicos da época, terminava nos tornozelos pousados em sandálias das quais saiam finas tiras de couro que subiam pernas acima. 

O copo foi aos lábios dela e sem trocarmos qualquer palavra nos dirigimos a um batente meio afastado que circundava a área onde ficavam as mesas. 

Então conversamos. Não sei se o primeiro beijo veio logo ou demorou. Não sei acerca do que falamos, mas o passado e o futuro se fizeram presente. Na ânsia de conhecê-la mergulhei meus olhos nos dela querendo alcançar os fatos e pensamentos mais remotos gravados em sua memória. A noite adquiriu contornos mágicos: seu perfume, discreto, suave, era único; o bulício longínquo da festa, um pano-de-fundo perfeito para os silêncios intermitentes; a música tocava em nós. 

Já no final, noite alta, ainda desatento ao fato de que a encontrara vagando sozinha, e que ela não fora procurada, até então, por quem quer que seja, enquanto a multidão se dispersava eu perguntei onde ela morava. Ela me disse, vagamente, que no Centro. E como iria para casa? Não houve resposta. Àquela hora somente havia táxi. Ou carona, já que carro era um luxo distante. 

Poderíamos ir a pé, eu propus, afinal não ficava tão distante, e as ruas e bairros seriam atravessados lentamente enquanto o sentimento nascente fluía mundo afora e saudava a manhã que chegava. Não ocorrera, ainda, a mim, quão estranho era a solidão que a cercava. Se eu não estivesse ali – era o caso de se pensar – ela teria ido sozinha, enfrentando a madrugada, para casa? 

Assim, fomos. Mãos dadas. Silêncios interrompidos por brincadeiras. E beijos. As ruas silenciosas por testemunha. A manhã possuindo a noite. Na altura do velho cinema ela parou e me disse que ali precisaríamos nos separar. Não era possível deixá-la em frente à sua casa. Não questionei. Minha relutância não a oprimiu. Beijei-a e lembrei-lhe o compromisso de me telefonar no momento que acordasse. 

Pegou o caminho da volta. Antes da esquina que a tiraria de meu ângulo de visão olhei para trás. Ela estava lá esperando esse gesto. Beijou a palma da mão, apontou-a para mim e soprou. E meu coração adolescente, feliz, exultou. 

Foi a última vez que a vi. 

Ao longo do dia, ao longo das horas, a espera foi interminável, opressiva. O toque do telefone fazia meu coração disparar. O livro, sequer folheado, jazia pousado no chão ao lado do sofá. 

Passaram-se os dias. Nada. Nenhum rastro. As pessoas que moravam no entorno do lugar onde eu a deixara talvez tenham estranhado meu vai-e-vem incessante, nos primeiros dias, quando ainda havia a esperança de encontrá-la saindo de algum lugar. Depois se acostumaram. Ninguém sabia de nada, ninguém a conhecia. 

Todo tipo de pergunta, a mim mesmo, foi feita. Não houve resposta. Nunca houve. Não haverá.
Poderia parecer algo sobrenatural não fosse, passados todos esses anos, aquela bijuteria – um anel – que teima em me deixar pensativo e um pouco melancólico quando o ponho na palma da mão, e o lenço – naquele tempo ainda se usava – no qual resiste ao tempo a lembrança de um perfume e o contorno impreciso de um beijo calcado a batom.

domingo, 4 de novembro de 2012

ELOGIO À PREGUIÇA


Juvenal Antunes
 
 
ELOGIO DA PREGUIÇA

Juvenal Antunes

Bendita sejas tu, Preguiça amada,
Que não consentes que eu me ocupe em nada!

Mas queiras tu, Preguiça, ou tu não queiras,
Hei de dizer, em versos, quatro asneiras.

Não permuto por toda a humana ciência
Esta minha honestíssima indolência.

Lá está, na Bíblia, esta doutrina sã:
-Não te importes com o dia de amanhã.

Para mim, já é grande sacrifício
Ter de engolir o bolo alimentício.

Ó sábios, dai à luz um novo invento:
A nutrição ser feita pelo vento!

Todo trabalho humano, em que se encerra?
Em, na paz, preparar a luta, a guerra!

Dos tratados, e leis, e ordenações,
Zomba a jurisprudência dos canhões!

Juristas, que queimais vossas pestanas,
Tudo que legislais dá em pantanas.

Plantas a terra, lavrador? Trabalhas
Para atiçar o fogo das batalhas!

Cresce o teu filho? É belo? É forte? É loiro?
- Mas uma rês votada ao matadouro!

Pois, se assim é, se os homens são chacais,
Se preferem a guerra à doce paz...

Que arda, depressa , a colossal fogueira
E morra assada, a humanidade inteira!

Não seria melhor que toda gente,
Em vez de trabalhar, fosse indolente?

Não seria melhor viver à sorte,
Se o fim de tudo é sempre o nada, a morte?

Queres riquezas, glórias e poder?
Para que, se amanhã tens de morrer?

Qual mais feliz? O mísero sendeiro,
Sob o chicote e as pragas do cocheiro...

Ou seus antepassados que, selvagens,
Viviam, livremente, nas pastagens?

Do Trabalho por serem tão amigas,
Não sei se são felizes as formigas!

Talvez o sejam mais, vivendo em larvas,
As preguiçosas, pálidas cigarras!

Ó Laura, tu te queixas que eu, farcista,
Ontem faltei, à hora da entrevista,

E, que ingrato, volúvel e traidor,
Troquei o teu amor - por outro amor.

Ou que, receando a fúria marital,
Não quis pular o muro do quintal.

Que me não faças mais essa injustiça,
Se ontem não fui te ver, foi por preguiça.

Mas, Juvenal, estás a trabalhar!
Larga a caneta e vai dormir, sonhar.

(Cismas, 1908)
 
* Homenagem singela, minha, a dois homens: Juvenal Antunes, poeta e filósofo, e Pirro de Élida, filósofo. Este nos deu, de presente, uma das mais poderosas armas contra a manipulação e a chatice dos plenos-de-certezas: o ceticismo! Dois personagens também são homenageados: Macunaíma e Oblomov. E viva a arte como instrumento de combate à qualquer tipo de opressão!