sábado, 4 de novembro de 2017

DE COMO AQUILO QUE VOCÊ VÊ PODE NÃO SER O QUE VOCÊ PENSA


*Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

É divertido ler “A Elegância do Ouriço”, um romance de Muriel Barbery.

Recomendo.

Vou, aqui, editar um trecho do livro que fala acerca da fenomenologia de Husserl.

“O quê”, vocês devem ter se perguntado. "Fenomenologia? Em um romance?”

É. Em um romance. E esse trecho prova, para mim, por a + b, que somente a literatura salva a filosofia da chatice dos filósofos.

Leiam:

“Então, a segunda pergunta: (o) que conhecemos do mundo?

A essa pergunta os idealistas como Kant respondem.

O que respondem?

Respondem: pouca coisa.

(...)

(Respondem que ) Conhecemos do mundo o que nossa consciência pode dizer dele porque isso aparece assim – e não mais.

Vejamos um exemplo, ao acaso, um simpático gato chamado Leon. (...) E pergunto a vocês: como podem ter certeza de que se trata de verdade de um gato, e até mesmo saber que é um gato? (...) Mas a resposta idealista consiste em demonstrar a impossibilidade de saber se o que percebemos e concebemos do gato, se o que aparece como gato na nossa consciência é de fato conforme ao que é o gato em sua intimidade profunda.

(...)

Eis o idealismo kantiano. Só conhecemos do mundo a IDEIA que dele forma a nossa consciência.”

Agora vem a parte que eu considero hilariante:

“Mas existe uma teoria mais deprimente que essa (...)

Existe o idealismo de Edmund Husserl (...)

Nessa última teoria só existe a apreensão do gato. E o gato? Pois é, o dispensamos. Nenhuma necessidade do gato. Para fazer o quê, com ele? Que gato? (...) O mundo é uma realidade inacessível que seria inútil tentar conhecer. Que conhecemos do mundo? Nada. Como todo conhecimento é apenas a autoexploração da consciência reflexiva por si mesma, pode-se, portanto, mandar o mundo para os quintos dos infernos.

É isso a fenomenologia: a CIÊNCIA DO QUE APARECE À CONSCIÊNCIA. Como se passa o dia de um fenomenologista? Ele se levanta, tem consciência de ensaboar no chuveiro um corpo cuja existência é sem fundamento, de engolir o pão com manteiga inexistente, de enfiar roupas que são como parênteses vazios, ir para o escritório e pegar um gato.

Pouco se lhe dá que esse gato exista ou não exista, e o que ele seja na própria essência. O que é indecidível não lhe interessa. Em compensação, é inegável que na sua consciência aparece um gato, e é esse aparecer que preocupa o nosso homem.”

Aí está. 

Por isso digo para meus alunos que o idealismo radical é a loucura da razão.

Fica mais fácil para eles entenderem o grande mistificador que foi Platão.

Entender que não existe algo Justo-Em-Si-Mesmo.

Entender o uso manipulativo, retórico, das teorias filosóficas.

E entender por qual razão os professores de Direito, com algumas exceções, são como os gatos existencialistas...

(*) Arte em gatoexistencial.com.br

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

DE VOAR ALTO NAS COISAS DO ESPÍRITO

* Honório de Medeiros

Adolescente, recém-chegado a Natal, apaixonado por livros, não sabia por onde começar na biblioteca de minha tia, que me acolhera em seu apartamento lá pelos meados da década de 70.

Li muitos, ali. Alguns livros, várias vezes. Naquele tempo não havia celular, e a televisão engatinhava.

Dia desses me perguntei quais daqueles livros, alguns ainda em minha posse, hoje, me marcaram. Não precisei procurar tanto nos desvãos já meio empoeirados da memória. Foram três, não tenho dúvida.

Um deles é um clássico: "O Meio é a Mensagem", de Marshall McLuhan. Na época, quando o li, não compreendi quase nada. Mas o conceito de "Aldeia Global", um meme de McLuhan, fixou residência definitiva em meu cérebro.

Outro foi um romance de Rabindranath Tagore, "A Casa e o Mundo". Uma estória de amor vivida na Índia, escrito com uma sutileza incomum, e uma prosa densamente poética.

Mas o fundamental, aquele que me marcou para sempre, foi "A Negação da Morte", de Ernest Becker, que ao autor valeu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção Geral de 1974.

É traumatizante a leitura de "A Negação da Morte" para um adolescente. Muito do que li, quando o peguei pela primeira vez, também me era incompreensível. A custo, entretanto, de relê-lo muitas vezes, no período, e ir em busca na obra de Freud, que jazia completa, nas estantes de minha tia, à minha disposição, dos conceitos-chaves utilizados por Becker, terminei entendendo o núcleo de sua argumentação.

Para Becker  o que é há de fundamental no ser humano é o medo da morte.

Esse receio, temor, medo, que está em cada um de nós desde que construímos nossas primeiras noções, é o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia. Agimos, em consequência, para reprimi-lo, construindo "mentiras vitais" que nos permitam enfrentar a morte sob a ilusão de permanência histórica e explicam, assim, a conduta do homem.

Uma delas, a mais importante, é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permite sobreviver na memória dos outros.

Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante de Sir Bertrand Russel que mina do seu “Power: A New Social Analysis”, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder. Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político, mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.


A causa da existência do Poder, para Russel, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos. Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder. Infinita posto que o desejo humano não conhece limites. Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual. Como isso não é possível, surgem a instabilidade e a violência.

É possível ler mais em:
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/05/bertrand-russel-e-causa-da-existencia.html

Em tempos mais modernos, a incessante busca por notoriedade substituiu o impulso pelo heroísmo.

Talvez haja uma forte distinção entre um e outro calcada no caráter ético.

Enquanto no primeiro caso as ações parecem determinadas pelo narcisismo, no segundo pode haver a busca de passar para a história pelos feitos realizados em prol de uma ideia de Bem.

Ou será que a causa primeira nada mais seria que o narcisismo?

O certo é que Becker criou raízes fundas em mim, seja pelo impacto de uma teoria que tudo explicava mas nada devia a mitologias, seja pela angústia e prazer intensos que voar alto, nas coisas do espírito, ocasionam.

Nunca mais fui o mesmo.

* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

domingo, 29 de outubro de 2017

O ESCUDO ÉTICO DO MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES

* Honório de Medeiros

A "Teoria do Escudo Ético", concebida e refinada por Frederico Pernambucano de Mello em "Guerreiros do Sol", a mais importante obra acerca do epifenômeno do cangaço, e que Câmara Cascudo intuíra em "Vaqueiros e Cantadores", explica a justificativa dada pelos cangaceiros a si mesmo e aos outros para sua vida de crimes.

Encaminho os leitores para o texto seguinte: http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2013/05/camara-cascudo-frederico-pernambucano.html

Para Cascudo, ao explicar por que a valentia, quanto aos cangaceiros, originava a “aura popular na poética” dos cantadores, necessário se fazia a existência, como pressuposto, do fator moral, que nada mais era que o “escudo ético”.

Disse Cascudo: 

“Para que a valentia justifique ainda melhor a aura popular na poética é preciso a existência do fator moral. Todos os cangaceiros são dados inicialmente como vítimas da injustiça. Seus pais foram mortos e a Justiça não puniu os responsáveis.” 

A "Teoria do Escudo Ético" não se aplica somente ao estudo do cangaço. Também pode ser utilizada para explicar a forma como fugimos da obrigação de assumir a responsabilidade pelos nossos atos. Ou como nos contrapomos aos nossos críticos.

Recentemente o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes afirmou o seguinte: "Se quer fazer populismo, não seja juiz". E criticou juízes e procuradores que buscam popularidade. 

Provavelmente foi uma alfinetada em seu colega Gilmar Mendes, que busca incessantemente gerar fatos que o coloquem na mídia.

Entretanto o fundo da questão, na verdade, é outro. Alvo de críticas em relação aos seus votos na Suprema Corte, Moraes lançou mão do escudo ético.

Implicitamente justificou suas decisões como sendo corretas, do ponto de vista legal e de legitimidade, e de populistas aquelas que não são semelhantes as suas, mas são respeitadas pelo seus críticos.

Ou seja: suas decisões são impopulares mas legais e legítimas; a dos outros são populares, mas ilegais, ou ilegítimas, ou inferiores. 

É indiscutível que o Ministro deva e possa julgar como quiser; já não o é quando, julgando como julga, ao invés de respeitar a opinião alheia, trata de desqualificá-la. 

Pois em se tratando de Direito, um universo de valores, não há certo ou errado, há opiniões contrárias, e mecanismos (o uso da força, por exemplo) que fazem com que uma delas prepondere sobre as outras. 

Parece mais um mecanismo de defesa. Um escudo ético.

Ruim, por sinal.