sexta-feira, 29 de março de 2019

A PEQUENINA FLOR LILÁS

* Honório de Medeiros

Havia uma única e pequenina flor lilás no nicho de cimento no qual algumas poucas plantas ressecadas resistiam bravamente à secura daquele começo de dezembro.

Bárbara desceu da cadeira onde a tínhamos colocado e enquanto se preparava para explorar os seus arredores, pediu nossa aprovação nos olhando com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco.

Em passos trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequenina flor solitária e, em seguida, estendeu sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão inteira como seria próprio em sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, segurou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida.

Arrancou a flor na primeira tentativa. Manteve-a na mão e a contemplou durante algum tempo, provavelmente pensando no que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim, e, atenta ao meu olhar, veio em minha direção bamboleando e estendendo a flor numa oferta silenciosa, enquanto meu coração se apertava lentamente. 

Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde então trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre eles, um operador de máquina de plastificação de documentos.

Procurei-o e lhe expus minha história e meu projeto: aprisioná-la entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos.
A flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre.

Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.

De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando então suspendi minha filha e a cobri de beijos. 

Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo e os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, a face de minha esposa, a imagem de Bárbara – vão desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhê-la e, em seguida, entregá-la a mim? Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco pode ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta de uma flor é um gesto através do qual se externa um afeto? 

Claro que dirão que estou imaginando coisas. Nada teria havido ali de especial. Seria tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de ideias. Ela viu alguém fazendo isso e se lembrou de fazer o mesmo. Ora, meu Deus! Essas pessoas não creem. Veem tudo cinza. Acham que um arco-íris é tão-só gotículas de água atravessadas por um raio de sol. Percebem o mundo apenas através da lógica do senso comum.

São os homens-ocos, dos quais falou o poeta T. S. Elliot em Os Homens Ocos

"Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou os pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada".

Por causa dessas mesmas pessoas eu mesmo poderia não acreditar, hoje, em anjos, mas sei que eles existem, existem sim, sou capaz de jurar, basta, para isso, contemplar minha pequenina flor lilás.

segunda-feira, 25 de março de 2019

A SAGA DOS FERNANDES DE QUEIRÓZ DO ALTO OESTE POTIGUAR (II)

* Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências,pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.



JOSÉ PINTO DE QUEIRÓZ, A OUTRA RAIZ


Vimos no artigo anterior que MATHIAS FERNANDES RIBEIRO pode e deve ser considerado uma das raízes dos Fernandes de Queiróz do Alto Oeste potiguar. A outra raiz foi o Marinheiro[1] JOSÉ PINTO DE QUEIRÓZ, o patriarca da Serrinha dos Pintos, hoje Município, mas que pertenceu a Martins. 

Dele pouco se sabe exceto o que se pode colher, conforme João Bosco Fernandes[2], em seu inventário, datado de 1781 e existente no Cartório do Registro Civil de Portalegre, RN, assinado por sua viúva ANNA MARTINS DE LACERDA, no qual consta seu falecimento em 25 de novembro de 1780. 

ANNA MARTINS DE LACERDA, filha de FRANCISCA DA COSTA PASSOS e VIOLANTE MARTINS DE LACERDA, era irmã de JOANNA MARTINS DE LACERDA, MARIANNA MARTINS DE LACERDA, LUIZA MARTINS DE LACERDA, ANTÔNIO MARTINS DE LACERDA e MATHIAS FERNANDES RIBEIRO. 

MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, como sabemos, foi casado com MARIA GOMES DE OLIVEIRA MARTINS (filha primogênita do Capitão Francisco Martins Roriz e Micaela), de quem teve vários filhos, dentre eles, MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO, nascida em 1778. JOSÉ PINTO DE QUEIRÓZ e ANNA também tiveram muitos filhos, dentre eles DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ, nascido em 1772. 

Do casamento de DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ com MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO surgiram os FERNANDES DE QUEIRÓZ do Alto Oeste do Rio Grande do Norte. 

Antes de continuar, entretanto, é importante traçar o perfil de um irmão de DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ, O Tenente-Coronel AGOSTINHO PINTO DE QUEIRÓZ, depois AGOSTINHO FERNANDES DE QUEIRÓZ. 

AGOSTINHO PINTO DE QUEIRÓZ, depois AGOSTINHO FERNANDES DE QUEIRÓZ nasceu em Martins, no Rio Grande do Norte, em 21 de abril de 1870, e faleceu em 6 de março de 1866 na mesma cidade. Casou-se com FRANCISCA ROMANA DO SACRAMENTO, filha de MATHIAS FERNANDES RIBEIRO. Foi um homem notável, em sua época. Revolucionário em 1817, e encarcerado na Bahia de 1817 a 1822, quando foi anistiado[3]

Em 1832 combateu Pinto Madeira na fronteira com o Ceará. Manoel Onofre Jr[4] nos conta, citando Nestor Lima, que por terem fugido do batalhão por ele comandado “dois soldados, Patrício e Felizardo (...), o comandante mandou prendê-los e sumariamente fuzilá-los por deserção. Foi, por isso, julgado e condenado, mas a condenação prescreveu, porque nunca foi executada, e ele sempre residiu na serra”. 

Logo após o combate, escreveu ao Governador da Província do Rio Grande do Norte pedindo para trocar o sobrenome “Pinto” por “Fernandes”, da família de sua esposa. Em 27 de fevereiro de 1842 passou a ser o primeiro Presidente da Câmara Municipal (Intendente) da Vila de Maioridade (atual Martins). 

Tavares de Lira[5] lembrou que “Quando o saudoso desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário: 

“Quartel de Portalegre, 7 de maio de 1832. 

Ilmo. e Exmo. Snr. Presid. da Prov. do Rio Grde. do Norte, 

JOAQUIM VIEIRA DA SILVA E SOUZA 

Tenho em mta. consideração o Respeitável ofício de V. Excia., de 7 de maio p.p., e de toudo conteúdo estou certo a dar sua devida execução. 

Deus guarde V. Excia. mO amO. 

L.S. Sempre foi o meu Velaxo de PINTOS, como tenho excomungado o PINTO MADRa., mudei o meu Velaxo deora indeante pa. FERNANDES. 

Tente. Coronel 

AGOSTINHO FERNANDES DE QUEIRÓZ[6].” 

Em 1838, o regente do Império nomeou-o um dos Vice-Presidentes da Província do Rio Grande do Norte. 

Câmara Cascudo[7] relatou que de Agostinho vem uma tradição comovente: “Prisioneiro na cadeia da Baía, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhoria na alimentação, livros para ler, notícias de Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiróz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nomes de reis merovíngios, entre os sertanejos norte rio grandenses”.

No próximo artigo começaremos o estudo da descendência de DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ.

[1] Como eram conhecidos os portugueses homens naquele tempo. 

[2] FERNANDES, João Bosco; Memorial de Família: Pesquisa Genealógica; 1ª edição: 1.994; Halley S/A: Gráfica e Editora, Teresina, Piauí. 

[3] Em Natal a revolução se mantivera de 29 de março a 25 de abril de 1817, encerrando-se com o assassinato do comandante André de Albuquerque. 

[4] MARTINS A Cidade e a Serra; 3ª edição; Sebo Vermelho; Natal, Rn. 

[5] História do Rio Grande do Norte.

[6] Conforme “A República”, Natal, Rn, 30 de abril de 1926. 

[7] Citado em O Guerreiro do Yaco, de Calazans Fernandes.