quarta-feira, 19 de junho de 2024

SEU ANTÔNIO DE LUZIA

 


Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.


Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.

A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a "modernidade".

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: "vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada". Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o "velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui". E puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

terça-feira, 18 de junho de 2024

ABRIL É O MAIS CRUEL DOS MESES



* Honório de Medeiros.

Dia cinzento. Prédios cinzentos. Rue de Granelle.  Paris. Sigo por Saint-Germain-des-Prés-Prés, a passos hesitantes. Abril de 2009. É o mais cruel dos meses, disse Elliot em célebre poema. Talvez seja. Nasci em abril. Vou andando entre absorto e distraído. O pensamento voa, mergulha no passado distante. Sou adolescente, e, deitado na rede, livro de Dumas pousado no peito, sonho com uma Paris medieval, onde os mosqueteiros do rei defendem a rainha das astúcias ciumentas do cardeal Richelieu. Ah, Dumas. Percebo um mendigo. Não parece, não olha os passantes, não pede, mas a tigela pousada no papelão, à sua frente, não o nega. Seus olhos não desgrudam do livro, grosso e novo. Não consigo perceber o título. Deixo-lhe algumas moedas. Agradece, sem me olhar. Sigo em frente. Paris, Paris, onde andará esse mendigo, os mosqueteiros, a bela Ana de Áustria e o cardeal Richelieu?