sábado, 11 de outubro de 2025

ESTAMOS CONDENADOS?

 



Honório de Medeiros

 
De Um Cigano Fazendeiro do Ar, densa biografia de Rubem Braga que devemos a Marco Antônio de Carvalho, colho um trecho da carta que João Neves enviou a Borges de Medeiros em 20 de julho de 1932, na qual ele se refere a Getúlio Vargas, todos companheiros muito próximos na Revolução de Outubro de 1930:

Eu preferia que o Dr. Getúlio Vargas fosse um tirano. Perdôo mais os violentos que os astutos. Mas o nosso ditador é um homem gelado, calculista, escorregadio. Não ataca, desliza. Não enfrenta, corrompe. Não congrega, divide. (...) Desbaratou o poder civil. Desmoralizou o Exército. Aniquilou o sentimento local. Amesquinhou a justiça. Instituiu o regime da delação. Oficializou a vingança contra os que o ajudaram a subir. Esqueceu os compromissos. O favoritismo é uma instituição. A negociata é a regra. Enfim, a República Nova com dois anos de idade incompletos, é mais corrupta do que foi a Velha, com mais de quarenta e um.

Em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx, no primeiro parágrafo, afirma que a história acontece “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Assim como a terceira, a quarta, a quinta...

Desde o início da história do Homem, até os dias de hoje, mudaram os artefatos: antes, as ferramentas de pedra; hoje, a internet. Não parece ter mudado o Homem.
Percebe-se isso claramente com a leitura de A Assustadora História da Maldade, de Oliver Thomson; Prestígio Editorial, trágica compilação.

História antiga, essa da maldade. Em Thomson, lemos:

O Egito foi unificado por Menés por volta de 3100 a.c. Talvez o primeiro herói conquistador da história (e mesmo ele era semimítico) tenha sido Horus Ro, do Egito, cujo filho era conhecido como "O Escorpião", príncipe que explorou o medo em grande escala para impor sua vontade. Fundou a Iª Dinastia por volta de 3000 a.C. Em honra às suas vitórias, fez sacrifícios humanos a Ra, o deus do Sol. Seu herdeiro, Horus, supostamente matou 381 prisioneiros de guerra e arrancou a língua de 142. Esse é o primeiro registro de um imperialismo sádico e egocêntrico que reaparece de tempos em tempos nos próximos 5 mil anos.

Antigos demais, tais fatos, para que chamem nossa atenção? Leiamos novamente o último parágrafo do texto acima. Agora, leiamos o texto abaixo, do do pensador da modernidade, o sociólogo Zygmunt Bauman, pinçado de Isto Não É Um Diário:

As nações relutam em aprender; e, quando o fazem, é sobretudo a partir de seus erros e equívocos passados, do funeral de suas antigas fantasias. Enquanto o Pentágono rebatiza a Operação Liberdade no Iraque de Operação Nova Aurora, diz Frank Rich, citando o professor Andrew Bacevich, de Boston, "nome que sugere creme para a pele ou detergente líquido", 60% dos americanos creem – agora – que a Guerra do Iraque foi um engano, mais 10% a condenam como algo que não vale a vida dos americanos, e apenas um em cada quatro acredita que essa guerra o tenha tornado mais seguro em relação ao terrorismo. O custo oficial da guerra para os americanos é hoje (no momento em que o presidente Obama pede aos americanos que "virem a página sobre o Iraque", estimado em US$ 750 bilhões. Por esse dinheiro, cerca de 4.500 americanos e mais de 100 mil iraquianos foram mortos, e pelo menos 2 milhões de iraquianos foram forçados a se exilar, enquanto o Irã acelerou seu programa nuclear, e "Osama bin Laden e seus fanáticos" foram liberados "para se reagrupar no Afeganistão e no Paquistão".

De lá para hoje, o que mudou? Se mudou, não foi para pior?

Estamos condenados?

Que lhes parece?


honoriodemedeiros.@gmail.com /  @honoriodemedeiros 
Arte: rabiscosdeumlapisdesgastado.blogspot.com

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

DE PAI E MÃE, OS MEUS


 Francisco Honório de Medeiros e Aldeiza Fernandes de Sena Medeiros


* Honório de Medeiros

 

Para Elza Sena, onde estiver.


Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o texto.

Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos. Um adjetivo é um instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta.

Texto somente com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo, um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.

Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar; meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas. Completavam-se.

Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre eles, falando. Tinham longas conversas em silêncio.

Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o gelo”, disse-me.

Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração; ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, em Mossoró, era minha mãe.

Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.

Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.

Demonstravam afeto de formas bastante diferentes: mamãe abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos, perguntando, dando conselho, participando diretamente.

Papai somente me beijou uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos. Fiquei abismado. Engoli meu choro.

Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.

Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos meandros da fé.

Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e os santos de sua estima.

Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma empresa familiar de beneficiamento de algodão.

No final, dois aposentados, contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas contas bancárias no final de cada mês.

Entretanto, nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa, a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios. Tinham, até mesmo, um fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) da aposentadoria de meu pai.

Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e morrer.

Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu pai.

Terá sido ele feliz? Acho que ter se afastado da sua viola amada, por injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da empresa onde era empregado, acentuou sua melancolia de nascença.

Entretanto tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, verdes, esquivos, brilhavam quando chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.

Desde há muito desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual minha mãe, acredito e pronto. Ponto final.

Sigo Blaise Pascal: em crer, mal não há.

Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha crença: a de que, morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro de lavanda inglesa de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço enquanto dedilhava a viola.

Deo gratias, laeti simus.


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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

ARIANO SUASSUNA E A ARISTOCRACIA PELO ESPÍRITO

 

Ariano Suassuna


* Honório de Medeiros


Muito interessante a apresentação que Ariano Suassuna fez da obra de um seu parente, Raimundo Suassuna, acerca da genealogia da família que lhes deu o sobrenome. Trata-se de Uma Estirpe Sertaneja Genealógica da Família Suassuna (A União; 1993; João Pessoa).

Ariano, a quem Raimundo Suassuna pedira que fizesse uma apresentação "simpática", de seu livro, praticamente escreveu um ensaio no qual abordou dois temas que me chamaram a atenção: seu orgulho por ser um "Suassuna"; e o seu conceito de "aristocracia". 

É preciso que se diga que o orgulho de Ariano com o fato de pertencer a essa lendária família nordestina é decorrente da intensa, profunda, ligação que ela tem com nosso Sertão. 

Por outro lado, Ariano entende que existe uma aristocracia pelo espírito, que é profundamente diferente daquela resultante de títulos nobiliárquicos. 

Ele estabelece essa diferença confrontando o "homem", com o "cortesão".

Quanto ao cortesão, chega a manifestar, implicitamente, um verdadeiro asco dos títulos comprados, recebidos por favores prestados através de subserviência, barganhados, ou oriundos de qualquer outra forma utilizada por serviçais do Poder que caracterizam, em última instância, o comportamento dos alpinistas sociais. 

A verdadeira aristocracia, para Ariano, é aquela adquirida pelo espírito. Essa nobiliarquia é decorrente de uma postura moral ilibada, aliada a um exponencial senso de honra e vocação pública. Aristocrata, então, seriam Albert Schweitzer, Gandhi, Albert Sabin, entre outros.

Titãs morais, verdadeiros cavaleiros da távola redonda, homens sem mácula e sem medo, sempre à disposição dos injustiçados ou a serviço de causas mais que nobres.

Individualidades poderosas, que se recusaram ser conduzidas, cooptadas, amordaçadas.

Não aceitam ser a folha que o rio leva para o mar; muito antes, pelo contrário, assemelham-se às represas que domam a marcha das águas.

Essa aristocracia pelo espírito de Ariano é fecundada, em termos ideológicos, por um socialismo que lembra o cristianismo primitivo em sua perspectiva ética.

É como se o grande escritor acreditasse que a verdadeira revolução seria aquela promovida através da encampação da dignidade como único fulcro da conduta humana, legitimando-a.

Percebe-se, em seu pensamento, um contraponto dialético à ética burguesa que exposta a olho nu, por suas contradições básicas, mostra a conduta humana amesquinhada por obra e graça da lógica do capitalismo. Esse burguês, caricato, cortesão, jamais diria: "ao Rei tudo, menos a honra", mas, sim, "à elite tudo, mesmo a dignidade".

Eis, pois, uma crítica ética ao capitalismo. A busca do lucro, revestida pelo fetiche ideológico da "competição", da "livre concorrência", amesquinharia o homem que aceita participar de tal jogo.

Um aristocrata pelo espírito, cuja conduta é calcada na honra, no senso de justiça pública, recusa-se a aceitar uma competição cujo resultado final seja a obtenção de um ideal tal como, por exemplo, a mera obtenção do lucro.

Talvez haja algo de quixotesco na dimensão humana de Ariano Suassuna. É interessante, entretanto, observar o quanto sua concepção filosófica, nesse aspecto, aproxima-o de Saint-Exupèry, aristocrata pelo espírito e por genealogia, e seus escritos reunidos em Cidadela, livro póstumo.

E, por outra, aproxima-o, também, do "bushido", o caminho do samurai. Perceba-se que Yukio Mishima, em seu comentário acerca do Hagakure, um manual de conduta escrito por um samurai, para samurais, critica asperamente os nobres por ele chamados de "aristocratas de contas de despesas". 

Ou seja, tanto para Ariano, quanto para Saint-Exupèry e Mishima, o Homem, assim considerado, é aquele que transcendeu o apequenamento, o amesquinhamento pessoal, e se tornou um aristocrata pelo espírito.

Aristocrata pelo Espírito: não considerei correto o título "aristocrata do espírito". Difícil dizer por quê. Penso que "aristocrata pelo espírito" expressa com maior clareza a idéia de uma nobreza espiritual - tudo aquilo que caracteriza o humano, como a ética, incluindo, inclusive, o seu pendor místico. 


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Imagem: Arte em Poemia - wordpress.com