sábado, 20 de julho de 2024

NEBLINA MIÚDA, GAROA

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros
 

Cedo da manhã, umas cinco e pouco, afastei a cortina e sondei o céu. Neblina miúda. Lá para cima do mapa, chamam garoa. Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. Fiz um café forte, tomei uma talagada boa, troquei de roupa e tomei rumo, sorvendo aquela névoa que molhava tudo. A passarinhada voava rasante, cantando forte, lambendo o espelho d'água da Lagoa dos Flamboyants, chamando a atenção dos biguás que implicavam com as garças. Bicho do canto sinistro! Caminhei até a embocadura onde fica a pedra da mesa e, mais longe, uma soberba aroeira. Olhei para um lado, olhei para o outro, rezei um Padre Nosso, e resolvi subir mais um pouco. Podia ter lama, escorregão, cobra, aranha... Queria subir umas pedras majestosas no fundo do terreno, na aba da trilha para a Serra. Cheguei. Barulho de asas sustentando vôo. Uma coruja, linda, pousou mais além e ficou olhando desconfiada. Descobri sua toca, entre as pedras. Cumprimentei-a, respeitoso, e peguei a volta. "Ninguém se perde no caminho da volta", disse Zé Américo. Será?
Cerro Corá, 4 de abril de 2024.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

EU E OS GATOS; OS GATOS E EU

 

Imagem: Honório de Medeiros
* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

Tratamos-nos com um certo desdém, um pelo outro.
Eles, porque estendem, a mim, o que sentem pela espécie humana, exceto quando querem algo específico.
Dizem que há exceções. Pode ser. Nunca conheci uma.
Eu, pelo meu lado, penso que percebo o caráter manipulador de cada um deles.
Posso estar enganado. Engano-me muito acerca das coisas. 
O certo é que, no final das contas, respeito a atitude blasé que eles esgrimem com rara habilidade. 
E, convenhamos, que são elegantes, lá isso são...
Natal, 7 de abril de 2024.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

UM SORRISO LINDO, FELIZ

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

Subia eu a estradinha de barro do Sítio Feijão, na Serra do Camará, e ela vinha no sentido contrário, chutando a bola, pés descalços.

Era umas sete da manhã. Quando foi chegando perto, sorriu, um sorriso maravilhoso, feliz.

Eu parei, ela parou. Bom dia, bom dia. Vai jogar onde? Na casa de uma amiga. Sua casa é longe? Não. Já tomou café? Já. Lá tem para mim, eu tou com fome. Tem, vamos...

Ô meu Deus, meu coração ficou do tamanho de um rolimã...

Hoje, não. Você gosta de bolo? Gosto, bolo da moça.

Posso tirar uma foto sua? Pode.

Como é seu nome? Maria. Maria, sua casa é aquela, eu disse, apontando. É. Você tem bonecas? Só uma de pano. Pois até logo, eu já vou. Até.

E saiu correndo, chutando a bola, com aquela inocência maravilhosa dos puros de coração.

Nunca mais a vi.

Maria, onde está você? Estou lhe devendo um bolo e uma boneca...

Serra do Camará, muitos anos atrás.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

BALAIO DE GATOS


 Imagem: Honório de Medeiros
* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

Balaio de gatos.

Os três bem juntinhos, enrodilhados uns nos outros. O vigia observando.

Minha sombra se projeta por sobre a trilha, enquanto na margem esquerda, da mata que margeia o lago, escuto o deslocamento do gato Rei, que nunca aparece.

Já contei, lá, certa vez, treze. Dizem que vai a vinte ou mais.

Seu T me disse que tanto gato assim, liderados pelo gato Rei, sempre entre a água, de um lado, e o bosque de pedras do outro, com a estradinha no meio, tem a ver com a história dos três rapazes.

Eu vinha de um samba, contou ele, lá pelas três da manhã e, no mesmo canto vi, em sentido contrário, três rapazes vindo.

Não falavam nada, não vi seus rostos, só andavam. Roupa comum. Passei por eles, dei com a mão, olhei pelo retrovisor, olhei pelo outro, pelo vidro traseiro, e nada.

Tinham sumido. Parei o carro, desci, botei os olhos para tudo quanto era canto, e nada. Me arrepiei todo, me benzi, entrei no carro, o coração saindo pela goela, e disparei.

Você já tinha ouvido essa história, perguntei. Já, mas não  me lembrei, na hora. E o que mais me impressionou, depois, foi que eu não me lembrava do rosto deles.

Era como se eu não tivesse visto. E não vi.

Seu T não é homem de mentiras. Não que eu saiba.

Cerro, estrada dos flamboyants, 1 de maio de 2024.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

A PALAVRA É ARTE FUGIDIA, UMA ARMA


* Honório de Medeiros
@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros.blogspot.com

"As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios", disse Raduam Nassar em Cantigas d'amigos (Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna).

Ariano, entrevistado pelo "Cadernos", em certo momento lembrou: "não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (...) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo".

Retruca o "Cadernos": "Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada".

Qual uma confraria de amigos, na Idade Média, digo eu, onde foi iniciada essa tradição. Montaigne e Boétié, por exemplo.

Assim é, assim será o caráter dos tempos atuais e futuros, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo, e as palavras, mesmo quando amalgamando belos e profundos textos, manjar para poucos.

A palavra é arte, arte fugidia, de domínio difícil e angustiante.

Relendo "O Crime do Padre Amaro" do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário: 

- "Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma".

A palavra é uma arma.

Recordo-me que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante, nos tempos medievais. 

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo.

Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo aquela que suscita nossos delírios: arma com a qual nos ferimos.

Natal, em 7 de março de 2015

Imagem por Honório de Medeiros, de poema anônimo, escrito em muro sacro.