quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

HOMEM, QUEM ÉS?



Honório de Medeiros

Esse homem que o acaso colocou em minha frente é uma incógnita. Nada sei a seu respeito. Se observo os detalhes que a sua aparência externa coloca ante meus olhos, e concluo algo, posso incidir em uma oceano de erros. Afinal, sob seu verniz de civilização pode se ocultar qualquer ignomínia.

Não faz pouco tempo, foi ele gentil com uma criança. Vi, mesmo, de soslaio, a mãe lhe sorrir complacente, como quem acha muito natural receber, sua cria, as atenções do mundo. O gesto me fez lembrar as contradições do ser humano. Ele mesmo, o observado, que desarrumou, com um afago, os cachos do cabelo da criança, em outra ocasião, outra circunstância, uma guerra, talvez ordenasse um bombardeio que vitimaria tantos outros sorrisos infantis.

Por certo não falo a mesma linguagem que ele. Quantas formas há de entender uma só palavra? Malsã atividade, a dos lógicos, a dos filósofos da linguagem, que pretendem descobrir o meio de diminuir a distância entre aquilo que percebo e o que digo. Se lhe chamasse a atenção e perguntasse algo, poderíamos divergir tanto, e acerca de coisas tão banais...

"Todavia, entre mim e esse homem glacial, sinto todos os espaços vazios que separam os homens". É como disse Saint-Exupèry, em um artigo para o Paris-Soir, em 1935, contando sua experiência de viajar, à noite em um trem repleto de mineiros poloneses que voltavam à sua terra natal, expulsos da França pelas contingências da economia.

Vazios semelhantes àqueles expressados por Elliot, em "The Waste Land": a angústia da constatação da impossibilidade da comunicação humana; a percepção de sua solidão essencial, primitiva, indescartável. 

"Estou mal dos nervos esta noite. Sim, mal. Fica comigo.
Fala comigo. Por que nunca falas? Fala.
                  Em que estás pensando? Em que pensas? Em quê?
Jamais sei o que pensas. Pensa."
 

"Penso que estamos no beco dos ratos
Onde os mortos seus ossos deixaram."
(Uma Partida de Xadrez, Elliot). 

Poderia o amor, esse sentimento tão tipicamente cristão, aproximar os homens? Desnudar sua alma, lhe fazer não rir, nem chorar, mas compreender, como queria Spinoza? Dar, a eles, a capacidade de transcender a mesquinha luta pela sobrevivência, que coloca em lados opostos os que deveriam semear juntos?

Ou essa é uma missão utópica, e não há tempo para sentir quando não conseguimos refletir acerca dessa misteriosa rede de aliciamento e cooptação que nos induz a darmos o pior de nós mesmos em praticamente todos os momentos de nossa vida?

Podemos ter alguma esperança, mesmo depois de tantos mil anos de aperfeiçoamento na capacidade de destruir, matar, e nenhum progresso quanto ao ideal de fraternidade humana?

Saint-Exupèry, esse tão injustamente banalizado filósofo da melancolia, da nostalgia, já dissera: "É absolutamente necessário falar aos homens". Em sua "Carta ao General X", escrita em La Marsa, perto de Túnis, julho de 43, para o “Le Figaro Littéraire”, ele denuncia: "Ah!, General, só existe um problema, um único, em todo o mundo. Restituir aos homens uma significação espiritual, inquietações espirituais. Não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo?"

Um sentido para a vida.

Teria a vida sentido?

Se nos indagassem: "homem, que és tu?", teríamos que responder "aquele em cuja biblioteca os livros de poesia perderam seu lugar para os de computação?". 

Meu companheiro anônimo se fora. Tinha perdido, eu, a chance de lhe falar acerca de tudo isso que poderia nos aproximar ou afastar: a solidão, o sentido da vida... Não seria dessa vez que construiríamos uma ponte entre a clausura de nossas almas.



domingo, 6 de janeiro de 2013

O VELÓRIO


Charles M. Phelan

...
As razões de minha tarefa não importam nesse momento. Apenas importa o fato de que não há maior solidão que observar um morto. É como estar morto.
Nunca cuidei de um cadáver antes. Já cuidei de muitas outras coisas, mas nunca de um morto. Distintamente observei algo peculiar relegado apenas àqueles, penso eu, que se submetem a este ofício.
Uma delegação tão psicologicamente severa que agi com intemperança e repugnância diante da ordem, sussurrando excrementos de indignação ao meu mandante, inconsistentes com o decoro de quem deve obedecer fielmente sem questionar.
Ah! Como me abalaram os dias que antecederam aquele momento. Sofri de dores intensas. Cada segundo e minuto e hora que simplesmente me atormentaram ao longo dos dias. Meu Deus de todas as divindades (em mãos, o meu rosário de contas vermelhas), por qual razão as angústias d’alma não me deixam a mente? Já não basta a doença que me afligi?
Não pude resistir a uma ordem superior. Surpreendido, acatei. Meu coração palpitava desconcertado.
Minha insatisfação cresceu e meus dias foram ocupados por pensamentos que ora me paralisavam a mente ora me enfraqueciam o corpo. Noite e dia perderam seu ritmo natural e meu relógio biológico passou a rejeitar as demandas tão próprias da fisiologia humana. Meu ciclo circadiano desordenou-se. Contrario a lógica, a escuridão da noite me mantinha em vigília, enquanto o dia me conduzia à exaustão absoluta. Supliquei, inutilmente contra minha tarefa de observar o morto. Apelei com orações celestiais ao meu mandante para que noutro momento, num futuro mais adiante ou noutra oportunidade mais conveniente, me fosse delegado o encargo. Mas não agora. O silêncio veio como resposta e meu apelo foi rejeitado tacitamente.
Essa seria a minha vez.
E assim foram todos os dias até o meu encontro com o morto. O que poderia um morto fazer comigo? Nada no plano físico, eu sabia. No plano psicológico, todavia, muitas coisas. Sem opção, fui ao seu encontro, mas antes de nos apresentamos por completo observei-o a distancia. É preciso cautela nas apresentações, principalmente a que estava prestes a acontecer.
Lá estava ele, mortinho-mortinho, imóvel, não por opção, visto que naturalmente o estado de morte não é objeto de escolha para maioria das pessoas, e sim, talvez, derivado da velhice ou por razões acidentais ou planejadas ou por alguma doença. A verdade é que hoje eu iria vigiar um cadáver. E ele já estava ali, a alguns metros do meu olhar precavido.
O corpo encaixotado em madeira de carvalho vestia um paletó cinza que me apetecia o gosto, lembrando-me, pelo estilo do corte, um modelo que parecia cair bem estivesse eu naquele predicamento, ou não. Pensei em algumas ocasiões durante minha observação, que o caixão me caberia perfeitamente. Fisicamente não havia diferença entre eu o morto e, se alguma houvesse, meu tanatopraxista certamente usaria de algum artifício técnico de modo a me acomodar no interior daquele confinamento.
Cheguei mais perto. Investi em sua direção antes de correr o risco de ser observado primeiro. Que loucura, ele estava morto. Olhei-o lentamente direto na face lânguida e pálida. Parecia anônimo num primeiro olhar, mas o foco dos meus olhos absorveram suas feições em minha memória, encontrando familiaridade em lugares do meu cérebro onde passado e presente se misturam.
Passei a recorrer por todos os cantos da minha memória buscando uma identificação daquele homem. Não bastava a agonia de estar sozinho ali, agora tinha também a preocupação de que estava na companhia de um conhecido.
Não consegui identificar completamente as feições do morto muito provavelmente por nunca, na condição de vivo que estou, ter conhecido alguém, pela primeira vez, penso, naquele estado. Lembrava meu pai de certo modo, mas era jovem por demais. Poderia ser um irmão um pouco mais novo. Mas eu também não tinha irmãos mais jovens. Eu era o mais jovem dos cinco irmãos, e havia muito tempo que não ouvia falar deles. Prossegui tentando
identificá-lo. Apalpei seu rosto relegando ao tato as resposta de minha angústia. Meu Deus quem será esse homem? Pensei.
Permaneci por certo tempo recostado contra o pesado caixão observando aquele semblante, mas após alguns instantes a ausência de respostas me causou uma inquietação. Meu coração desencadeou batimentos descompassados que levariam qualquer maestro a loucura se postas numa partitura. Um calor interno intenso me fazia recorrer ao lenço de bolso. Passei a andar em sentido horário em volta do caixão. Olhei os detalhes de cada ângulo de sua face, pescoço e cabelo. Observei cada segmento do rosto separadamente, atento as simetrias da familiaridade. Talvez se os olhos estivessem abertos tudo seria mais fácil e a identificação mais acurada. São nos olhos os traços mais fortes da compleição humana. Do tronco observei apenas o porte dos ombros, e por eles avaliei o peso. Pelo comprimento do caixão, a altura. Da pele jovial, ainda que através da perfeição da maquilagem, e mesmo sob o efeito sui generis da morte, estimei a idade.
Uma criatura de razoável beleza, mortinha, mortinha. Os olhos cerrados como de praxe e harmonizados pelos retoques impecáveis de um profissional preparador de defuntos que, num primeiro olhar, provoca no observador o singelo comentário, “aahhh.. pela expressão, ele morreu em paz. Que Deus o tenha.” Eu não enxergava nada - nem sinais de paz nem de desassossego. Meus olhos não desgrudavam do desejo de reconhecer aquele gentleman.
Confesso que não sei se há paz na morte. Por ser a paz um estado de espírito, como um cadáver, como simples manifestação da armadura física desse espírito, pode provocar qualquer comentário de que morrera em paz?
Jamais os vivos se reconciliam com a morte
As horas se passavam e em breve a casa funerária abriria as portas para a última visita de amigos e familiares. Forcei a mente como se estivesse a empurrar a massa cinzenta de meu cérebro até as profundezas do meu inconsciente. Retoquei a testa com o lenço já encharcado. Não queria que aquele homem fosse enterrado sem que eu pudesse identifica-lo. Tornei a observá-lo intensamente.
Em breve, após os primeiros visitantes, a tampa seria fechada, e eu seria deixado para sofrer com sua imagem que me perseguiria para o resto da vida.
O caixão possuía uma tampa daquelas que se dividem em duas. Uma parte expunha o tronco e a cabeça. A outra, fechada, expunha da metade para baixo.
Meu desejo de identificar o homem do caixão virara uma obsessão. Baixei a cabeça fingindo estar em oração. Cobri parte do rosto com o lenço. Fixei meu olhar no chão e no morto. Ao meu redor pude observar a presença das primeiras pessoas e nada mais. Um silêncio enorme engoliu o lugar. Mantive a mesma postura roubando, sub-repticiamente, uma visão do gentleman. Insisti em lembrar do homem, mas já estava sem a energia necessária para o meu intento. O silêncio continuou. Havia algumas pessoas, mas não consegui ouvir um único som. Nada. Nem um respirar.
Inconformado, recuei. Sempre de cabeça baixa. Fui até o fundo do salão em silêncio, no contra fluxo dos que se aproximavam do caixão.
Levantei a cabeça levemente percebendo o vulto e o fechamento da tampa de carvalho pesado. Todos estavam sentados de costas para mim, com exceção dos homens que marchavam lentamente em minha direção e para fora do salão trazendo o pequeno caixão. Cada qual de posse de uma das quatro alças.
Finalmente, levantei por completo a cabeça, olhei e olhei com atenção até que, já bem perto, reconheci os traços dos quatro homens que traziam o caixão.
...