sábado, 31 de dezembro de 2016

O SERVIDOR PÚBLICO E AS ELITES

* Honório de Medeiros

Costumava iniciar, ano a ano, quando ensinava, o curso de Filosofia do Direito, dizendo a meus alunos que filosofar é desvendar a realidade, como se esta tivesse véus que a ocultassem e, por assim ser, impedissem os menos persistentes de encontrar a verdade que ela insistia em nos esconder.

Essa imagem inicial guarda débito, óbvio, com a bela elaboração da mitologia hindu, que nos apresenta a deusa MAYA enquanto responsável pelo ocultamento da realidade tal qual ela é, bem como de não percebermos que tudo quanto nos cerca nada mais é que pura ilusão, um devaneio infindável a nos impedir o verdadeiro conhecimento.

Um desses véus mais persistentes é – se pudermos usar essa imagem para melhor explicarmos – aquele que despersonaliza a ação concreta do ser humano e a atribui a uma abstração, como é o caso da ideia de Estado.

Ouvimos e vemos sempre que o Estado não se faz presente, no caso do Brasil, desde épocas passadas, na luta contra a desigualdade e exclusão social – algo inquestionável, por sinal, pois podemos constatar que, de fato, evoluímos quanto ao aparato tecnológico com o qual a lógica do capital se instaura, mas não conseguimos solucionar questões comezinhas como a da eliminação do analfabetismo.

Não é o Estado que não se faz presente. Somos nós mesmos que estamos ausentes. Despersonalizar a ação de quem detém o poder, mascarando-a com esses artifícios, dificulta sua responsabilização.

Outro véu onipresente é aquele que nos impede de apreendermos como se instaura uma determinada lógica na ação daqueles que detém o Poder.

Uma vez instaurada, essa lógica passa a fazer parte do nosso cotidiano sem que, em qualquer momento, passemos a questioná-la em seus fundamentos básicos. É o caso da persistente e programada despersonalização da ação da elite, através de artifícios que pretendem legitima-la, haja vista o caso do atual conceito vigente de Estado, que deixa de ser o “topos” onde ocorre a ação, para ser o instrumento burocrático atrás do qual se esconde o processo de instauração dos mecanismos do Poder.

Podemos considerar que a despersonalização é conseqüência coerente da necessidade de ocultar o real. Seria como uma manobra diversionista, se utilizássemos a linguagem da guerrilha. E qual é esse discurso real? Lembremo-nos que, no Brasil, desde a ocupação portuguesa, o espaço público foi privatizado. Não é desconhecida a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei solicitando regalias para sua família. Tampouco o é o episódio das Capitanias Hereditárias.

O fato é que, desde o início, e até o presente, esse espaço público pertence à elite e esta tem se revelado de um atraso inigualável.

Raymundo Faoro demonstra, em sua obra “Os Donos do Poder”, criando o conceito de “estamento”, o quanto, ao longo dos anos, até o presente, a elite privatiza o público e o utiliza em proveito próprio.

Ou seja, segundo Faoro, no capitalismo brasileiro não há, necessariamente, uma apropriação dos meios de produção por parte da elite, mas, sim, uma privatização do espaço público em proveito próprio. Assim é que vemos filhos de juízes sucederem aos pais, generais aos avós, deputados aos antepassados e assim por diante.

A vingança dos excluídos tem sido, ao longo do tempo, variada, mas permanente. Não é à toa que na literatura, na música, na arte, de uma forma geral, o “barnabé” é sempre motivo de chacota. Mas o resultado é inócuo. Continuamos tendo o espaço público privatizado.

Essa ação da elite tem seu preço: a ampliação do espaço público, o gigantismo, o excesso de burocracia. Burocracia: mais cargos para atender a demanda, mais ações para atender a procura. Com a globalização, essa burocracia passou a ser um entrave para o grande capital internacional legitimado pela doutrina do “Consenso de Washington”. A ordem passou a ser: devemos nos render ao Estado mínimo.

Chegamos, agora, ao ponto fulcral desta análise. 

A doutrina que passou a prevalecer após o ideário do “Consenso de Washington” exige um Estado mínimo para que não haja dificuldade na circulação do capital. Este tem que vir e voltar logo, bem mais gordo, para os bolsos de quem o possui. Para que não haja dificuldade nessa circulação, é necessário impor a ótica financeira na ação governamental. Essa ótica financeira demanda opções típicas de mercado, como equilíbrio nas contas públicas e pagamento dos juros extorsivos do dinheiro emprestado pelos organismos internacionais.

Portanto, as políticas públicas de longo alcance, bem como os serviços e servidores públicos através dos quais elas são realizadas devem desaparecer para que a lógica do capital prevaleça, em detrimento dessa meta intangível.

Não é à toa que os políticos somente pensam em termos de obras físicas. Acaso o investimento em uma meta real, concreta, significativa, de erradicação do analfabetismo traria retorno em termos de voto e dinheiro para financiamento de campanhas políticas? Construir uma ponte, sob o argumento de que é preciso desenvolver, traz retornos mais concretos, segundo essa ótica, que investir na erradicação da mortalidade infantil!

Também não é à toa o surgimento da publicidade: o “Governo investiu tantos milhões em obra tal e qual”, e a sociedade esquece que mais importante é alcançar metas mais abstratas, como a diminuição dos índices de violência pública. Sem contar que o discurso para legitimar as obras é impressionante em sua vacuidade: "construamos para acelerarmos o desenvolvimento e aumentarmos a riqueza; em aumentando a riqueza, todos ganharemos".

Claro, o capital precisa de rapidez para circular. Então construamos estradas, rodoanéis, viadutos, pontes e outros mais, e esqueçamos o analfabetismo, a mortalidade infantil, a exclusão social, porque a riqueza vai circular mais rápido e tornar mais rico quem detém o capital, mas a desigualdade permanecerá, como o demonstra o crescimento desde Getúlio até os dias de hoje e a permanência dessa mesma desigualdade.

Nesse afã de tornar o Estado mínimo, faz-se a política da terra arrasada: não temos tempo nem queremos distinguir entre o que vale e o que não vale a pena eliminar: todo serviço público é ruim, e todos os servidores são ineptos.

Esse é o discurso da elite financeira a encontrar eco na sociedade nauseada com o mau serviço público e os maus servidores que existem exatamente na justa medida da apropriação do espaço público pela elite ansiosa para se locupletar.

Assim, aquilo que parece óbvio, qual seja a recompensa pela vocação do servidor, uma aposentadoria digna, está desaparecendo e, com ela, o interesse em se devotar ao Estado.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

TERESA VEIGA E ANATOLE FRANCE



* Honório de Medeiros

Por que quando li, pela segunda vez, "Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín", da elegante escritora portuguesa Teresa Veiga, me lembrei do meu "O Crime de Sylvestre Bonnard", do não menos elegante Anatole France? 

Não tive dúvida. Fui relê-lo também.

Não é nada, não é nada, mas é de pequenas conexões como essa que nos alimentamos, desde muito cedo, todos quanto se entregaram aos livros, tomados por uma paixão que desmente Spinoza, para quem "Uma emoção deixa de ser paixão assim que formamos uma clara e distinta ideia acerca dela."

Gostaria de perguntar a Teresa Veiga se ela leu Anatole France.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

ONDE NASCEU MASSILON

* Honório de Medeiros. 

Em relação ao local de nascimento de Massilon há sérias divergências.

Raul Fernandes diz que ele nasceu em Patos, PB. Raimundo Nonato também afirma isso. Frederico Pernambucano de Mello informa que Massilon teria nascido em Luis Gomes, RN. Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena concordam, mas apontam suas origens como sendo Borges, às margens do Rio Jaguaribe, entre Russas e Jaguaruana.

Raimundo Nonato de Lima, pesquisador “outsider”, casado com Dna. Salete Leite, filha de Fenelon Leite, irmão de Massilon, me informou, por telefone, que o nascimento se dera em Areias de Baraúna, uma povoação de Patos, PB, na época. A informação corroborava aquela prestada por Valdecir Pereira Leite no que dizia respeito ao nascimento de Dna. Aurora[1], sua mãe, e depois confirmada com sua Certidão de Óbito.

Valdecir ressalvava que sabia ter nascido sua mãe em Patos, PB, mas não podia afirmar que Massilon teria nascido na mesma cidade. E acrescentava um dado intrigante: Mamãe dizia que sua família teria vindo de Timbaúba dos Mocós, PE, para Cacimba de Areias, Patos, PB. Depois é que vieram para Pombal, PB.

Em Patos, fui ao Cartório de Registro Civil. Em um livro próprio estavam os registros de todos quantos tinham nascido em Patos, aí abrangendo Cacimba de Areias e Areias de Baraúna, desde 1840 até 1920. Nele não constava o nascimento de Massilon.

Fui até a Secretaria da Paróquia. Lá também existia um livro no qual estavam registrados os batizados desde meados do século 19 até meados do século 20.

Entretanto, para poder ser feita a consulta, era necessário fornecer os nomes dos pais. Esse era outro problema. Eu, nem ninguém, mesmo a família, parecia saber com precisão os nomes dos pais de Massilon.

Pedi à funcionária que procurasse apenas pelo nome Massilon. Ela nada encontrou. Pedi-lhe que procurasse Massilon tendo como pai José Leite. Ela também nada encontrou. Lembrei-me que Valdecir tinha me dito que Dna. Aurora dizia ser José Gomes de Oliveira, e não José Leite, o nome do seu pai.

Dna. Dulce, Maria Dulce Leite Barros, casada com o ex-cantador de viola Gérson Carlos de Morais, setenta e sete anos, tinha dito a mim, a Ernane Fernandes Lima e ao Professor Pereira, que José Leite era, na verdade, José Gomes de Melo[2].

Pedi, então, à funcionária, que a essa altura já se movia impelida pela curiosidade, que procurasse qualquer nome cujo pai fosse José Gomes. Minha idéia era que se encontrássemos algum nome, e ele fizesse parte da relação que eu possuía dos irmãos de Massilon, finalmente saberíamos dos nomes corretos de seus pais.

Não deu outra. Ela localizou o registro do batizado de Maria, nascida em 8 de abril de 1899, filha de José Gomes de Oliveira e Alexandrina Rodrigues de Araújo. Provavelmente Maria, que eu sabia ser irmã de Massilon a partir do depoimento de seus parentes, seria a segunda ou a terceira. Essa dúvida foi tirada pelo inventário de José Gomes de Oliveira: Maria Gomes de Oliveira fora a segunda filha do casal. Já estava morta quando seu pai faleceu[3].

Infelizmente a funcionária da Secretaria da Diocese de Patos, PB, não encontrou o registro do batismo de Massilon. Ele, de fato, não nasceu em Patos, PB. Lógico que se pode pensar que ele poderia ter nascido e não ter sido batizado.

Não acredito nessa hipótese por que não haveria motivos para seus pais terem batizado Maria, aquela que veio logo em seguida, e não terem feito o mesmo com Massilon.

Dessa forma, a informação dada em entrevista por Valdecir parece estar correta: Massilon teria nascido em Timbaúba dos Mocós, PE, de onde seus pais vieram para radicar-se em Cacimba de Areias, Patos, PB, não se sabe em qual ano. Depois, Pombal, PB, Sítio[4] São Joaquim. Finalmente, Luis Gomes[5], Sítio Japão, RN.

Na época da entrevista com Valdecir ele nos informou que um irmão de seu avô teria morado no Sítio Cabaça, Santa Terezinha, na época Patos, PB. Seu nome seria João Leite. Teria tido um filho, chamado José Mineo Leite, portanto primo de Dna. Aurora, que fora candidato a Prefeito de Santa Terezinha.

Fui a Santa Terezinha, fica há uns vinte quilômetros de Patos. Um senhor que estava em um barzinho onde paramos nos levou a Manasses Alves de Lima, vereador naquela cidade por 18 anos. “Ele sabe tudo”, disse. De fato. José Mineo Leite foi interventor em Santa Terezinha por nove meses, quando da emancipação da cidade. Isso ocorreu em 1961.

“Desse povo”, diz, enquanto olhava do cercado para sua cabraria, “só tem aqui Dedé Mineo, filho do ex-interventor. Mas está viajando. Deixe seu telefone que quando ele chegar eu boto na linha pra você falar.” Nunca ligou. E afirmou nada saber acerca de Massilon, esse sobrinho de João Leite que fora cangaceiro.





[1] Aurora Leite de Araújo, nascida em 15 de dezembro de 1932, casada com Pedro João Pereira Leite, ele nascido no Sítio São Joaquim, Pombal, Paraíba, em 19 de outubro de 1898 – o mesmo ano no qual nasceu Massilon.

[2] Dna. Dulce nos contou a seguinte história: Minha bisavó tinha se casado em segundas núpcias com um Leite, João Leite. Ao casar novamente, tinha um único filho do primeiro casamento, justamente José Gomes de Melo, que passou a ser chamado de José Leite por causa de seu padrasto. Tanto é verdade que ela, Dulce, se lembrava de um baú velho, de madeira, na casa de seu avô, em cuja tampa estavam gravadas as letras J.G.M.

[3] Relação dos irmãos de Massilon, por ordem de  nascimento: Macilon Leite de Oliveira, Maria Leite de Oliveira, Geraldina Leite de Oliveira, Severina Leite de Oliveira, Manoel Leite de Oliveira (o “Pinga-Fogo”), Tercia Leite de Oliveia, José Gomes Filho (Zé Leite, o filho), Aurora Leite de Oliveira, João Leite de Oliveira, Fenelon Leite de Oliveira, Anezio Leite de Oliveira, Sinesia Leite de Oliveira, Juraci Leite de Oliveira, Alice Leite de Oliveira, Noêmia Leite de Oliveira, Dedice Leite de Oliveira.

[4] Podemos considerar como “Sítio” algo menor que um povoado. Algumas casas de zona rural razoavelmente próximas uma das outras, com, talvez, uma mercearia, uma capela, nada mais naquela época.

[5] Segundo Dna. Aurora, seus pais saíram de Pombal para Luis Gomes em 1924. O motivo teria sido a passagem da estrada de ferro por dentro da propriedade de seu pai sem o pagamento da devida indenização. Isso o teria desgostado profundamente. 

* Excerto do livro "Massilon", do Autor.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

CÁ ESTOU



* Antônio Gomes

Não me exporei,
mas cá estou.
Venha a mim, se puder.
Busque-me.
Assim farei eu,
se o desejar.
Nada tenho.
Nada tenho que valha a pena dizer.
Por enquanto.
Nem mesmo sei se tive.
Ou terei.
Eu lhe digo mais, agora,
com este meu silêncio.


* Arte: www.fotolog.com