sábado, 5 de abril de 2014

A QUESTÃO É MORAL



* Honório de Medeiros


Imagine que você precise de uma segunda via do documento do seu carro. Dirige-se ao Órgão apropriado. Em lá chegando recebe uma ficha que indica sua vez de ser atendido. Pelo número da ficha você percebe que não adiantou chegar cedo. Seu atendimento, se acontecer, ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá. No dia seguinte, comentando o episódio com um amigo, escuta dele: "mas por que você não pagou um despachante para fazer isso?" "Ele resolveria tudo na mesma hora e lhe entregaria a segunda via em casa." "Você não teria incômodo algum."

O despachante é aquela figura nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições públicas, providenciando, nelas, soluções para quem não quer se submeter a filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.

A questão é a seguinte: e quanto aos que não têm dinheiro para contratar um despachante? E quanto aos que acordaram cedo, pegaram a fila, esperaram, mas são ultrapassados, às vezes sem saber, pelas artes e ofícios de quem abre, na hora que quer, todas as portas? 

Como se percebe facilmente, trata-se de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro. Moral, aqui, para além de como deve agir o Estado que, conforme a Constituição Federal, deve, por intermédio de seus servidores, agir com absoluto respeito à igualdade entre os cidadão.

É esse o tema do recente livro de Michel J. Sandel, "O Que O Dinheiro Não Compra", professor em Harvard, atualmente professor-visitante na Sorbonne. Sandel ficou midiático desde que seu curso "Justice", no qual interagia com seus alunos lhes propondo questões de natureza moral, apareceu na internet e ganhou o mundo. Em 2010 a edição chinesa do "Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no País.

Sandel elenca muitos exemplos de "coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro. Alguns até mesmo cômicos, se não fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...

Nos EUA, segundo Sandel, é florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou doentes, pagar as mensalidades enquanto ela está viva, e receber a indenização enquanto morrer. Ou seja: quanto mais cedo o segurado morrer, mais o comprador ganha.

O professor considera que "hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo." E não aceita a teoria dos que atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por trás é algo maior, qual seja à "extensão do mercado, dos valores do mercado, a esferas da vida com as quais nada têm a ver."

Eu compreendo esse salto que o professor dá desde a ganância até o mercado. Mas não concordo. Para o professor, o mercado deixa o Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o mercado. Se lá na aurora da história do Homem o primeiro ganancioso tivesse sido silenciado, seu "meme" não teria sobrevivido. Ou será que era para ser assim mesmo, caso contrário não existiria a nossa espécie?

Antes que imputem a mim uma percepção simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma discussão de natureza ontológica acerca da realidade social: em última instância, no que concerne a sua instauração, está o Homem ou a Sociedade? Ou seja: a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é gananciosa?

Aceita a premissa de que a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é ganancioso? Essa questão, a verdadeira questão, não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, por que virou moda escamotear o óbvio atribuindo ao "sistema", ao "meio", a uma "realidade exterior a nós", aquilo que somos individualmente.

Fica mais fácil, em assim sendo, fugir da nossa responsabilidade individual, da moral, do caráter, e nos auto-excluir da culpa por nossas decisões e atitudes.

Exemplo patente dessa perspectiva vil e equivocada, mas compreensível e eficaz, é o escândalo do Mensalão, essa nódoa permanente e intransferível na nossa elite política. Ao invés do mea culpa, mea maxima culpa ao qual temos direito nós outros, os cidadãos inocentes deste País de bandalheiras ao qual sustentamos passivamente ao longo dos anos, bem como à escumalha dirigente e sua soturna vocação para a ladroagem, lemos e escutamos cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas aqui existente.

Ou seja, querem nos fazer crer que quando o irmão de Zé Genoíno foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um dos mais grotescos episódios recentes da crônica da corrupção tupiniquim, assim agia porque o sistema não presta.

Faz parte da própria lógica do aparato intelectual que sustenta uma teoria como essa, a de que o meio cria o Homem - o determinismo social -, a falta de capacidade técnica para compreender aquilo que está em jogo, em termos científicos, embora não lhe falte mecanismos ou artefatos que a protejam da luz crua da verdade. Os defensores de teorias como essas pululam nas redes sociais.

Darwin está aí, basta lê-lo. Aliás, como a grande, a imensa maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que eles não compreendem em seus fundamentos por lhes faltar preparo e leitura, ou então são devedores de um funcionalismo anêmico de tradição funcionalista norte-americana, para o qual a realidade social é um carro que funciona sem a estrada e quem as produz, estão atrasados gerações em relação ao que se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes universidades do mundo.

Não compreendem, mas usam. É mais fácil botar a culpa no Sistema. Como se fosse responsabilidade apenas do meio o fato de sermos como somos, nivelando todos por baixo, inclusive aqueles que, ao longo da história, tornaram-se as nossas referências quando, em alguns momentos, acreditamos no processo civilizatório.

Mas que se há de fazer? Talvez responder à Baronesa Thatcher: não, você se enganou, a ganância não é um bem; o altruísmo, sim, é um bem.

segunda-feira, 31 de março de 2014

A ARENA DAS DUNAS É UMA PENEIRA




* Honório de Medeiros

Começamos a pagar – eu, você, todos nós – R$ 10,2 milhões por mês pela “Arena das Dunas”. R$ 10,2 milhões. À construtora OAS. Pagaremos esse valor até dezembro de 2022. Depois haverá uma redução no repasse. Mas no final dos pagamentos teremos repassado mais de 1 bilhão de reais à construtora. Para ser mais preciso, R$ 1.288.400.000, o equivalente a três “Arena das Dunas”. Somente este ano serão R$ 91,8 milhões.

Enquanto isso Mossoró vive uma guerra civil. Mata-se sem limites, rouba-se, furta-se, na cidade. Convido o leitor a abrir o Blog do BG e tomar conhecimento da postagem “Jornalista narra ‘guerra’ em Mossoró”, que diz respeito a informações veiculadas pelo jornalista Cezar Alves de Lima por intermédio do Twitter. É desesperante ler o que acontece lá.

Enquanto isso o médico Hausemann Morais, ortopedista, plantonista do Hospital Walfredo Gurgel, usa sua página no Facebook para fazer um desabafo. Teclem seu (dele) nome no Google e leiam. É estarrecedor. “Hoje, morando em Natal, venho testemunhando há anos situações no mínimo absurdas: falta de fixador externo, falta de gases, falta de luvas, falta de fios de aço, falta de vagas de UTI, tanta coisa e ainda ter que ver mentiras na TV para disfarçar ou maquiar o caos”, diz ele. E, mais à frente: "Talvez os senhores não tenham dado conta da gravidade sobre a que ponto chegou a saúde do RN. Eu temo! Por mim, por meus familiares, por meus amigos e pelos meus futuros pacientes. Temo muito!"

Mas o detalhe, crucial, cômico, se não fosse trágico, é a informação que nos chega pela rede social hoje, 31 de março, aniversário da Redentora: a “Arena das Dunas”, essa apoteose à incúria, à falta de respeito com a Sociedade, ao desprezo com os mais humildes, ficou alagado durante as chuvas que caíram no jogo América versus Alecrim. Torcedores brincaram nas piscinas formadas pelas águas da chuva. Jornalistas quase não puderam trabalhar com tanta goteira.

É isso mesmo. O complexo batizado pomposamente de “Arena das Dunas” não resistiu às primeiras chuvas. É uma peneira. Uma peneira de mais de um bilhão de reais. Uma peneira que eu, você, todos nós, inclusive nossos filhos, vamos pagar. Uma peneira inútil e desnecessária.

Releio esse comentário e percebo o uso de palavras muito fortes: "desesperante", "estarrecedor"... Um pouco mais de tempo e as palavras serão impotentes, se já não o são, pelo desgaste, quando se trata de retratar uma situação como essa que estamos vivendo. O uso intermitente gera a banalização. É mais um fator a contribuir para a perpetuação da ignomínia. De tanto conviver com o mal terminamos nos tornando indiferentes a ele.

O pior é lermos as desculpas dos gestores. Quase sempre se escudam no desempenho de seus iguais em estados vizinhos. Deveriam ser exceção, ficam satisfeitos por serem a regra. Da incompetência.

* Com imagem captada do Blog do BG