quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

ESPECIALISTAS, O TEMPO DELES

* Honório de Medeiros

É o tempo dos especialistas. Sabem cada dia mais acerca de cada vez menos.

Chegará um dia em que saberão quase tudo acerca de quase nada.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

POLÍTICA, XADREZ E FUTEBOL.

Tigran Petrosian

* Honório de Medeiros

Cheguei em Natal, vindo de Mossoró, para estudar, em 1974. Escolhi, depois de alguma hesitação, a antiga Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, e não o Marista, para onde foram meus amigos de infância. Na Etfrn dei três passos no rumo do que seria onipresente em minha vida, de uma forma ou de outra: escrever e ser lido, mesmo que por (muito) poucos, o jogo de xadrez, e a política.

Na Etfrn eu e Rui Lopes criamos o jornal mural "A Capa", sucesso entre os alunos, que causou alguns incômodos à administração da imensa figura humana que foi o Professor Arnaldo Arsênio por sua postura, digamos assim, meio inconformista, ao ponto de sermos chamados a seu gabinete para uma "admoestação" carinhosa.

Fui, também, para meu orgulho, Presidente do Centro Cívico Escolar Nilo Peçanha, o que me introduziu na política estudantil. Naquela época, plena ditadura, implantamos na Etfrn uma experiência inédita: debate direto entre a direção e os alunos realizado sempre no Ginásio de Esportes, o que me levou a ser convidado pelo Padre Sabino Gentilli para dar uma palestra aos colegas do Salesiano. O primeiro deles foi exatamente com o Professor Arnaldo Arsênio.

Por outro lado representei, após o maior enxadrista norte riograndense de todos os tempos, Máximo Macedo, as cores da Etfrn nos disputadíssimos Jogos Estudantis do Rio Grande do Norte, o JERNS, com Alexandre Macedo, e sua hegemonia de nove anos obtendo a medalha de ouro. Naquele ano, 1975, conseguimos acrescentar a décima medalha de ouro consecutiva à coleção da Escola.

Ironia do destino: no ano seguinte quebramos, eu e Gilson Ricardo de Medeiros Pereira, outro depois notável enxadrista potiguar, a hegemonia da Etfrn e conseguimos, para o Churchill, creio que sua primeira medalha de ouro no xadrez.

Gilson Ricardo, eu, Maurício Noronha, Wilson Roberto, Dilermando Jucá, João Maria "Tarrasch" e Jairo Lima constituíamos a turma mais jovem que frequentava o P4BR Clube de Xadrez, de saudosa memória, do qual cheguei a presidente. Funcionava no último andar do Edifício Barão do Rio Branco, no mesmo andar onde Manxa, excepcional artista plástico do nosso Estado, tinha seu estúdio, e, assim como nós, invadia as madrugadas nos dias-de-semana e sábados até a hora de irmos embora a pé, sem medo de absolutamente nada, por uma Natal adormecida.

Conversávamos muito, na época, acerca de xadrez: seus jogadores do passado, os grandes feitos, a história do esporte/arte, a situação local, quais torneios participaríamos, mas o importante mesmo era discutir a grande questão: a qual estilo nós, individualmente, nos filiávamos: seríamos posicionais ou táticos? Privilegiávamos a defesa ou o ataque?

Quem defendia o estilo posicional tinha, como ídolo, Tigran Petrosian; quem assumia o tático incensava Mikhail Tahl. Ambos eram, se podemos dizer assim, os maiores representantes de cada um dos estilos, segundo o entendimento dos estudiosos do assunto.

Hoje sei que eu, mesmo mediocremente, poderia ser considerado um jogador de estilo posicional, aos moldes de Petrosian, apesar de todas as limitações que um amador ingênuo possa ter. Cheguei a essa conclusão muito mais pelas características da personalidade de Petrosian que, propriamente pelo seu belo e estranho estilo de jogar.

O "insight" veio quando li uma frase por ele proferida em algum momento de sua vida: "Em meu estilo, como em um espelho, está refletido meu caráter". Caráter não enquanto moral, mas, sim, como forma-de-ser, muito embora Petrosian fosse muito respeitado por sua dignidade e postura.

De fato seu xadrez era cauteloso, prudente, posicional, defensivo. Mas ele não via o seu estilo defensivo como passivo. Nós dizíamos, no nosso tempo, que ele parecia uma jiboia: envolvia progressivamente seu oponente, e ia triturando-o lentamente, deixando-o sem espaço e, cada vez mais sem opções de jogada, até o arremate final.

Um dos grandes feitos de Petrosian, interromper uma sequência de dezenove partidas ininterruptas de Bobby Fischer em seu auge, originou um precioso comentário do gênio americano em seu "My 60 Memorable Games": "Eu estava pasmado no transcorrer do jogo. Cada vez que Petrosian conseguia uma boa posição, ele manobrava para obter uma melhor".

Petrosian dera um nó no gênio Bobby Fischer! 

Quando Petrosian derrotou Botvinnik, ganhando o título mundial, este comentou assim o feito: "Petrosian possui um talento único em xadrez. (...) Mas enquanto Tahl tentava alcançar posições dinâmicas, Petrosian criava posições nas quais os eventos se desenvolviam em câmara lenta. É difícil atacar suas peças: as peças atacantes só avançam lentamente, atoladas no pântano que cerca o campo das peças de Petrosian."

Ou seja, para Petrossian, o primordial era primeiro defender, para depois atacar; enquanto que para Tahl, o ataque era a melhor defesa.

Pois bem, ao longo dos anos, canhestramente, passei a crer que Petrosian tinha razão quando disse que o jogo de xadrez refletia a forma-de-ser de cada jogador. E, ousadamente, ampliei o espectro do alcance de sua teoria: estou convicto que qualquer esporte reflete as características pessoais dos jogadores quando de sua atuação, desde o xadrez até o futebol, passando por pôquer ou pelas artes marciais.

E creio, hoje, que no futebol, por exemplo, estão presentes as duas escolas tradicionais do xadrez, como reflexo da personalidade de seus protagonistas, principalmente os técnicos, quais sejam a posicional e a tática, a postura centrada na defesa, e a postura centrada no ataque.

Com base em Anatol Rapoport, o psicólogo e matemático americano nascido russo, em seu famoso livro de 1960, "Fights, Games, and Debates", que entende que os princípios que norteiam sua "teoria dos conflitos" se estende, por exemplo, aos debates, vou ainda mais longe: podemos perceber a existência desses dois estilos até mesmo na política.

É o caso, por exemplo, de Tite e Guardiola, no futebol, e de Tancredo Neves e Leonel Brizola, na política.

Tudo isso, claro, convicto de que na realidade não há nunca somente preto e branco. Há os infinitos matizes do cinza...

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

"OS TRÊS MOSQUETEIROS", SEMPRE!

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Finalmente repousa entre meus livros da "Coleção Dumas", "Les Trois Mousquetaires", tomos I e II, edição Boutan-Marguin, impresso em 20 de julho de 1966, tiragem com 6.423 exemplares.

Para isso percorreram, em linha reta, 6.726 quilômetros, desde Poitiers, capital do antigo Poitou, França, da qual foi condessa a belíssima Diana de Poitiers, amante do rei Henrique II, que lhe presenteou com o famoso Castelo de Chenonceau, no Vale do Loire.

Os livros foram adquiridos na feira mensal que lá reúne, em sua praça do mercado, inclusive sebos e antiquários, bem como produtores de vinhos e queijos.

  Os Três Mosqueteiros, ilustração de Maurice Leloir, 1894

O que torna essa edição tão especial para mim são as ilustrações de Saint-Justh, tal qual essa abaixo que retrata D'Artagnan, o personagem principal do romance:


A saga completa dos três mosqueteiros e D'Artagnan continua com "Vinte Anos Depois" e, em seguida, "O Visconde de Bragelonne", quando morrem todos, exceto Aramis, o Abade D'Herblay, já sexagenário e Geral da Ordem dos Jesuítas, o então chamado "Papa Negro".

Longa vida à memória de Alexandre Dumas!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

A HORA DE SAIR

* Honório de Medeiros
emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Um homem tem que saber a hora de sair. 
Recolher-se.
Tirar as esporas, guardar os arreios, encostar a cela.
Perceber que seu tempo passou.
Refrear os últimos ímpetos, pendurar as armas, despir a armadura.
Não mais se afadigar debaixo de nenhum sol.
Beber seu café, contar casos, ver seus rebentos irem para a arena.
Sair de cena.
Com calma, para não parecer rendição;
com certa ligeireza de quem sabe o que está fazendo.
Dizer adeus.
Afinal até a chuva não será mais como era antes.

sábado, 16 de dezembro de 2017

A VERDADE CONVENIENTE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

A Verdade Conveniente é aquela contaminada pela cômoda aceitação, intuída ou inferida por quem a diz, daquele ou daqueles a quem é dita. 

Há, nela, o que se poderia chamar de covardia da conveniência. 

Pressupõe a omissão calculada de outras verdades, aquelas que desconstroem as ilusões. 

Pressupõe a comodidade de deslizar pela vida sem construir arestas que tolham o bem-estar, construindo uma falsa aceitabilidade social. 

A covardia da omissão é a afirmação da covardia.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

DE SAIR OU NÃO SAIR

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com


Saio pouco para não me incomodar com minha presença.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

DO CANGAÇO

* Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências nos provoquem.

O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram ser escravos; de homens que optaram por sobreviver SEM LEI E SEM REI, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões nordestinos, ou do sertão americano, ou de outros sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade anterior ao surgimento do Estado, da qual nos falou Hobbes em O Leviatã.

Podemos  não aceitá-los, mas podemos compreendê-los. Quem tudo compreende, tudo perdoa, disse-nos Tolstoi.

O cangaço é a história do último suspiro dos desbravadores do Sertão nordestino, nossos ancestrais, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, a ferro e fogo, numa guerra longa, cruel e esquecida do resto do mundo.

A guerra dos bárbaros.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

GOVERNO DO ESTADO QUER PACTO COM OUTROS PODERES

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Leio na Tribuna do Norte de 12 de dezembro de 2017, em matéria acerca de declarações do novo Secretário do Trabalho, Habitação e Ação Social Vagner Araújo quando de sua posse, que o Governo do Estado, dentre outras medidas de curto e médio prazo, pretende propor um novo “pacto com os demais poderes”, quais sejam o Legislativo, Judiciário, Tribunal de Contas e Ministério Público, para que cada um dê sua parcela de colaboração e o RN possa, assim, retomar seu equilíbrio financeiro e orçamentário.

Pareceu mais um discurso de Secretário de Planejamento que de Trabalho, Habitação e Ação Social.

Vagner Araújo é qualificado para o cargo. Inteligente, experiente, pragmático. E articulado. Trará, para o planejamento do Governo, o que lhe faltava.

Infelizmente chegou tarde.
Em 12 de novembro de 2014, fiz a seguinte publicação em meu blog (*). 

“Tendo em vista as informações” que vão surgindo na mídia acerca da alarmante situação financeira do Estado, não enxergo alternativa, para o futuro Governador do Estado, a não ser liderar a construção de um novo Pacto Social no Rio Grande do Norte para alavancar a urgente, imprescindível, fundamental, Reforma do Estado.

Pacto Social, vez que todas as forças da Sociedade, representadas pelos poderes constituídos, precisam participar diretamente, sob a legítima liderança do futuro Governador do Estado, da elaboração de uma Carta de Princípios que nortearia a Reforma de Estado.

Reforma de Estado que permita a reconstrução do Rio Grande do Norte social, econômica e financeiramente, estabelecendo os parâmetros necessários a serem seguidos pelos poderes constituídos para assegurar o desenvolvimento do Estado.

Uma vez estabelecidos esses instrumentos fundantes da nova realidade política, social e econômica, todas as medidas necessárias a serem tomadas estarão naturalmente legitimadas e contarão com o apoio da Sociedade. 

É o que se espera de alguém que foi escolhido pelo povo para derrotar todas as forças políticas tradicionais do Estado." 

Em 3 de junho de 2015, voltei a abordar o tema do "pacto social" (**): 

"O problema fundamental do RN, hoje, é antes de tudo, antes do social, do político, do econômico, de natureza orçamentária e financeira.

O Governo precisa de dinheiro e não tem de onde tirar. O saque no Fundo Previdenciário prova isso. E a situação vai piorar, estamos beirando a recessão. Os repasses estão em queda livre. A arrecadação do Estado, com o declínio da atividade econômica, tende a diminuir lenta e inexoravelmente. As demandas dos servidores e da Sociedade tendem a crescer.

Se eu fosse o Governador Robinson convocaria os Poderes e a Sociedade para um novo Pacto Social.

Um pacto social no qual a renúncia e o trabalho de cada um, pensando no todo, fosse mais importante que qualquer demonstração de unilateralidade.

O Governador é o líder institucional apto a convocar e coordenar esse processo. Com os votos que recebeu, na situação em que isso aconteceu, é de se dizer, até mesmo, que deve assumir esse papel.

E com os pés firmemente fincados no presente, lançar as bases do futuro."

Não que eu tenha a pretensão de ser lido por quem quer que seja, mas para ficar claro que as condições que geraram o caos econômico-financeiro do Estado já estavam presentes quando o atual Governador assumiu o Poder.

E tais condições não foram percebidas, o que é terrível, ou foram percebidas e deixadas de lado, o que é apavorante.

E eu penso, embora torça contra, que não há mais tempo para o planejamento e implantação de medidas estruturais.

Quando muito ainda sobra algum tempo para aumentar o endividamento do Estado, na tentativa de colocar o pagamento do funcionalismo em dia e evitar um desastre eleitoral.

E olhe lá!


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

O JUIZ ENQUANTO INTÉRPRETE DA NORMA JURÍDICA

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Há cinco tipos básicos de juízes-intérpretes da norma jurídica: o onisciente, o populista, o técnico, o cortesão, e o camaleão.


O onisciente se pretende intermediário entre uma verdade absoluta - o Justo, o Certo, o Bom, etc. - e os reles mortais, que a ela não têm acesso. São como os cardeais da Igreja Católica. Ou líderes religiosos. 

Deles lemos e escutamos afirmações explícitas tais quais: a norma jurídica (a Constituição Federal) é isso ou aquilo. E implicitamente: é o que nós dissermos que ela é.

O populista se pretende intermediário entre os anseios da Sociedade e os reles mortais. Somente eles sabem o que o povo quer. E somente eles sabem usar a norma para fazer o que eles acham que o povo quer.

Deles escutamos afirmações tais quais: a norma jurídica (o Direito, a Constituição Federal) deve, concretamente, ser instrumento de transformação social e refletir os anseios da Sociedade.

O técnico se pretende cientista do Direito. Nada mais. É o sacerdote da verdade da norma jurídica, e o único que consegue apreendê-la a partir de universo finito no qual ela existe, algo muito além da capacidade dos reles mortais.

É o rei da subsunção, da filigrana jurídica.

Supõe que somente é possível o todo pelo conhecimento minucioso de cada parte. Desconhece que esse todo é algo além da soma das partes. 

Deles escutamos afirmações tais quais: uma coisa é minha vontade, outra é a disposição da norma jurídica.

O cortesão é discretamente, o mais da vezes, mas nem sempre, o intermediário entre a vontade da elite governante e os reles mortais.

É o rei do sofisma, da omissão consciente, da deturpação, da manipulação dos fatos e normas jurídicas.

Deles escutamos afirmações tais quais: a interpretação da norma jurídica deve levar em consideração os princípios mais profundos do Direito e da Democracia. Princípios cuja interpretação somente eles sabem fazer. 

O camaleão pretende. Não se pretende. Busca, sempre, a zona de maior conforto. Adéqua-se à circunstância. 

Cambiante, pode encarnar qualquer dos tipos acima, dependendo da necessidade.

Deles escutamos afirmações tais quais: as circunstâncias exigem de nós, intérpretes da norma jurídica, que...

É claro que podem existir outros tipos. Toda classificação é cavilosa. Não se esgota em si mesma.

Sofre sempre nas mãos da realidade, que vive destroçando sua arrogância.

E, claro, existe o bom juiz...

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

MANOELITO OU DA ARTE DE APRISIONAR O INSTANTE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Alguns anos atrás o antigo Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito.

Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes.

E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor expunham sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos, como o querem alguns filósofos, ditam a forma - jamais o contrário.

Embora seja compreensível a razão do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros de antigas famílias da cidade para o vernissage, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. 

No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias que ele compôs.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas fotos expostas.

Um fato no mínimo curioso para um evento aberto ao público para homenagear a arte - embora também a memória por ele construída - de um artista finalmente e justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor do acontecimento foi ter sido chamado a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado pela família de Manoelito ao município de Mossoró.

Não é à-toa a importância que estudiosos de grandes universidades do sul dão ao acervo.

Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que se perdeu, ao longo do tempo, em decorrência da incúria dos órgãos públicos.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico.

Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinquenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva científica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Entender como Mossoró avançou no tempo é entender aspectos da história das cidades, do Sertão, Nordeste, Brasil, enfim, de nós mesmos.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do cientista, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos. Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida.

E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era exigido o aprisionamento daquele instante específico através de uma fotografia.

Ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em delírios de arte.

Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento.

Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - de que somente artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

DA LIBERAÇÃO DE PAGAMENTOS DE RESTOS A PAGAR NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com


Boatos acerca de cobrança de percentual para liberação de pagamentos de antigos débitos a fornecedores (restos a pagar) de qualquer Estado são sempre preocupantes.

É preciso acompanhar a execução financeira do orçamento no Diário Oficial com uma boa lupa.

A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, e institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, considera crime:

"Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:

Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)."

Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.

Constatado o crime, isso afeta qualquer pretensão eleitoral.

DIMINUIR SALÁRIO DE SERVIDOR PARA ENFRENTAR DÉFICIT É TAPAR SOL COM A PENEIRA

Eduardo Aires Berbert Galvão *

O governo federal, amparado por um estudo do Banco Mundial, prepara um projeto para diminuir a remuneração inicial de todas as carreiras do poder executivo federal. O argumento é que a remuneração de ingresso no serviço público é desarrazoadamente maior que a remuneração inicial de um profissional na iniciativa privada.

Como servidores de carreira, louvamos ações que diminuam gastos públicos, privilegie investimentos e estimule a economia. Também compartilhamos da indignação de saber das distorções absurdas que existem na folha do funcionalismo, as quais, infelizmente, tornam-se invisíveis quando discutem-se médias salariais.
Somos favoráveis a cortes de gastos, mas não compactuamos com a disseminação de informações imprecisas, muitas vezes resultantes de perguntas mal formuladas, das quais só podem surgir respostas equivocadas. Discutir com base em truísmos populistas, que soam doces aos ouvidos, mas que não enfrentam o problema, foi e continua a ser a atitude preponderante que nos trouxe ao atual cenário econômico, de crise.
Que a remuneração inicial na carreira de gestor governamental e todas as outras do Governo Federal estão acima da média inicial de um advogado, engenheiro ou economista recém-formados, não há duvidas. E não poderia ser diferente, já que a comparação é descabida. Os aprovados em concursos públicos de carreiras são, em sua maioria, profissionais com mais de uma década de experiência, 34 anos de idade (em média), detentores de títulos de pós graduação lato sensu e, não raramente, stricto sensu.

Uma discussão séria também deve ter em conta que o aprovado em concurso não está sendo contratado por um escritório sem know how (como ocorre com a grande maioria de profissionais recém-formados), com meia dúzia de profissionais. Estamos falando de uma megaorganização, com centenas de milhares de trabalhadores.

Dito isso, os valores de referência para discussão são outros, pois tratamos do recrutamento de profissionais sênior, egressos do mercado para uma grande corporação. 

Quando uma grande empresa, que busca a excelência e ótimos resultados, abre o processo de seleção para profissionais sênior, não o faz em busca do profissional mais baratos e nem cogita colocar em posições estratégicas recém-formados. Elas buscam o profissional mais qualificado e essa é a razão da opção pelo concurso público e não uma licitação tipo menor preço.
Se os gestores não estão em cargos e desempenhando papel de gestão – como o próprio nome sugere – é devido a uma dificuldade do governo, e não do servidor público. Ao buscar o valor da remuneração média do profissional com esse perfil – e existem esses estudos em nosso país –, um advogado sênior em cargo de direção e assessoramento receberá uma remuneração entre R$ 11 mil e R$ 41 mil, a depender de sua área de atuação, e para ficar somente na profissão de advogado.
Por óbvio que o subsídio do Governo Federal não é nivelado por baixo, mas está rigorosamente dentro da média do mercado. Quanto mais se primar pela qualidade do profissional, mais atrativa deve ser a remuneração – e claro que a população não é desejosa da diminuição da qualidade das contratações no serviço público, que já deixa a desejar por completa falta de estrutura e investimento.
Servidores não desejam e muito menos aceitam que o patrimônio público seja dilapidado – razão pela qual somos favoráveis a correções de eventuais distorções e estamos abertos ao diálogo e à construção de alternativas. Mas até o momento o governo não se mostrou disposto a enfrentar o problema. Somente movimentou-se em busca de melhorarias de sua imagem, espalhando “verdades” fáceis e palatáveis aos que desconhecem a dinâmica da administração pública.
* Presidente da Federação Nacional de Carreiras de Gestão de Políticas Públicas (Fenagesp) e do Sindicato dos Gestores Governamentais de Goiás (SindGestor).

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros.@gmail.com

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema:


“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.

Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.

Em sua estação vocês têm a possibilidade de conduzir a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.

Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos.

Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. E sabem que na linha B cinco homens lá trabalham fazendo o mesmo.

Qual a decisão de vocês?"

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar por que faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens.

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês e um irmão, seu auxiliar”?

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder a questão. Um ou outro, muito pouco, tendia para um lado ou para o outro.

Questões como essa começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo.

É nesse nicho que transita Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas”.

Mlodinow é doutor em física e ensina no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica.

Em “Subliminar” Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, apresenta hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo:

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão a qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo.

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia.

(...)

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.”

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais, etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões.

A Retórica é exatamente isso, enquanto técnica.

A pergunta seguinte: a partir de que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”:

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.

Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.

Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)”

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada...

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, os anarquistas e marxistas: a "visão de classe" contamina as decisões do aparelho judiciário.

Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.

Isso quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente".

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão.

Ainda há "juristas" que dizem ser o Direito uma ciência...

domingo, 3 de dezembro de 2017

DEUS NÃO JOGA DADOS?

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Como emerge um sistema?


Se considerarmos que Einstein estava correto, e “Deus não joga dados”, ou seja, se está correto o princípio que propõe existir uma causa para tudo quanto existe, é possível supor um retorno causal a um último ponto-de-partida.

As questões metafísicas, claro, surgem, então, aos borbotões: propondo sempre a perspectiva de uma explicação científica, portanto deixando de lado a hipótese Deus, é de se perguntar o que havia antes desse ponto-de-partida.

Ou o que deflagou esse ponto-de-partida. 

Não pode ser o “nada”, posto que do “nada”, nada se origina.

Entretanto, se o ponto-de-partida surgiu a partir de algo, voltamos ao início: e o que originou esse ponto-de-partida?

Independente dessas dificuldades próprias de uma concepção determinista do “tudo”, contra ela podemos elencar várias críticas: a concepção indeterminista oriunda da física quântica, ou mesmo o postulado de Göedel, que demonstra a impossibilidade de construir uma linguagem matemática definitivamente consistente que expresse uma realidade, o que nos impossibilita descrever completamente o “tudo”.

Entretanto, a se aceitar nossa condição humana de sermos programados evolutivamente para raciocinarmos causalmente (indução e dedução), podemos conceber a realidade (o “todo”) enquanto um incomensurável sistema, cujo ponto-de-partida perceptível, nas atuais condições, é o “big bang”, da realidade conhecida.

Mesmo assim, provavelmente um grande lapso em termos de tempo terá que ser percorrido até sermos capazes de compreender como as lacunas entre o “ponto-de-partida” e a realidade atual são preenchidas. Uma tarefa tanto mais complexa quanto parece existir uma persistente impossibilidade de conciliação entre a física newtoniana e einsteiniana com a física quântica.

Ou seja, a questão de como emerge um subsistema dentro de outro subsistema, ou seja, como surge um subsistema de normas dentro de um subsistema de poder dentro de um subsistema social dentro de um subsistema orgânico dentro de um subsistema realidade física, nesse diapasão, é realmente uma tarefa descomunal.

Entretanto, deterministas, causalistas, sistêmicos, como aparentemente somos geneticamente instados a ser para sobrevivermos, mesmo que não tenhamos sequer uma pálida noção de todas as relações existentes entre os subsistemas, e, muito menos, daquilo que se origina quando subsistemas se conectam com outros subsistemas engendrando ocupações de “espaços” vazios, não paramos de teorizar, e construir explicações acerca das lacunas no conhecimento, ou mesmo construir teorias que avançam no desconhecido.

A imagem possível que expressa essa concepção é a mesma, embora infinitamente menor, que a teoria do “big bang” possibilita: o nada sendo ocupado pela matéria, ou seja, a ignorância sendo ocupada pelo conhecimento.

Uma realidade finita, mas ilimitada, como pensava Einstein, lentamente ocupada pelo conhecimento, até que a equação final explique tudo.

E tudo desapareça.

sábado, 2 de dezembro de 2017

DE CRISES, PODER E BEBIDA

* Honório de Medeiros


Crises, poder e bebida potencializam o que de pior há em cada homem. E o desnudam. O que era esboço se transforma em caricatura.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

COMADRE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com                                      

O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto. Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar.

Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos a fio de sabão e água.

Por fim sua vestimenta: um vestido, cor clara, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco de margens largas, torcido, propositadamente feito para receber e acomodar o saco de roupas.

Pois Comadre, como se pode perceber, era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E estava sempre feliz.

Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos nervosos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa na hora do almoço.

Lá em casa, mais aos sábados que em qualquer outro dia, por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha.

Era o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos. Sempre embalados por uma xícara de café e pão com manteiga, às vezes até mesmo um bolo de ovos.

Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. 

Naquele local, sem que eu me desse conta na época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente.

Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.

Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência.

Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com uma alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo e angustiado. Poderia ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.

Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntei: “Comadre, por que a senhora é tão feliz?” “Meu filho”, respondia-me com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.” “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo?” “E a violência, a fome, as doenças...?” “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.”

E seguia lépida e fagueira, a chistar, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó em toda a minha metafísica.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

CABÉ, O PRIMEIRO CANGACEIRO NO RIO GRANDE DO NORTE E PRECURSOR DE JESUÍNO BRILHANTE (3)

Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

Em 28 de fevereiro de 1851 o jornal “A Imprensa”, do Rio de Janeiro, ao transcrever longa correspondência oriunda do Rio Grande do Norte, na qual se relatam as perseguições supostamente sofridas pelos “sulistas” no âmbito do município do Açu, dá-se conta de uma apreensão ilegal, feita pela polícia “nortista” da cidade, de correspondência encaminhada por líderes liberais lá residentes ao Coronel José Fernandes de Queirós e Sá[1], líder político em Pau dos Ferros, informando-o “sobre plano de assassinato tentado contra o Dr. Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti”.

Na mesma correspondência é transcrito Mandado expedido pelo Juiz Municipal de Assu com o seguinte teor[2]:

“Mando a qualquer oficial de justiça a quem este for apresentado, indo por mim assinado, em seu cumprimento varegem a casa do tenente coronel Manoel Lins Caldas, e capturem os réus José Brilhante e José Calado, que segundo a notícia dada a este juízo ali se acham no intuito de assassinarem o Dr. Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti” (...).

Em 30 de janeiro de 1852 o “Correio da Tarde” transcreve, em sua “Parte Oficial”, correspondência do Presidente da Província do Rio Grande do Norte, José Joaquim da Cunha[3] ao Ministro da Justiça Eusébio de Queiróz Mattoso Câmara informando-o acerca da prisão de José Brilhante de Alencar e “mais oito dos seus sequazes” por “Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti e outras autoridades combinadas” que “convocando gente armada, e reunindo-lhes as praças do destacamento de primeira linha, ali estacionado, no dia 21 de novembro[4] último” os atacaram na “Casa de Pedra” e depois de “um fogo vivo não tiveram os insurgentes outro remédio senão render-se.” A mesma notícia foi divulgada pelo “Diário do Rio de Janeiro”.

Em maio de 1852 seguiu José Brilhante no vapor “Pernambuco” para o Ceará, para ser julgado pelos crimes lá cometidos em 21 de novembro de 1851.

Em 1859 a Justiça do Ceará encaminha “Cabé” para o Rio Grande do Norte, no vapor “Paraná”, provavelmente para responder os processos-crime que contra ele tramitam nesse Estado[5]. O Tribunal da Relação da Província do Rio Grande do Norte abre sessão para julgamento de José Brilhante em 5 de julho de 1861[6].

Em 1862 o “Correio Mercantil” do Rio de Janeiro, edição do dia 18 de junho, informa que no dia 29 de maio José Brilhante fugiu da Cadeia Pública de Natal, sem aguardar o resultado do julgamento[7]. Passara nove anos preso.

Por essa época Jesuíno tinha 18 anos de idade. Dos nove aos dezoito cresceu escutando as histórias que lhe eram contadas acerca do tio famoso. Fez-se homem embebido no “ethos” de violência e honra próprios do Sertão daquela época.

Passa-se um hiato de dez anos, durante os quais não se tem notícias precisas de José Brilhante. Entretanto como fugitivo que era da Justiça, com certeza continuou perambulando pelo Sertão a cometer crimes.

Outra impressão não decorre da leitura do trecho seguinte, transcrito do “Jornal do Recife”[8]:

“A 25 de dezembro último[9], no distrito de Patu, foi barbaramente assassinado com facadas em pleno dia Honorato de Tal[10], pelo célebre facínora José Brilhante de Alencar e seus sobrinhos Jesuíno de Tal e mais dois irmãos (...).

A crônica sanguinária de José Brilhante e seu séquito é mui conhecida nesta e outras províncias, sendo o terror da população pelos lugares onde anda.”

Menos de seis meses depois José Brilhante e Jesuíno Brilhante, com outros, atacam, no Boqueirão de Tapera, Termo de Triunfo, o Tenente Francisco Cezar de Rego Barros, que fora a Patu prendê-los e, não o conseguindo recrutara, à força, Antônio Brilhante de Alencar e Souza, filho do primeiro, e Lucio Alves, irmão do segundo, para libertá-los[11].

Aproximadamente um ano após[12] José Brilhante, Jesuíno Brilhante e o bando assassinam, por emboscada, o Delegado de Polícia Tenente Ricardo Antônio da Silva Barros em Pombal, Paraíba. No jornal “A Reforma”, essa morte é atribuída a encomenda do Coronel João Dantas, por ter o Delegado prendido um seu correligionário, Capitão Athayde de Siqueira, acusado de passar dinheiro falso.

Pela primeira vez, até onde consta, aparecem as ligações do clã dos Brilhantes com o Coronel João Dantas, grande proprietário de terras no Rio Grande do Norte e Paraíba.

Finalmente o “Jornal do Recife”, edição do dia 28 de março de 1874, informa que foi assassinado, por dois ladrões de cavalos, José Brilhante de Alencar e Souza. 

Raimundo Nonato no seu “JESUÍNO BRILHANTE, O CANGACEIRO ROMÂNTICO” lembra uma divergência quanto ao ano da morte de José Brilhante: 1873 ou 1877? Segundo Barroso morreu em 1873, no Pão de Açúcar, Alagoas, trocando tiros com uma quadrilha de ladrões de cavalo cujo chefe oculto era o Delegado de Polícia da localidade. Cascudo, na obra acima mencionada, diz que sua morte ocorreu em maio de 1877. Com a matéria do “Jornal do Recife” se desfaz o equívoco de Cascudo.

Jesuíno, portanto, estava com José Brilhante ao seu lado, desde seus primeiros passos no mundo do cangaço. Essa a razão pela qual Jesuíno, com a morte do tio, assume seu sobrenome. E, ao mesmo tempo em que o homenageia assegura, para si, ao usar seu sobrenome, a permanente lembrança aterrorizante de seus feitos, que eram notícia no Sertão e nos jornais da época.

[1] Tetravô do Autor.

[2] Com grafia atual. 

[3] Conservador. 

[4] De 1851.

[5] Jornal “Pedro II”, de 2 de fevereiro de 1859.

[6] Jornal “O Constitucional”, de 9 de julho de 1861.

[7] Jornal “Correio Mercantil”, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1862.

[8] De 24 de janeiro de 1872. 

[9] Portanto 1871. 

[10] Honorato Limão. 

[11] “Jornal do Recife” de 11 de julho de 1872 e “Diário de Notícias”, do Rio de Janeiro, de 4 de setembro de 1872.

[12] “Diário do Rio de Janeiro”, de 5 de agosto de 1873, e “A Reforma”, de 19 de agosto de 1873.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

LEGALISMO DE CIRCUNSTÂNCIA, LEGITIMISMO DE CONVENIÊNCIA

* Honório de Medeiros


Muito recentemente o Tribunal de Justiça do Rn pagou R$ 39.000.000,00, isso mesmo que você está lendo, aos seus juízes, de auxílio-moradia.

Esse pagamento, realizado em outubro, legal, segundo alguns, ilegal, para muitos, mas claramente ilegítimo, é referente ao acumulado no período entre 2009 e 2014.

No meu entender fere, no mínimo, e claramente, o Princípio da Moralidade, previsto no artigo 37 da Constituição.

Algo não é moralmente correto porque é legal. Tampouco algo não é legal porque é moralmente correto. Mas se for ilegal é moralmente incorreto. E se incorreto moralmente, é ilegal. Ilegal e imoral.

Gilmar Mendes, ministro do STF, por exemplo, declarou recentemente que o "auxílio-moradia" é claramente inconstitucional.

Cada magistrado recebeu, em média, 130 mil, com picos de até R$ 152 mil.

Pois bem, é do conhecimento de todos que o pagamento dos servidores do Rn está atrasado.

O governo conta, desesperado, as migalhas, para pagar outubro e o décimo-terceiro. Nem se cogita pagar novembro e dezembro.

Hoje pela manhã, salvo engano, a Casa da Justiça do Rn deu, ao Governo, o prazo de 48 horas para lhe repassar o duodécimo atrasado.

Duodécimo que incide sobre uma expectativa de receita que não se realizou. Algo puramente formal. Mas não real. Uma das mais terríveis armadilhas do orçamento público.

Talvez tenham acabado, agora, as últimas esperança do servidor público do Rio Grande do Norte, de receber seu salário de outubro e, quiçá, o 13º.

Os homens sempre desmentem a noção de que a norma jurídica almeja a Justiça. 

É como sempre digo: legalismo de circunstância, legitimismo de conveniência.