Ah, as mulheres da Serra, frescas, em flor, sem nada que as
enfeite exceto a simplicidade, exceto a alça da blusa que cai displicentemente,
deixando entrever e esconder um tanto que não se diz, porque ninguém sabe
dizer. Elas vestidas de simplicidade. Elas e seu olhar direto,
quando querem, e, quando não querem, ainda mais janelas da alma. “Uma carne sadia, abundante e rosada”, como as descreveu
Proust, em “No Caminho de Swann”. Nada artificial, em cada uma. Nada de astucioso em suas
atitudes com os homens. Há aquela malícia instintiva, que é seu dom de iludir. Beber, comer, amar, é tudo tão natural! Chorar também, seja pela posse desmedida ou abandono
definitivo. Swann “preferia infinitamente à beleza de Odette aquela de
uma pequena operária fresca e rechonchuda como uma rosa, de quem se
enamorara...” Em contraposição o universo urbano recheado de mulheres
excessivamente enfeitadas, com a mente tomada por articulações, e poses estudadas, no
afã infindável de seduzir: os óculos de sol, a roupa de grife, a mirada tecnicamente
distante, o celular através do qual são armados os lances do jogo. Por quem, no final, Vaumont, o conquistador impenitente, se
apaixona em “As Relações Perigosas”, de Chorderlos de Laclos, senão pela
inteireza de sentimentos e ações, distante de qualquer dissimulação, da mulher
que julgara tão fácil seduzir e descartar?
quinta-feira, 2 de abril de 2020
domingo, 29 de março de 2020
DONA EFIGÊNIA EM SUA TEIA
Dona
Efigênia pontificava naquela rua onde morei.
Muito
gorda, um pouco surda – talvez por puro cálculo –, passava o dia sentada em uma
cadeira de balanço com espaldar de palhinha na sua ampla sala de estar, que
dava para um jardim lateral, onde ficava o portão de ferro batido, pintado de
branco, a lhe separar do resto do mundo.
Casa
antiga, senhorial, de esquina.
Sempre
perfumada alfazema, penteada e bem vestida, ficava o dia inteiro, tirando as fartas
refeições, colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias, na qual
reinavam o telefone e o rádio. Tempos antigos.
“Prefiro
o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno
silêncio da televisão. “As pessoas participam”.
Eu
cumpria fielmente o ritual de visitá-la quando ia à sua cidade. Que era a
nossa. Tenho certeza de que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de
coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente.
Acredito
até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria
dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo,
meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustrava
alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, essa sim extremamente
interessante, a revelar um agudo poder de observação e análise.
Pois
Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável deixada pelo falecido, filhos
dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de
alguns.
Talvez
fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no
centro de uma imensa teia, ela recebia, analisava e devolvia informações ao
longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres,
afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial
predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças
da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone.
Devo
ter esquecido alguma coisa, óbvio, mas não esqueço sua sala de visitas quase
sempre cheia e ela em silêncio escutando, até que, em determinado momento,
chamava alguém para sentar em um banco baixo estrategicamente colocado perto da cadeira de balanço, e cochichava algo durante alguns minutos após os quais
a conversava era dada por encerrada.
Quando
a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme
comentavam os maledicentes. Diziam que ela era o tipo acabado da velha fofoqueira.
Depois
de algum tempo compreendi que criara essa camuflagem. Era assim mesmo
que queria ser enxergada. A camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de
sua atividade diária.
Através da
colheita de informações, ficava sabendo o que de errado havia acontecido no
seu entorno. Talvez alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma
prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do
alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma
despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado.
Pequenas grandes mazelas.
Então entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, e a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar...
Então entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, e a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar...
E,
assim, disfarçadamente, realizava um metódico, complexo e minucioso bordado
social. Bordado do bem.
Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se
existe Céu, nos braços do Senhor.
Ao longo da vida me pego, de vez em quando,
lembrando de alguma observação sua. Paro, componho em minha
mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada
na sua cadeira de balanço, abro seu breviário, e me ponho a ler, e
essa é a minha oração em louvor de sua memória.
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