sexta-feira, 15 de abril de 2011

QUEM DISSE QUE HÁ ROMBO NA PREVIDÊNCIA?

Propagandear contra a previdência pública e desacreditá-la perante os jovens que ingressam no mercado de trabalho foi e vem sendo o mais significativo dos feitos. Basta atentar para os argumentos um ‘vendedor’ de plano de previdência privada (produto do mercado financeiro)

Por Oswaldo Colombo Filho*
A Secretaria de Tesouro publicou os últimos resultados fiscais do ano de 2010, e assim segue uma breve análise das contas relativas ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS). O objetivo é apenas traçar considerações sobre os principais números, pois exame completo seguirá oportunamente ressaltando outras considerações, distinguindo correntes de pensamentos em relação aos resultados e efeitos produzidos aos beneficiários em ambos sub-regimes.

O saldo previdenciário “total” ou consolidado do RGPS (sub-regimes Urbano e Rural), conforme apontado pelo Tesouro foi negativo em R$ 42,9 bilhões. Cabendo ao RGPS Urbano o saldo positivo de R$ 7,8 bilhões – arrecadou R$ 207,2 bilhões (+17% que 2009) e despendeu R$ 199,5 bilhões (+10% que 2009).

No sub-regime Rural, o saldo previdenciário foi negativo em R$ 50,7 bilhões – arrecadou R$ 4,8 bilhões (+ 4% que 2009) e despendeu R$ 55,5 bilhões (+13% que 2009).

O saldo final no fluxo de caixa do INSS, incluindo as taxas de administração sobre outras entidades, apresenta resultado positivo de R$ 4,7 bilhões; evidentemente fruto da resultante auferida no sub-regime Urbano, e isso a despeito de outras considerações que poderíamos tecer sobre a destinação da Cofins, CSLL (que foram criadas como fontes de financiamento ao Orçamento da Seguridade e não ao Orçamento Fiscal) e os consequentes efeitos subtratores da DRU; e que estão sempre em discussão entre as correntes de pensamento socioeconômico voltadas ao do tema Previdência Social no Brasil.

Vale citar sobre essas ‘correntes de pensamentos’ que o “quadro demonstrativo” – resultado primário do governo central - vem sendo apresentado de forma distinta desde fevereiro de 2009, nas receitas, despesas, e saldos previdenciários para cada um dos sub-regimes já citados. Mesmo assim, e diante de total clareza, um “grupo” de economistas, autoproclamados fiscalistas, ou ainda denominados reformistas ou neoliberais, peremptoriamente bancam a cantilena do déficit (resultado final) da “Previdência Social”, citando e publicando números do que é o saldo previdenciário.

Não me estenderei sobre o que seja a diferença linguística ou técnica entre déficit/superávit com o que seja saldo previdenciário, mas friso que este último é uma espécie de ‘subtotal’ na apreciação analítica das contas de um regime ou sub-regime previdenciário e sua expressão numérica pode ser negativa ou positiva. Essa observação é importante, pois os “neoliberais” tratam por déficit aquilo que tecnicamente é o saldo previdenciário, e isso mesmo com o governo evidenciando a correta nomenclatura em seus relatórios tal qual memorial de cálculo a que se dispõe o seguimento lógico do texto constitucional.

Questionar a Constituição é um fato, mas desconsiderá-la e propagandear esse ideário publicamente na composição de contas e determinar erroneamente algo como déficit é no mínimo uma indecência que leva a sociedade leiga a um entendimento difuso e errôneo sobre a questão. A maioria deles sequer seria considerada reformista em lugar algum do mundo; lobistas, ou talvez expressos conservadores do clientelismo e do corporativismo, e assim qualificados pela resultante da Emenda 20/98 que patrocinaram, assim como pela proposta da terceira reforma previdenciária que já ofereceram ao governo anterior.

Qual o intento dessas ações em que pese ou possa alterar o comportamento da sociedade a integrar-se contributivamente ou não ao orçamento da Seguridade Social? Há outra opção no mercado reservada aos nossos cidadãos?

Propagandear contra a previdência pública e desacreditá-la perante os jovens que ingressam no mercado de trabalho foi e vem sendo o mais significativo dos feitos. Basta atentar para os argumentos um ‘vendedor’ de um plano de previdência privada (produto do mercado financeiro).

A abordagem inicia pelas “bombas de efeito retardado” e que foram deixadas pelos “reformistas em 1998”: - # a redução do valor inicial dos benefícios já quando requeridos e que pode chegar a 40% (fator previdenciário); # em seguida, a própria base de cálculo do valor do benefício médio; pois, os valores para base de cálculo, tomados desde 1994 e mesmo ao público que recolhe sobre o teto pouco supera da média de sete salários mínimos; visto que, mesmo sendo possível pela legislação vigente, o governo promulga o teto abaixo do mínimo possível (dez salários mínimos) – atualmente recolhe sobre 6,8. Lembrando que o valor decorrente deste cálculo será oferecido ao fator previdenciário se cabível for. A fixação do recolhimento abaixo do que a legislação faculta, e isto tão somente aos trabalhadores (os mais interessados) posto que os empregadores já recolhem pelo total, versa por mais uma graciosa contribuição governamental ao clientelismo e um dano enorme à seguridade, e que ninguém contesta.

Na sequência, o “vendedor” do produto do mercado financeiro orienta ao seu cliente em potencial, ao obter o vínculo empregatício via pessoa jurídica – “regime fiscal simples”, e assim a execução do recolhimento mensal à previdência pública se efetiva pelo mínimo, e à previdência privada por quantia que ele queira.

No Brasil, o peculiar “regime fiscal simples” versa por uma renúncia fiscal (tal qual existe similar em todo mundo), mas aqui se estende a renúncia previdenciária e que resulta em mais de R$ 10 bilhões/ano aos cofres do INSS. Na Europa, não importa o regime ou vínculo do contrato de trabalho do indivíduo; o recolhimento à Seguridade é compulsório a todos os trabalhadores, regulados ou não por qualquer forma de contrato de trabalho e em qualquer atividade, e a incidência sempre pela maior base disposta e parametrizada sobre os rendimentos mínimos mensais e/ou semanais.

Há países em que o mínimo do empregador (cota patronal) supera inclusive o mínimo pago em salário efetivo. Também por lá ninguém mistura renúncias fiscais com previdenciárias. Não colocam mentecaptos e muito menos lobistas para cuidar da Seguridade Social; isto é aberração, tal qual o é acatar a tese da miscelânea do Orçamento Fiscal com Orçamento da Seguridade; - diriam os nossos experts já supracitados – “é apenas uma questão contábil”. Por lá, crime previdenciário não é apenas imputado ao empregador-sonegador, mas também a trabalhadores que não recolhem sobre atividades autônomas e esporádicas. Sem dúvida nenhuma, este é um dos motivos para que a saúde pública seja gratuita e incomparavelmente melhor do que a nossa.

É assim que desejamos construir um país em bases sólidas? - Uma sociedade justa e próspera a todos? - “Passando a perna no orçamento da Seguridade Social”? Pessoas que assim agem tem moral para contestar a volta ou não da CPMF?

Em síntese, está mais do que em tempo de que a discussão sobre o orçamento da Seguridade Social alce nível realístico em nossa sociedade. Não falamos mais ou somente de números quando insistentemente e irrepreensivelmente pelas autoridades e com clara conveniência contesta-se abertamente Constituição; suprime-se o estado de direito na tramitação de Projetos de Lei; tratam-se direitos pecuniários advindos de crédito contributivo como um sendo um favor do Estado e não uma obrigação a quem concorreu como contribuinte por décadas.

Regendo essa ópera bufa indubitavelmente o clientelismo se favorece e contra isso que a sociedade e seus representantes devem agir em defesa do orçamento da Seguridade Social; ou seja – Previdência e Saúde Pública. Não vimos isso nos últimos 25 anos de governo, quiçá, e assim desejamos que a presidente Dilma Rousseff assuma firme papel no comando dessa cruzada. Certamente, não faltará quem lhe apoie.

*Economista e membro fundador do Movimento Brasil Dignidade.

domingo, 10 de abril de 2011

A VELHA SENHORA


Honório de Medeiros

                                      Formavam um belo casal. Ambos já acima dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar pausado, vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da hora do “ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles. Quando os vi pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas, parecendo um casal de namorados.

                                      Embora ela aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. Notava-se claramente seu cuidado para com ele. A sua mão que enlaçava era também a que conduzia, guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como irregularidades no calçamento ou as cadeiras postas no meio do caminho. Mas não era só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e fazia breves relatos - como querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou chamava sua atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da criança sentada na mesa próxima a sua.

                                      Mesmo após vezes seguidas observando, quase nunca os vi sorrir. Eram muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um carinho eventual de um para com o outro. Não que isso demonstrasse distanciamento, ao contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era perceptível – quanto ao trivial de gestos desnecessários, típica de um relacionamento antigo, onde o entendimento era perfeito e o silêncio comum pleno de compreensão.

                                      Eu e os outros conversamos vezes sem conta sob o casal com quem os atendia. Tinham nascido em outro lugar, dizia ele, uma cidade grande, eram aposentados da Receita e tinham optado por não terem filhos. Agora, no final da vida, desejando mais tranqüilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos nem conhecidos. “Quem cuida deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do apartamento e do restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”, prosseguiu, “já têm um motorista de táxi de confiança que os leva para onde desejam ir”. “Saem?”, continuei. “Vão à missa, aos médicos...”

                                      Após algum tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa reserva em cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa coloquial. Talvez já não tivessem interesse em construir novas relações e absolutamente não se sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do tipo de paz que ela proporciona? Se não fosse assim, por qual outro motivo teriam saído de sua cidade e vindo para esta outra, desconhecida?

                                      No fim, tudo acabou como esperado. Ele teve um infarto fulminante e ela ficou só. No início pensou em continuar no apartamento que dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi sua ausência na hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar em um local especializado em idosos. Antes, aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um “souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito, delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez, nem dissera para onde iria. Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara felicidade e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar...