sábado, 15 de setembro de 2012

O POSTULADO FUNDAMENTAL DO ENSINO


Honório de Medeiros

"APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele."
 
 
Que o ensino, no Brasil, é completamente ultrapassado, basta cada um de nós recordar seus tempos de estudante e a ênfase dada, em cada Escola ou Faculdade, ao primado da INFORMAÇÃO sobre o CONHECIMENTO.
 
Em texto publicado anteriormente dissemos qual a distinção entre SE INFORMAR OU SER INFORMADO e CONHECER (http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2012/09/aprender-aprender.html).
 
Pois bem, o ensino tal qual é praticado hoje, no Brasil, com esse viés de INFORMAR, é anterior à presença, no País, dos jesuítas. Melhor, é anterior à Alta Idade Média, onde o ensino ocorria por intermédio do estímulo ao debate, à discussão, como nos mostra Jacques Le Goff em “OS INTELECTUAIS NA IDADE MÉDIA”:
 
Com base no comentário de texto, a LECTIO, análise em profundidade que parte da análise gramatical, a qual produz a letra (LITTERA), ergue-se a explicação lógica que fornece o sentido (SENSUS) e termina pela exegese que revela o contéudo da ciência e do pensamento (SENTENTIA).
 
Mas o comentário provoca a discussão. A dialética permite ultrapassar a compreensão do texto para ir aos problemas que levanta, faz com que o texto se apague diante da busca da verdade. Um extensa problemática substitui a exegese. De acordo com procedimentos próprios, a LECTIO se desenvolve em QUAESTIO. O intelectual universitátio nasce a partir do momento em que põe em questão o texto, que não é mais do que uma base, e enmtão de passivo se torna ativo. O mestre deixa de ser um exegeta, torna-se um pensador. Dá suas soluções, cria. Sua conclusão da QUAESTIO, a DETERMINATIO, é a obra de seu pensamento.
 
A partir de 1599 a Companhia de Jesus colocou em vigor o famoso Ratio Studiorum, uma espécie de coletânea privada, que surgiu com a necessidade de unificar o procedimento pedagógico dos jesuítas diante da explosão do número de colégios confiados aos jesuítas. O modelo jesuítico, presente desde o início da colonização do Brasil pelos portugueses, apresentava os passos fundamentais de uma aula: preleção do conteúdo pelo professor, levantamento de dúvidas dos alunos e exercícios para fixação, cabendo ao aluno a memorização para a prova.
 
Como se pode depreender falta, ao ensino, no Brasil de hoje, comparando com a época dos portugueses, o estímulo ao levantamento de dúvidas, à crítica, por parte dos alunos. As aulas são preleções e nada mais...
 
Bachelard, comentando o cenário dos obstáculos epistemológicos à obtenção do conhecimento, em “A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO”, lembra que:
 
No decurso de minha longa e variada carreira, nunca vi um educador mudar de método pedagógico. O educador não tem o SENSO DE FRACASSO justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda.
 
Como aprendemos quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele, as preleções, meras exposições, podem até nos INFORMAR, mas, com certeza, em nada contribuem, além de fomentar o tédio, para o nosso CONHECIMENTO.
 
Aliás, é bom que saibamos distinguir entre APRENDER e CONHECER.
 
                                    Que nós conhecemos quando aprendemos, quanto a isso não há qualquer dúvida. Se aprendemos, conhecemos; se conhecemos, aprendemos. Entretanto, por uma questão pedagógica, costumamos distinguir o APRENDER do CONHECER no sentido de que, no primeiro caso, nos referimos, tecnicamente, a aquilo que resulta da busca deliberada de conhecer.
 
                                    Aqui, o “deliberada” faz a diferença, na medida em que podemos CONHECER sem que tenhamos nos encaminhado para isso, bem como podemos CONHECER enquanto resultado desejado, buscado, e alcançado.
 
                                    Não por outra razão, se eu digo “eu aprendo”, estou me referindo ao processo por intermédio do qual eu obtenho o conhecimento. Se eu digo “eu conheço”, significa que compreendo, entendo, apreendo aquilo acerca do qual me refiro.
 
                                    Ou seja, o APRENDER decorre do processo de aprendizado, que é algo que se busca conscientemente. Nesse sentido, o CONHECER engloba o APRENDER, vez que o CONHECER tanto pode ocorrer desde que queiramos, quanto pode ocorrer mesmo que não o queiramos.
 
                                    No sentido utilizado neste texto, todavia, não há distinção a ser feita. Aqui, APRENDER tem o sentido de CONHECER, e o conhecimento é alcançado, no sentido que se deve almejar nas escolas e universidades, na medida em que problematizamos a realidade, ou seja, enquanto alunos, criticamos sistematicamente, vigorosamente, a informação que nos é ofertada por intermédio das preleções dos professores.
 
                                   Recordemos Popper, em “CONJECTURAS E REFUTAÇÕES”:
                                   - Cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos..”
 
                                   E Bachelard, em obra acima mencionada”:
 
                                   No fundo, o ato de conhecer dá-se CONTRA um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos (...)
 
                                   Ainda:
 
                                   Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas.
 
                                   E, por fim:
 
                                   Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas para, imediatamente, melhor questionar.
 
                                   Portanto o estímulo a essa crítica sistemática e vigorosa, ao debate, à discussão, por parte dos alunos, às informações veiculadas pelos centros de saber deve ser um postulado fundamental do ensino que pretenda alcançar níveis superiores de excelência. Na verdade, esse estímulo deveria se constituir numa verdadeira “PAIDÉIA”, um ideal de civilização, algo intrínseco à nossa Sociedade, principalmente hoje em dia, com a permanente ameaça à Liberdade por parte do Estado, dos seus aparelhos de controle, e daqueles que o usam em proveito próprio.
 
O limite ao Estado foi, é, e sempre será, a Sociedade livre e não-alienada.
 
 
 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

RAINHA DA COCAÍNA: ASSASSINADA MULHER QUE INTRODUZIU DROGA NOS EUA


 
Griselda Blanco
 

GRISELDA BLANCO INSPIROU PABLO ESCOBAR
 
 Por Ailton Medeiros
 
Paulo Nogueira resgata a história da colombiana Griselda Blanco, traficante famosa na década 70, espécie de Corleone de saia, morta há poucos dias em Medelim, onde vivia depois de passar vinte anos numa prisão em Miami.
 
Foi ela que introduziu, nos anos 1970, a cocaína nos Estados Unidos em escala industrial. A droga saia da Colômbia direto para a Flórida. Griselda tinha 69 anos de idade. Segue o texto na íntegra:
 
Griselda Blanco só não pode ser acusada de ter passado em branco pela vida, brutalmente encerrada em Medelim poucos dias atrás quando ela saía de um açougue.
 
O resto ela fez. Matou dois maridos, batizou um filho de Michael Corleone, amealhou uma das maiores fortunas do mundo nos anos 1980, deu a seu mastim o nome de Hitler, comprou jóias que pertenceram a Eva Peron e promoveu orgias nas quais se divertia com homens e mulheres sob o estímulo de doses épicas de cocaína. Calcula-se que ela tenha sido a responsável por 240 mortes ao longo de uma carreira que desafiaria a imaginação de qualquer roteirista criativo de cinema.
 
Grisela, apelidada “Madrinha”, inventou o traficante de drogas tal como o conhecemos hoje. Pablo Escobar foi seu discípulo. Foi ela que introduziu, nos anos 1970, a cocaína – vinda da Colômbia — nos Estados Unidos em escala industrial. Segundo o tablóide londrino Sun, foi ela também que trouxe a novidade em pó para os ingleses.
 
Era um tempo em que a fiscalização na alfândega era quase que inexistente. Num certo momento, Grisela chegou a empregar 1 500 traficantes. Sua base era Miami. A série Miami Vice de alguma forma é filha de Grisela.
 
Grisela inventou, também, um tipo de crime que se alastraria: os assassinos se aproximavam de seus alvos numa moto, um dirigindo e o outro com a arma, e faziam o serviço na hora certa. A fuga era fácil.
 
Grisela, em seus anos de opulência em Miami, fez a felicidade de muitos policiais, brindados com propinas enormes. A vida começou a ficar dura quando entraram em cena os agentes do DEA, o departamento da polícia americana dedicado a combater o tráfico.
 
Como é tão comum, Grisela começou cedo, como prostituta em Medelim. Adolescente ainda, casou com um vigarista que vendia passaportes falsificados. Matou-o numa disputa de negócios. Não era seu primeiro assassinato: aos 11 já tinha matado um homem. O casamento seguinte foi com um traficante, com o qual ela viu que droga dava muito mais dinheiro que passaporte.
 
O segundo marido começou numa determinada hora a achar que ela estava ficando com muito poder. Irritou-o, particularmente, o apelido de Madrinha, tirado do filme O Poderoso Chefão. As desinteligências se acentuaram, e eles acabaram trocando uma saraivada de tiros como se fosse uma cena de Scarface de Pacino. Ele morreu, e ela quase. Acabou se recuperando de uma bala no estômago, e viveria os anos de ouro de sua carreira no tráfico. A melhor maneira de combater a concorrência, para Griselda, era simplesmente matando-a.
 
O DEA acabou por prendê-la em meados dos anos 1980. Na época, vivia com o último marido, um afro-americano bem mais jovem que ela. Grisela passou vinte anos na cadeia em Miami, e ao final da pena foi deportada sob completa discrição para evitar o inevitável — a vingança de tantos inimigos que fizera. Voltou à sua Medelim já transformada fisicamente numa abuela – avó – gorda. Tinha feito plásticas e contava não ser reconhecida. Tinham sobrado algumas propriedades que lhe trariam uma aposentadoria tranquila.

 Até que alguém – não se sabe ainda quem — a reconheceu, a despeito de todos os anos e todas as plásticas.
 
O fim teve uma justiça poética. A Madrinha foi alcançada por criminosos numa moto, exatamente no estilo que ela inventara e popularizara.
 
Tinha 69 anos.
 
Seu legado estará para sempre presente nas narinas de adeptos da cocaína, a droga que ela transformou para uma elite festiva internacional num produto de consumo quase tão chique e glamuroso quanto Gucci, Prada e Chanel.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ: PRIMEIRA TEORIA ACERCA DA INVASÃO, SEGUNDA PARTE

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ: PRIMEIRA TEORIA ACERCA DA INVASÃO (Segunda Parte):
 
 
 
TEORIA: O ataque a Mossoró resultou da ganância do Coronel Isaías Arruda e Lampião, no que foram secundados por Massilon 
 
 
Que o Coronel Isaías Arruda foi o maior responsável por induzir Lampião a atacar Mossoró, quanto a isso não há dúvidas. Sem esse assédio, não teria havido o ataque. Com a mentalidade rapace da qual era possuidor Isaías Arruda, quando lhe propuseram essa idéia, percebeu de imediato que sua concretização lhe permitiria ganhar algo de qualquer forma: planejar a empreitada, convencer Lampião, fornecer armas e munição, nada tinha ele a perder se pusesse mãos à obra e o atraísse para esse projeto.
 
Se tudo desse certo, raciocinou o Coronel, ganharia sua parte - uma verdadeira fortuna[1], levando-se em consideração o valor do exigido, dias após, por Lampião ao Coronel Rodolpho Fernandes, para que houvesse a invasão da cidade -, como acontecera antes, quando Massilon voltara com o dinheiro arrancado de Apodi.
 
Se nada desse certo obteria um lucro especial vendendo, ao cangaceiro, como de fato vendeu, as armas necessárias ao ataque; além do mais, se por obra e graça das circunstâncias, Lampião morresse no Rio Grande do Norte, ele, o Coronel, ver-se-ia livre das pressões que estava sofrendo, oriundas de Fortaleza, do Governo do Estado, e, até mesmo, do Governo Federal, por suas ligações com o líder cangaceiro, e que o levaram, segundo alguns historiadores, a trai-lo, tentando envenená-lo e queima-lo vivo, ou, segundo outros, a encenar essas duas tentativas de comum acordo com o Rei do Cangaço.
 
Entretanto a idéia de atacar Mossoró não nasceu no Coronel Isaías Arruda.
 
Isso por vários motivos, dois deles bastantes simples: em primeiro lugar, ele não chamou Lampião ao Cariri, como já sabemos, e sem Lampião, não haveria condições para realizar o ataque a Mossoró; em segundo lugar por que se a questão fosse meramente financeira, outras cidades, mais próximas e bem menos perigosas, no Ceará, na Paraíba, ou mesmo no Rio Grande do Norte, poderiam ser invadidas e render um grande lucro, sem a possibilidade de fracasso que uma cidade do porte e da distância[2] de Mossoró representava.
 


Capela de São Vicente, Mossoró, final dos anos 20, começo dos anos 30, por Francisco Soares de Lima
 
É em Sérgio Dantas, no “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE[3]”, que encontramos subsídio para essa conclusão:
 
O cangaceiro “Mormaço”, em diferentes interrogatórios prestados à Polícia (Martins, Pau dos Ferros, Mossoró e Crato), deixou claro que Lampião desejava chegar ao Ceará para refugiar-se e municiar o bando. Também acrescentou, em diversas oportunidades, que Arruda intermediava, invariavelmente, tais compras de munição.
 
Por outro lado, Mossoró não teria entrado no campo das elucubrações criminosas do Coronel Isaías Arruda, se não tivesse acontecido o seguinte fato, esse muito significativo, também relatado por Sérgio Dantas[4]:
 
Em dias de abril daquele ano[5], o sinistro caudilho[6] recebera importante solicitação. Décio Holanda[7] – destacado fazendeiro do município de Pereiro, no Ceará – pediu-lhe que colocasse a “cabroeira” particular a seu serviço, posto que planejava tomar de assalto a cidade de Apodi, no Estado vizinho.
 
(...)
 
Viajou[8] até Serra do Diamante, em Aurora, e foi ter com Arruda. Descreveu-lhe o imbróglio. Através do confrade – mestre na intriga política – empresariou o bandoleiro Antônio Leite, o Massilon.
 
O plano sinistro, em um primeiro momento, previa a conquista de Apodi. Sugeria, em seguida, o aprisionamento de Francisco Pinto e principais agregados políticos do intendente. Por fim, prescrevia extorsões, roubos, incêndios, homicídios.
 
Ainda:
 
Aurora, Ceará. Há dois dias Massilon já retornara ao esconderijo. Ao mentor Isaías Arruda, prestou contas do assalto. O apurado foi dividido meio a meio, como anteriormente combinado entre cangaceiro e Coronel (O CEARÁ, 1928).
 
Antônio Leite estava eufórico. Descrevia detalhada e reiteradamente a sucessão de assaltos. Gabava-se do feito heróico:
 
- Disseram que eu não sabia brigar, e eu volto com quarenta contos de réis!

 


Casa do Coronel Isaías Arruda em Aurora, Ceará. Nela há um subterrâneo onde o Coronel estocava armas.
 
Ou seja, em assim sendo, Mossoró foi conseqüência de Apodi e de uma circunstância inesperada: a chegada de Lampião em Aurora, no Ceará, terras do Coronel Isaías Arruda. Apodi, por sua vez, foi conseqüência das brigas entre coronéis norte-rio-grandenses e paraibanos disputando o poder[9].
 
E a idéia do ataque a Mossoró, da qual resultou o planejamento de Isaías Arruda e a execução de Lampião, com certeza não foi de nenhum dos dois, mas, sim, proposta de Massilon, à qual aderiu de pronto, pelas razões elencadas acima, o Coronel, e, com extrema relutância, o maior dos cangaceiros.
 
Portanto tudo leva a crer que Massilon, ou alguém ou alguns que ele representava, idealizou, Isaías planejou, e Lampião executou.
 
A pergunta que se faz agora, é se a idéia de Massilon atacar Mossoró foi algo estritamente seu ou de alguém ou alguns mais, do qual ou dos quais ele seria mero marionete.
 
CONTINUA QUARTA-FEIRA DA PRÓXIMA SEMANA COM A SEGUNDA TEORIA ACERCA DA INVASÃO DE MOSSORÓ POR LAMPIÃO.
 
[1] Cinqüenta por cento do butim.
 
[2] Perto de quinhentos quilômetros, de Aurora a Mossoró, área praticamente descampada, sem a proteção natural como serrotes, mata fechada ou pedreiras, ante um cerco militar, sem as quais o cangaceiro não passava.
 
[3] Cartgraf Gráfica Editora; 2005; 1ª edição; Natal, RN.
 
[4] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; Cartgraf Gráfica Editora; 2005; 1ª edição; Natal, RN.
 
[5] 1927.
 
[6] Isaías Arruda.
 
[7] Décio Sebastião de Albuquerque Holanda era seu nome completo. “Genro de Tilon Gurgel do Amaral, casado que foi com sua filha Francisca Brito Gurgel (Chicuta). Décio morou vários anos no RN, transferindo-se depois para o Ceará” (“NAS GARRAS DE LAMPIÃO”; GURGEL, Antônio; BRITO, Raimundo Soares de; Coleção Mossoroense; Série “C”; v. 1.513; 2ª edição; Mossoró).
 
[8] Décio Holanda.
 
[9] Mais adiante será esmiuçada essa afirmação.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

COMADRE


 
libertosdoopressor.blogspot.com
 
 
Honório de Medeiros
 
 
O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto.
 
Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar.
 
Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos e anos a sabão, anil e água.
 
Por fim sua vestimenta: um vestido cor parda, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco retorcido e molhado, propositadamente concebida para receber e acomodar o saco de roupas sujas.
 
Pois Comadre, como se pode perceber da leitura do texto, era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E, muito embora a faina duríssima, estiva sempre feliz.
 
Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o meu sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa, na hora do almoço.
 
Lá em casa, mais aos sábados do em qualquer outro dia, por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha, um espaço aberto, parte acobertado por um telheiro antigo, parte livre e dando para a saída lateral da casa.
 
Entrava e saía o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos... Todos embalados por uma xícara de café quente pelando e uma boa fatia de pão com manteiga.
 
Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. Naquele local, sem que eu me desse conta na época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente.
 
Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.
 
Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência. Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com aquela alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo.
 
Poderia ela ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.
 
Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntava:
 
- “Comadre, por que a senhora é tão feliz?”
 
- “Meu filho”, me respondia com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.”
 
- “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo, a violência, a fome, as doenças...?”
 
- “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.”
 
E seguia lépida e fagueira, a chistar com um e com outro, sem faltar ao respeito, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó cego em toda a minha metafísica.