sábado, 13 de outubro de 2012

O QUÊ LEVA O JOVEM AO CRIME

Honório de Medeiros

 
Uma das conseqüências possíveis relacionadas com a teoria da Antropóloga Alba Zaluar, Coordenadora do NUPEVI (Núcleo de Pesquisa das Violências), ligado ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de que apenas a pobreza e a desigualdade social não explicam a ida de jovens para a criminalidade, é dar razão ao senso comum do povo quando clama pelo endurecimento da legislação penal.
 
A teoria, exposta em matéria assinada pelo jornalista Antônio Góis, da sucursal da Folha de São Paulo no Rio de Janeiro, apresenta como uma das causas do envolvimento de jovens com a violência a estrutura cultural que induz o surgimento do que ela chamou de “etos da hipermasculinidade”, ou seja, trocando em miúdos, “a busca do reconhecimento por meio da imposição do medo”.
 
É algo decorrente da chamada “cultura machista”: os filhos homens são criados em ambientes que reproduzem condutas herdadas de desrespeito sistemático às mulheres, aos homossexuais, aos negros, às minorias, enfim, e valorização direta ou subliminar dos ícones da masculinidade distorcida; a música, a tradição oral, o lazer, a literatura, a própria postura passiva das minorias contribuem para a construção desse perfil medíocre e ameaçador.
 
A antropóloga lembra que “se a desigualdade explicasse a violência, todos os jovens pobres entrariam para o tráfico. Fizemos um levantamento na Cidade de Deus (conjunto habitacional favelizado na zona Oeste do Rio de Janeiro) e concluímos que apenas 2% da população de lá está envolvida com o crime.” É outra comprovação científica que respalda o senso comum: se apenas a pobreza fosse passaporte para o crime, não haveria Sociedade da forma como conhecemos. Melhor, não haveria tantos ricos criminosos.
 
De posse do trabalho apresentado por Alba Zaluar talvez pudéssemos pelo menos iniciar a discussão em torno da ampliação das penas no Brasil. Quem sabe instaurarmos a prisão perpétua: não outra punição merece uma quadrilha de assaltantes recentemente presa em São Paulo, todos na faixa dos vinte anos, especializados em condomínios, que se tornaram conhecidos por torturarem suas vítimas, fossem elas novas ou idosas. Prisão perpétua com alimentação, saúde, lazer, tudo pago com trabalho – há tantas estradas para ajeitarmos, Brasil afora, tanta terra para ser arada...
 
E o maior empecilho, para aumentarmos a dosagem das penas no nosso país, para criarmos a prisão perpétua, é exatamente esse remorso social – quando não é a defesa em causa própria, como por exemplo, o caso dos nossos congressistas, grande parte respondendo algum tipo de processo – hipócrita que nos corrói a capacidade de enxergar o óbvio agora corroborado cientificamente. Sempre achamos, segmentos da elite, que a criminalidade tinha ligação direta com a pobreza. Recusávamo-nos a perceber, com o povão, que sofre nas mãos da delinqüência e nas mãos da polícia, que não era assim, afinal não se justifica que haja tortura e morte desnecessária em cada assalto realizado: a crueldade é um ritual de passagem na hierarquia do crime, dependente da admiração dos companheiros: quanto mais cruel, mais admirado, quantos mais homicídios, mais enaltecido.
 
Agora é tempo de ir atrás do prejuízo antes que seja tarde demais: contamos nos dedos as casas e condomínios onde não há cerca elétrica e cães, isolamento e medo. Fazemos de conta que não há guerra civil em São Paulo e Rio de Janeiro. Iludimo-nos pensando que o Estado é soberano em algumas áreas das grandes cidades do Brasil.
 

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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ, TERCEIRA TEORIA

Honório de Medeiros

TERCEIRA TEORIA ACERCA DA INVASÃO: O ATAQUE A MOSSORÓ RESULTOU UNICAMENTE DA COBIÇA DE MASSILON
 
 
Restos da casa dos pais de Massilon em Luis Gomes, Rn
 
Quanto às teorias, esta é a mais simples. Sua simplicidade resiste à crítica?
 
Mais uma vez recorramos a Sérgio Dantas[1]:
 
Aurora, Ceará. Há dois dias Massilon já retornara ao esconderijo. Ao mentor Isaías Arruda, prestou contas do assalto. O apurado foi dividido meio a meio, como anteriormente combinado entre cangaceiro e Coronel (O CEARÁ, 1928).
 
A incursão, claro, fora de indizível sucesso. Uma cidade, duas povoações, meia dúzia de sítios tomados sem dificuldade. Fez-se grande, o cangaceiro aprendiz.
 
Tornara-se bandido de sucesso.
 
Desejou, muito provável, alçar voos mais altos. Aconselhou-se com Arruda. Traçou planos. Pensou unir-se a Lampião e por em prática escusos projetos.
 
(...)
 
Lampião, naqueles dias, rumava célere a recôndito coito de Aurora.
 
Ainda:
 
Aurora, penúltima semana de maio. Há dias Lampião já retornara da fracassada incursão à Paraíba. (...) Finalmente alcançara o indevassável coito da Serra do Diamante, de Isaías Arruda.
 
Em dias subsequentes, Lampião recebeu a visita de José Cardoso, parente do Coronel. Deslocara-se o fazendeiro para apresentar-lhe o cangaceiro Massilon Leite.
 
Deve ter sido por esse período, a se crer nessa versão, que Massilon apresentou ao Coronel Isaías Arruda a ideia do ataque a Mossoró.
 
Era a grande oportunidade de sua vida, e ele a agarrou com unhas e dentes. Não foi difícil convencer o Coronel Isaías, como anteriormente dito, por que este nada tinha a perder, e muito a ganhar: venderia armas a Lampião, receberia seu percentual nos saques, sequestros e roubos ou livrar-se-ia do grande cangaceiro, cuja amizade muitos incômodos políticos estava lhe trazendo.
 
O Coronel Isaías Arruda também agarrou a oportunidade com unhas e dentes, como nos conta Sérgio Dantas[2]:
 
Lampião tentava demover o régulo cearense da imprudente empresa. Refutava com veemência a proposta de invasão do Estado e, principalmente, a sugestão de assalto a Mossoró. Temia – por vasta experiência – a “grandeza” da cidade salineira. Compreendia difícil subjugá-la.
 
O cangaceiro Jararaca, testemunha da conversa, lembrou com fidelidade, dias mais tarde, a resistência de Lampião ao assédio ferino do Coronel Arruda:
 
“Lampião nunca tencionara penetrar nesse Estado porque não tinha aqui nenhum inimigo e se por acaso, para evitar qualquer encontro com forças de outros Estados, tivesse que passar por qualquer ponto do Rio Grande do Norte, o faria sem roubar ou ofender qualquer pessoa, desde que não o perseguissem.”
 
(...)
 
Massilon, sentado bem perto, chancelava cada argumento defendido pelo sagaz chefe político.
 
E, assim, a se crer nessa versão, repitamos, por pura cobiça e oportunismo de Massilon, sacramentou-se o destino de Mossoró. Seus projetos grandiosos de ataque à cidade que ele conhecia muito bem, conversados pelo Sertão paraibano, os mesmos projetos que através de Argemiro Liberato chegaram aos ouvidos de Rodolpho Fernandes, finalmente iriam se concretizar.
 
Em relação a Argemiro Liberato, e sua correspondência para Rodolpho Fernandes, é conveniente registrar o comentário de Raul Fernandes em “A MARCHA DE LAMPIÃO[3]”:
 
Afonso Freire de Andrade e inúmeras outras pessoas conheceram a carta. Mossoró (RN), 23.12.1971. – Informações prestadas ao autor. Obs.: Ouvi de meu pai referências à missiva.
 
Acerca dessa carta, comenta Kydelmir Dantas:
 
Esta carta foi levada ao conhecimento dos amigos de confiança do prefeito, por este, que estavam preparando a estratégia para a formação das trincheiras nos pontos principais da resistência. Dentre estes, Joaquim Felício de Moura, Afonso Freire de Andrade e outras pessoas mais chegadas confirmaram tê-la visto nas mãos do ‘coronel Rodolfo’. Para a família, dias após o ataque, Rodolfo Fernandes fez referências sobre esta missiva do amigo paraibano de Pombal. Outra confirmação do envio desta carta está no artigo: “Major” Argemiro Liberato de Alencar: o amigo de Rodolfo Fernandes, escrito pelo seu neto Geraldo Alves de Alencar, hoje residente em São Luiz do Maranhão, que cita o seguinte sobre o avô: “Era fazendeiro, proprietário da Fazenda “Estrelo”, situada em sua cidade natal. Exercia também a profissão de comerciante, trazendo da Paraíba algodão transportado em costas de burros e vendido em Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. O principal comprador era a firma cujo maior acionista era seu amigo e compadre o Cel. Rodolfo Fernandes. Em suas viagens como almocreve retornava a Pombal com sal e outros gêneros. Mesmo tendo um sobrinho nas hostes do cangaço, o qual atendia pelo nome de Ulisses Liberato de Alencar, Argemiro era profundamente contra o banditismo rural, chegando inclusive a avisar ao Cel. Rodolfo Fernandes, quando este era prefeito de Mossoró em 1927, que o cangaceiro tencionava atacar a cidade considerada capital do oeste potiguar. Declaradamente anti-Lampiônico, Argemiro Liberato de Alencar nunca chegou a ser perseguido pelo “rei do cangaço” porque Lampião sabia da amizade existente entre ele e o Padre Cícero.” Evidentemente o aviso não era acerca de um futuro ataque de Lampião, mas, sim, de um futuro ataque de cangaceiros. Afora estas cartas, há o registro dos famosos bilhetes trocados antes do ataque, um escrito pelo Coronel Antônio Gurgel, refém de Lampião, e escrito a primeira negativa por Abel Freire Coelho, a pedido de Rodolpho, e o famoso de Lampião, escrito de próprio punho, com a resposta à altura e escrita, desta vez, por Rodolpho. Esta documentação foi, à época, publicada no jornal Correio do Povo, do jornalista José Octávio Pereira de Lima, como um Suplemento especial. Afinal, quem era o coiteiro de Lampião no Rio Grande do Norte? A dúvida continua após mais de 80 anos da resistência.” Fontes de Pesquisas: ALENCAR, Elidete. Informações sobre Argemiro Liberato de Alencar. Natal/RN: Mimeo.(inéd.), 2003. 2 p; FERNANDES, Raul. A Marcha de Lampião. Coleção Mossoroense. 6ª edição. 2005; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: O banditismo no Nordeste do Brasil. Recife/PE: Ed. A Girafa, 2004 (texto sublinhado pelo Autor).
 
 
Raul Fernandes, ainda, logo na Parte 2[4], do Capítulo1º, de seu livro “A MARCHA DE LAMPIÃO” nos conta, com a autoridade de quem é filho do Coronel Rodolpho Fernandes, o seguinte:
 
 
Gentilmente cedida por Orlando Martins
 
Em dezembro de 1926, Joaquim Felício de Moura, sócio da firma Monte & Primo, em Mossoró, viajava pelo interior da Paraíba. Na cidade de Misericórdia, encontrou-se com o destacado comerciante e fazendeiro, Antônio Pereira de Lima, que lhe falou da acirrada perseguição do bandido Virgulino Ferreira a sua família. Sem maiores rodeios, contou-lhe o plano de Jararaca, Sabino, Massilon e Lampião de assaltarem com quatrocentos homens. Adiantou ser impossível reunirem tanta gente. Advertiu-o, porém, sobre o costume de mandarem espiões disfarçados de feirantes, mendigos e cantadores, aos lugares previamente escolhidos. Conversou sobre a possibilidade de defesa da cidade e pediu-lhe levar esses fatos ao conhecimento do Prefeito Rodolfo Fernandes.
 
Daí por diante, os boatos se sucederam. Na última quinzena de abril, de 1927, a notícia veio a luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal, escreve ao compadre Rodolfo Fernandes sobre a pretensão dos chefes de bandidos.
 
Joaquim Felício estava errado quanto a José Leite de Santana, o Jararaca.
 
Como nos assevera Frederico Pernambucano de Mello[5], a área de atuação do cangaceiro eram as ribeiras do Moxotó e Pajeú, em Pernambuco. E o próprio Jararaca[6], declarou, quando preso em Mossoró, que Lampião nunca pensara em atacar esta cidade.
 
Quanto à Sabino Gomes de Góis, embora atuasse nos arredores do município de Cajazeiras, Paraíba, já estava integrado ao bando de Lampião desde o ataque à Souza, no mesmo Estado, do qual não se separará até sua morte, em fevereiro de 1928, após o conhecido tiroteio de Piçarra, em Porteiras, Ceará.
 
Ora, e se Sabino tinha intenção de atacar Mossoró, e não havia razão para tal, é evidente que Lampião seria o primeiro a sabê-lo. Repita-se, entretanto: Lampião nunca teve a intenção de invadir o Rio Grande do Norte, como já sabemos.
 
Não é de se duvidar, se for verdadeira essa teoria, repita-se mais uma vez, que Massilon tivesse pensado, realmente, desde há muito, em se unir ao maior de todos os cangaceiros.
 
Túmulo dos pais de Massilon em Luis Gomes, Rn
 
Apodi servira, para ele, de “teste”, para firmar seu “currículo”. O episódio de Brejo do Cruz, relatado adiante, não poderia ser considerado mais do que uma jagunçada. Apodi, não. Uma vez conquistada a cidade norte-rio-grandense Massilon podia, com razão, atribuir a si a denominação de “chefe cangaceiro”.
 
Por pura sorte – ou azar – aconteceu, sem que ele procurasse, seu encontro com Lampião. E Mossoró, aquela cidade rica, por onde ele andou tantas vezes, como almocreve, na qual ele poderia conquistar sua independência financeira definitivamente, estava finalmente ao seu alcance.
 
Teria realmente acontecido dessa forma?
 
Contra essa versão há, entretanto, um sério óbice: o fato de na invasão de Apodi, por Massilon, o projeto de atacar Mossoró já existir, como noticiou o jornal “O Mossoroense”, em 15 de maio de 1927[7], insinuando, sem rodeios, que a invasão à cidade, a ocorrer em dias vindouros, integrava empreitada[8] (grifo do Autor) de grande vulto, e dele dera conhecimento, ao Coronel Rodolpho Fernandes, a carta de Argemiro Liberato.
 
Observemos que essa edição de “O Mossoroense”, jornal dirigido por Rafael Fernandes, primo e correligionário de Rodolpho Fernandes, veio à lume cinco dias após a invasão de Apodi por Massilon.  Façamos, então, a necessária conexão entre essa matéria do jornal e a anterior correspondência de Argemiro Liberato encaminhada ao Prefeito.
 
Não foi, portanto, resultado da cobiça de Massilon tal projeto, ao saber da presença de Lampião em Aurora. Foi oportunismo. Ele tinha uma “empreitada” a realizar em Mossoró. Caso contrário não se explica o ataque. Afinal, porque Mossoró, se o móvel do crime era pura cobiça? Porque não Souza? Cajazeiras? Patos? Catolé do Rocha? Caicó? Campina Grande? Massilon conhecia todas essas cidades.
 
Outra questão: se a causa foi cobiça, porque o bando não atacou o Banco do Brasil ou o comércio de Mossoró, que se alcançavam seguindo o leito do rio, como sabia Massilon, preferindo atacar a residência do Coronel Rodolpho Fernandes? Que estratégia foi essa?
 
Não faz sentido que esse ataque tenha resultado meramente da cobiça de Massilon. Muito pelo contrário, como veremos a seguir. Tudo leva a crer que havia uma “empreitada”, cujo “teste” foi o ataque a Apodi, e a questão passa a ser a seguinte: que projeto foi esse de invadir Mossoró cuja face visível é Massilon, mas teria uma face oculta, haja vista a impossibilidade deste cangaceiro desconhecido, de voo curto, empreender, sozinho, algo tão ousado e grandioso quanto à invasão da segunda maior cidade do Rio Grande do Norte?
 
Continua...
 
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[1] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – Gráfica Editora; 2005; Natal; RN. 
 
[2] Idem
 
[3] Nota 5, p. 40, Coleção Mossoroense, 6ª edição, 2005.
 
[4] 2ª edição; Editora Universitária – UFRN; 1981; Natal, RN.
 
[5] “GUERREIROS DO SOL”; 2a. edição; A Girafa; 2004; São Paulo, SP.
 
[6] No “Auto de Perguntas” feitas a Jararaca consta, também, a seguinte declaração sua: “que saíram em dias do mês de maio findo, do Pajeú, estado de Pernambuco, e que acompanhava Lampião há pouco mais de um ano”. Antes de Lampião Jararaca, ainda segundo seu depoimento, estava no Primeiro Regimento de Cavalaria Divisionária, tomando parte na revolta de São Paulo a favor da legalidade, com a Coluna Potiguara (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).
 
[7] Sérgio Dantas, em “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”, obra citada
 
[8] O termo utilizado foi exatamente esse.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

SÃO PAULO, RUA SÃO JOÃO COM IPIRANGA: UMA DESPEDIDA


passapalavra.info
 
 
Honório de Medeiros
 

“Para se conhecer uma cidade, é necessário viver nela três dias ou trinta anos. Ao final dos trinta anos, verifica-se que o julgamento apos os três dias é que é o bom” (Jean Cocteau, citado em “A BIBLIOTECA E SEUS HABITANTES", de Américo de Oliveira Costa). 

À noite, todos as nuances da escuridão são ameaças, no centro de São Paulo. O passo de quem lá aporta, por esse ou aquele motivo, desenham incompreensíveis percursos aos olhos de quem os observa. Mas não é embriaguez (ou é); não é o resultado de alguma droga (ou é). É a distância calculada que se toma de qualquer outro transeunte - esse desconhecido, o perigo. 

Os bares da São João. Pequenos. Quase todos lotados apenas de homens. O cheiro de fritura no ar. Os habitantes: bêbados, drogados, prostitutas, traficantes, decaídos, mendigos, travestis, menores, andarilhos, e a polícia, sempre a polícia. Os hotéis e sua aparência. Qual aparência? De decadência. 

No meio da rua, noite alta, o adolescente franzino, dentre muitos outros, de cabelos lisos e compridos incessantemente afastados dos olhos, vestido com uma irreal calça “jeans” extremamente folgada, cujos bolsos dianteiros e traseiros batiam-lhe nos joelhos, revoluteava, borbolético, entre um bar e uma casa de diversão de jogos eletrônicos. No dia seguinte, pela manhã, e já tarde da noite, novamente, lá estava ele, ininterrupto, como se ali fosse seu mundo ou então fizesse ele parte da paisagem local. Onde moraria? Quem seriam seus pais? Teria irmãos? Ninguém sequer lhe aprisionava o olhar. 

“Recanto dos Amantes”. Um nome em contraste com a cinza selva de pedra em plena transversal da São João. Lá, ela me disse, olhando para algum ponto indefinido, enquanto segura o copo de conhaque: “talvez não nos vejamos nunca mais”. O “nunca” me soou estranho. Havia uma melancolia calculada nas suas palavras. 

Eu me dispus a lhe contar como encarava esses encontros e desencontros da vida: um imenso pátio, vazio, folhas secas pelo chão, uma rajada de vento, a dança delas no ar, o encontro, logo desfeito, casual, entre uma e outra folha - eis como tudo ocorria. Não o fiz. Como ela engordara muito, esse tom não combinava com sua nova estampa. 

A São João, à noite, causa medo aos que não lhe são íntimos. Além de curiosidade e repulsa durante o dia. Quando o sol se põe a São João vira uma selva, onde cada um com o qual se cruza pode ser um predador - aquele que o destino lhe reservou. São os frequentadores de bares suspeitos, inferninhos, prostíbulos disfarçados, pontos de droga... É o submundo vindo à tona. 

Com a luz do sol, a vida surge frenética. Há um vai-e-vem intermitente, irritante. Uma profusão de cores, barulhos e os incontáveis odores de frituras e churrascos infestando cada espaço da rua. Tipos exóticos fazem “performances”. Há desde o comuníssimo tocador de viola, até o singular dançarino imensamente feio que ostenta, como insígnia de sua estranheza, duas inacreditáveis marias-chiquinhas. 

Nada diferente, ao que consta da realidade de toda grande cidade, mundo afora: Nova Iorque, Tóquio, Cidade do México... Nada diferente, em menor escala, em cada pequena cidade? 

Digo-lhe adeus. Fico parado observando sua imagem se desvanecer aos poucos enquanto caminha no rumo da Praça da República. Enquanto observo, imagens do passado insistem em surgir. Nelas, uma mulher esguia, morena, de cabelos longos, dança na praia de Genipabu, os pés chapinhando na água, pleno pôr-do-sol, encantada com tanta beleza e contraste com sua terra natal. 

Mas não há dor, há vazio. Aliás, há a dor do vazio.