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Honório de Medeiros
“Para se conhecer uma cidade, é
necessário viver nela três dias ou trinta anos. Ao final dos trinta anos,
verifica-se que o julgamento apos os três dias é que é o bom” (Jean
Cocteau, citado em “A BIBLIOTECA E SEUS HABITANTES", de Américo de
Oliveira Costa).
À
noite, todos as nuances da escuridão são ameaças, no centro de São Paulo. O
passo de quem lá aporta, por esse ou aquele motivo, desenham incompreensíveis
percursos aos olhos de quem os observa. Mas não é embriaguez (ou é); não é o
resultado de alguma droga (ou é). É a distância calculada que se toma de
qualquer outro transeunte - esse desconhecido, o perigo.
Os
bares da São João. Pequenos. Quase todos lotados apenas de homens. O cheiro de
fritura no ar. Os
habitantes: bêbados, drogados, prostitutas, traficantes, decaídos, mendigos,
travestis, menores, andarilhos, e a polícia, sempre a polícia. Os
hotéis e sua aparência. Qual aparência? De decadência.
No
meio da rua, noite alta, o adolescente franzino, dentre muitos outros, de
cabelos lisos e compridos incessantemente afastados dos olhos, vestido com uma
irreal calça “jeans” extremamente folgada, cujos bolsos dianteiros e traseiros
batiam-lhe nos joelhos, revoluteava, borbolético, entre um bar e uma casa de diversão
de jogos eletrônicos. No dia seguinte, pela manhã, e já tarde da noite,
novamente, lá estava ele, ininterrupto, como se ali fosse seu mundo ou então
fizesse ele parte da paisagem local. Onde moraria? Quem seriam seus pais? Teria
irmãos? Ninguém sequer lhe aprisionava o olhar.
“Recanto
dos Amantes”. Um nome em contraste com a cinza selva de pedra em plena
transversal da São João. Lá, ela me disse, olhando para algum ponto indefinido,
enquanto segura o copo de conhaque: “talvez não nos vejamos nunca mais”. O
“nunca” me soou estranho. Havia uma melancolia calculada nas suas palavras.
Eu
me dispus a lhe contar como encarava esses encontros e desencontros da vida: um
imenso pátio, vazio, folhas secas pelo chão, uma rajada de vento, a dança delas
no ar, o encontro, logo desfeito, casual, entre uma e outra folha - eis como
tudo ocorria. Não o fiz. Como ela engordara muito, esse tom não combinava com
sua nova estampa.
A
São João, à noite, causa medo aos que não lhe são íntimos. Além de curiosidade
e repulsa durante o dia. Quando o sol se põe a São João vira uma selva, onde
cada um com o qual se cruza pode ser um predador - aquele que o destino lhe
reservou. São os frequentadores de bares suspeitos, inferninhos, prostíbulos
disfarçados, pontos de droga... É o submundo vindo à tona.
Com
a luz do sol, a vida surge frenética. Há um vai-e-vem intermitente, irritante.
Uma profusão de cores, barulhos e os incontáveis odores de frituras e
churrascos infestando cada espaço da rua. Tipos exóticos fazem “performances”.
Há desde o comuníssimo tocador de viola, até o singular dançarino imensamente
feio que ostenta, como insígnia de sua estranheza, duas inacreditáveis
marias-chiquinhas.
Nada
diferente, ao que consta da realidade de toda grande cidade, mundo afora: Nova Iorque,
Tóquio, Cidade do México... Nada diferente, em menor escala, em cada pequena
cidade?
Digo-lhe
adeus. Fico parado observando sua imagem se desvanecer aos poucos enquanto
caminha no rumo da Praça da República. Enquanto observo, imagens do passado insistem
em surgir. Nelas, uma mulher esguia, morena, de cabelos longos, dança na praia
de Genipabu, os pés chapinhando na água, pleno pôr-do-sol, encantada com tanta
beleza e contraste com sua terra natal.
Mas
não há dor, há vazio. Aliás, há a dor do vazio.
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