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terça-feira, 9 de novembro de 2021

O QUE NOS RESERVAVA CADA CAMINHO QUE NÃO PERCORREMOS?

 

Arte: adroaldo-palaoro

* Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


Cada um de nós, no presente, é refém das escolhas que fez no passado. Bifurcações, encruzilhadas, caminhos com possibilidade única de retornar ou seguir em frente, veredas, qualquer opção tomada nos encaminhou a um futuro escolhido e desfez, naquele preciso instante, para sempre, a possibilidade de vivermos o que foi abandonado. Muito embora às vezes pudéssemos ter uma pálida ideia do que viria quando a opção foi feita, são tantos os desdobramentos seguintes que qualquer certeza logo se desfaz, tal sua evanescência. Angustia-nos saber que a opção foi um ponto-sem-volta, que nunca saberemos, concretamente, o que aconteceria se, no passado, tivéssemos seguido de forma diferente. Aquela rua que não foi transposta, a esquina que não foi dobrada, o adeus que foi ou não dado, o não ou o sim que dissemos, há tanto tempo, o que nos reservava cada caminho que não percorremos?

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

CADA HOMEM HOJE É UMA ILHA

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O mundo está se fragmentando.

Cada homem, hoje, é uma ilha.

Uma ilha em permanente guerra contra as outras.

Tudo quanto formava a unidade entre as pessoas, como a crença em Deus, a fé na Razão, a vida comunitária, se desfaz lentamente.

Não nos damos mais as mãos, exceto quanto temos algum interesse a alcançar.

O altruísmo morre lentamente, prevalece o egoísmo.

Todos são, individualmente, desde algum tempo, donos de uma verdade única, e agem como se quem não concordasse consigo fosse um inimigo a ser destruído.

Breve esse individualismo exacerbado, que se firma nos nossos defeitos, e não no que nos engrandece, há de nos conduzir para uma realidade na qual cada um será por si, e ninguém por todos.

Então, será o fim.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

TODAS AS COISAS TRAZEM CANSAÇO

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Quanto menos novo fico, mais me abandono ao fascínio do Eclesiastes.

Texto poético belíssimo, denso, sapiencial, condena muitos livros à sua real e diminuta dimensão.

Incita-nos a questionarmos nossa vaidade tola de querermos saber tudo, em um universo cujos alicerces estão firmados de tal forma, que parecem inevitáveis, mas permanentemente obscuros, alheios a nossa vontade e capacidade de entendê-los.

Consolo-me com o Eclesiastes.

"Todas as coisas trazem cansaço. O homem não é capaz de descrevê-las; os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir" (Ec 1,8).

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

VONTADE, LIBERDADE, VERDADE

 Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Hannah Arendt nos encaminha, em Responsabilidade e Julgamento, à noção de que devemos a Paulo a ideia de “Vontade”. Paulo, tão crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro fundador da filosofia cristã, com sua Carta aos Romanos 

Lê-se, em sua Carta aos Romanos, um momento antológico do processo civilizatório: “Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é (o) que faço” (7,19-21). 

Terá sido para cumprir tal desígnio, o de fincar o alicerce da doutrina do Cristianismo, a razão pela qual Jesus o interpelou na estrada para Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”. “Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer” (Atos 9:5,6).  

Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em Augsburgo, na Alemanha. 

Também a Carta aos Romanos foi o ponto de partida para a Reforma Protestante: Lutero escreveu seu Comentário aos Romanos em 1515, e nele já se encontra seu pensamento acerca da Justificação.  

Arendt nos mostra o percurso intelectual do conceito de “Vontade” no pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes” (Confissões). 

A “Vontade” decidirá. 

Assim como o mostra em Nietsche e Kant, além de nos pôr a par de que o fenômeno da “Vontade” era desconhecido na Antiguidade, e que sua descoberta deve ter coincidido com a da “Liberdade” enquanto questão filosófica, distinta de um fato político. 

Vontade, Liberdade, Verdade.  

Fundamental.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

DE UMA QUIETA TENDÊNCIA A NEGAR O BARULHENTO MUNDO

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


        Enrique Vila-Matas, em seu inigualável Bartleby e Companhia, chama-nos a atenção para os "seres que imitam a aparência do homem discreto e comum" no qual "habita, no entanto, uma inquieta tendência à negação do mundo." Estranha, mas compreensível pulsão!

Isso me conduz à lembrança de meu pai e seus silêncios, sua deliberada omissão em falar acerca do seu passado, seu instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, sua disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma, enquanto a dele permanecia resguardada. 

Profundamente quieta era sua negação do barulhento mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais, tudo sabiamente usado. Uma sábia estratégia. 

Hoje percebo, enquanto cuido de ir fechando o balanço de minha vida: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem circunstancial das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente reserva plácida de sempre. 

E eu, e nós, que sempre o achamos tão comum! Quanto engano. Como poderia ser assim, ele que sempre foi um sobrevivente, que viveu tantas guerras inglórias e só aparentemente insignificantes? 

Quanta arrogância, a nossa, em pensar que podemos conhecer algo ou alguém em profundidade! 

Meu pai, aparentemente, sabia muito e percebia que não valia a pena que o ninguém soubesse disso. Ou, então, pensava que saber era um caminho único, áspero, mas intensamente solitário. 

E assim viveu seus anos, principalmente os últimos, envolto nesse manto de humildade intelectual que era uma consequência de seus questionamentos mais íntimos, nunca uma predisposição, um intuito hipócrita de galgar atenção. 

Quando faleceu, como que despertando de um sonho iniciei a longa caminhada em busca de compreendê-lo, analisando suas palavras e posturas mas, principalmente, seus silêncios tão plenos de uma anônima rica vida interior.

sábado, 31 de julho de 2021

NÃO HÁ NADA DE NOVO SOB O SOL

Eugene François Vidocq (Arras, França, 24 de julho de 1775-11 de maio de 1857, Paris, França)

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

"O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol" (Eclesiastes, 1:9).

Não há nada de novo sob o sol.

Seguimos aparentemente em frente, para destino ignorado, permanecendo os mesmos de tanto tempo atrás, enquanto as formas, os instrumentos, os meios, que são nossa criação, para lidar conosco, fenômenos e coisas, dos quais somos reféns, tornam-se cada vez mais complexos e fugazes, em uma espiral, um "vir-a-ser", como diria Nietzche, de proporções incalculáveis.

Essência imutável, forma evanescente.

Leio em Os Crimes de Paris, de Dorothy e Thomas Hoobler, acerca de Vidocq, um personagem maior que sua vida. "Depois de cometer vários crimes na juventude, trocou de lado e se aliou à polícia. Foi o primeiro chefe da Sureté, o equivalente francês da organização civil policial, e modelo para vários personagens da literatura", dizem-me eles.

Fascínio antigo esse meu por Vidocq. Camaleônico, sofisticado, indecifrável, também foi o criador da primeira agência de detetives do mundo, o "Bureau de Reinseignements", ou Agência de Inteligência. Que outro, além de um francês, criaria uma agência de detetives com esse nome?

Inspirou Maurice Leblanc na criação do célebre Arsène Lupin, “O Ladrão de Casaca” que eu lia, fascinado, na adolescência, graças à bondade de um colega de ginásio, na Mossoró que não existe mais. Como inspirou, também, além de muitos outros, tais como Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugène Sue, o ainda mais célebre personagem de Balzac, Vautrin, presente em vários livros da Comédie Humaine.

Em certo momento, lá para as tantas, Vautrin explica o mundo e os homens:

"-E que lodaçal! - replicou Vautrin. - Os que se enlameiam em carruagens são honestos, os que se enlameiam a pé são gatunos. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa e você ficará exposto no Palácio da Justiça como uma curiosidade. Furte um milhão e será apontado nos salões como um modelo de virtude. Vocês pagam 30 milhões à polícia e à justiça para manter essa moral... Bonito, não é?"

Dizia minha mãe: “vão-se os anéis, permanecem os dedos...”

quarta-feira, 21 de julho de 2021

FILOSOFEMAS: O PARADOXO DA COMUNICAÇÃO MODERNA

 * Honório de Medeiros

Em tempos como estes, frenético e fugazes, precisamos dizer mais, com menos. Cada vez mais com cada vez menos. O certo, mesmo, é dizer tudo, com nada.

Natal, 21 de julho de 2021

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

PALAVRAS: PARA QUÊ SERVEM AS PALAVRAS?

 

Machado de Assis, por Fraga

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

"As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios", diz Raduam Nassar em Cantigas d'amigos (Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna).

Ariano, entrevistado pelo Cadernos, em certo momento lembra: "não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (...) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo." 

Retruca o Cadernos: "Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada." 

Qual uma confraria de amigos, na Idade Média, digo eu, onde foi iniciada essa tradição. 

Assim é, assim será o caráter dos tempos atuais e futuros, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo e as palavras, mesmo quando amalgamando belos e profundos textos, manjar para poucos. 

A palavra é arte, arte fugidia, de domínio difícil e angustiante.  

Relendo O Crime do Padre Amaro do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário: 

- Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma." 

A palavra é uma arma. 

Recordo-me que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante nos tempos medievais. 

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo. 

Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo aquela que suscita nossos delírios: arma com a qual nos ferimos. 

Natal, em 7 de março de 2015.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

DESTINO: APENAS FAGULHAS NA NEBLINA

 

Barreira de Névoa | Ilustração: Tianhua X

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

"O mais velho estava seguindo os passos do pai, só que em outro ministério, e já se aproximava daquele estágio no serviço público em que a inércia é recompensada com a estabilidade" (A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi).

Esse pequeno trecho de uma das mais expressivas novelas do grande escritor russo nos mostra como o homem e suas relações são os mesmos, malgrado o tempo e a distância.

Aqueles momentos nos quais o homem parece romper com seu destino comum são fagulhas, e elas logo desaparecem na névoa da rotina.

Como se fôssemos livres para nadar no rio, desde que dele não saíssemos, e sempre terminássemos no mar.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

O ESTADO ALGOZ

* Honório de Medeiros

Enquanto passam os dias, o Estado vai asfixiando lentamente cada individualidade, cada singularidade, promovendo os meios pelos quais sobrevive e cresce: o suor do nosso rosto, por exemplo, é levado para seus cofres, e quase nada recebemos como retorno, sem que adiante reclamar.

Ouvidos moucos.

Tão certo quanto a morte, somente o pagamento dos tributos. 

E cresce em uma espiral ascendente sem fim. Brotam ininterruptamente de suas entranhas legiões de policiais, auditores, fiscais, juízes, promotores, procuradores, guardas de trânsito, municipais, penitenciários, florestais, ferroviários, de portos, militares, agentes administrativos, tesoureiros, assessores, assessores dos assessores, barnabés de todo tipo e modelo.

O Estado comprime, esmaga, esmerilha, prende, sufoca, ameaça, reprime, mata, manipula, tortura, asfixia, bate, vigia...

É um pesadelo!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

DE VELHICE

* Honório de Medeiros

Dia desses olhei para você e me vi. Um reflexo do outro recortado em cores contra o escuro. Cores que esmaecem, tingidas de prata. Sépia. Como passaram rápidas os dias e as horas! Abismo de tempo, vidas que fluíram. Agora somos silêncio, quase. Ponte para um infinito. Agora nos compreendemos. 

sábado, 12 de janeiro de 2019

A NOÇÃO DE "ESTRANHAMENTO"

* Honório de Medeiros


Camus, em seu "Diário de Viagem" (Record), lá para as tantas escreve o seguinte acerca de uma cena por ele presenciada no navio em que viajava para o Rio de Janeiro:

"Mais uma vez observo entre eles uma mulher já grisalha, mas de uma classe soberba, um belo rosto altivo e suave, (...) e uma postura sem par. Sempre seguida pelo marido, homem alto e louro, taciturno. Colho algumas informações, ela está fugindo da Polônia e dos russos para exilar-se na América do Sul. É pobre. Mas, ao vê-la, penso nas matronas bem vestidas que ocupam alguns camarotes de primeira classe."

Fico fascinado com esse olhar que distingue, o olhar de Camus, mas não me deixo seduzir pelo fascínio da primeira sensação, a da percepção de um estranhamento que separa, de um lado, a soberba elegância de uma imigrante e, do outro, o trivial, o comum, o banal: as matronas da primeira classe.

Deixo-me seduzir, isso sim, ao constatar que o olhar é o instrumento que permite as ideias apreenderem essa distinção. A ideia é anterior ao olhar. Se assim não fosse o olhar nada constataria dessa distinção que Camus percebeu.

Em outro lugar, escrevi:

"Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento”, um primeiro passo, que passamos a compreender os objetos, as coisas, as ideias, o Ser, enfim."

E o que seria o “estranhamento”? Eis algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual em uma arte marcial refinada, na literatura ou pintura, por exemplo, tornar-se hábil em captar essa desarmonia que extrapola o lugar-comum demanda contínuo exercitar-se até o limite do impossível.

O "estranhamento" antecede o processo de distinção que racionaliza o percebido. Mas somente é possível o "estranhamento" se, em quem observa, existem ideias acerca do que se percebe, uma expectativa de normalidade que não se realiza, que se fragmenta. 

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber o que lhe cerca, a organização limpa, meticulosa  e peculiar da biblioteca de alguém chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “perceber” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer algumas inferências, ou elaborar algumas hipóteses, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série norte americana “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. A sensação de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, também, essa sensação de estranhamento."

Essa capacidade de sentir a sensação de "estranhamento", e, em seguida, abstraí-la, racionaliza-la, é, penso eu, a base do trabalho, dentre outros dos artistas, filósofos e cientistas.

Outro exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." (O Tango da Velha Guarda; Arturo Pérez-Reverte).

terça-feira, 13 de novembro de 2018

FAVOR DESEQUILIBRA


* Honório de Medeiros


Antônio Gomes é um homem singular. 

Quando está em Natal costuma tomar um café, no final da tarde, na doceria de um hotel com vista para o mar.

Lá Teresa o atendia sempre, e entre os dois terminou se estabelecendo uma certa amizade, na justa medida da reserva natural de Gomes.

Teresa me perguntou dia desses por ele. Fiquei surpreso com a pergunta, porque sabia que estava em Natal.

"Não andou por aqui?". "Não", respondeu. "Sumiu".

Coincidiu que o encontrei logo depois. Disse-lhe que Teresa andara perguntando por ele. 

Gomes sorriu e me confessou que não iria mais por lá.

"Mas o que houve?", perguntei.

"Fiz-lhe um favor, e o equilíbrio da relação desmoronou." "Ela agora acha que está em débito comigo". "A partir de então, por mais que não queira, sou aquele a quem se deve algo." 

E mudou de assunto.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

BUCHA DE CANHÃO


* Honório de Medeiros

Os inocentes úteis urram galvanizados enquanto a caravana dos donos do Poder de esquerda ou direita passa. São bucha de canhão para quem os manipula.

Esquerda ou Direita têm o mesmo propósito: a destruição do Estado.

Os donos da Esquerda por ambicionarem o Poder enquanto defendem, para os inocentes úteis, que vão construir o Paraíso sobre os escombros dessa destruição. Socialistas selvagens.

Os donos da Direita por ambicionarem o Poder enquanto defendem, para os inocentes úteis, que todos serão ricos sobre os escombros dessa destruição. Capitalistas selvagens. 

Tanto uns quanto os outros querem o mesmo, acham que os fins justificam os meios, usam praticamente as mesmas táticas e estratégias, e somente diferem naquilo que prometem para quando chegarem ao Poder. São totalitários. 

Michiko Kakutani, prêmio Pulitzer de 1998, crítica literária do “The New York Times”, por mais de quarenta anos, em A Morte da Verdade (Notas Sobre a Mentira na Era Trump), conta que Steve Bannon, estrategista e conselheiro de Trump, certa vez descreveu a si mesmo como um “leninista”. 

O mesmo Bannon, ainda segundo Kakutani, teria dito o seguinte: “Lênin queria destruir o Estado, e esse também é o meu objetivo. Quero acabar com tudo e destruir todo o establishment de hoje em dia.” 

Lênin deve estar rindo muito em alguma das grelhas do inferno, apesar das dores. Ele é o patrono dessa maré de pós-verdade que se tornou praticamente hegemônica nos dias atuais, calcada no uso da retórica violenta, incendiária, em promessas simplórias e desconstrução da verdade, tudo potencializado pela internet. 

O fundador da URSS explicou, certa vez, que sua retórica era calculada para provocar o ódio, a aversão e o desprezo, não para convencer, mas para desmobilizar o adversário, não para corrigir o erro do inimigo, mas para destruí-lo. 

Quem quiser ler um pouco mais, está em “Report to the Fifth Congresso of the R.S.D.L.P. on the St. Petersburg Split of the Party Tribunal Ensuing Therefrom”, segundo Kakutani. 

Pois é.

* Arte em blog.maxieduca.com.br

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

CONHECI UM SANTO


* Honório de Medeiros

Para meu amigo Francisco de Sales Felipe.

Eu tinha dez ou onze anos quando conheci um santo. Chamava-se Helder Câmara, era Arcebispo da Igreja de Cristo em Recife e Olinda. A ele fui levado pela secretária particular do Governador Nilo Coelho, que eu suponho ter sido, muitas vezes, um canal de comunicação entre a Igreja, o Poder Civil e o Poder Militar em Pernambuco, dada sua condição singular de amiga pessoal dos líderes dessas instituições. Fomos eu, ela, uma tia, funcionária da Sudene, minha mãe e minha irmã, em começo de noite, na sede do arcebispado. Estávamos de férias em Recife. D. Helder nos recebeu com aquele seu sorriso luminoso, tão característico, olhos pisados pela falta de sono, o corpo mirrado, frágil, em seu ascético gabinete. Para mim, naquela época, era impossível sequer imaginar que ali estava um gigante moral. Um dique que com a força de suas palavras, atitudes, e carisma, tantas vezes contivera e conteria o furioso redemoinho, em Pernambuco, das águas turbulentas da repressão pós 64. Pregava defendendo uma Igreja simples, voltada para os pobres, e a não-violência. Orador que galvanizava multidões, também era um escritor cultuado. Dele li o belo “Um Olhar Sobre a Cidade”, perdido em alguma das mudanças que minhas muitas vidas me impuseram. Mas dele guardei mesmo, em meu coração, em minha mente, sem nunca esquecer, não somente a benção que seus dedos magros desenharam sob a minha testa ainda infantil, como também uma frase sua, lida em algum lugar, que é a síntese, para mim, do seu apostolado, tão bela quanto densa: “me enriqueces quando discordas de mim”. Eis uma epistemologia em forma de poesia direcionada ao espírito dos homens de boa-fé do povo de Deus. Minha benção, padre. Quando me lembro do senhor, acredito na humanidade.

sábado, 16 de dezembro de 2017

A VERDADE CONVENIENTE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

A Verdade Conveniente é aquela contaminada pela cômoda aceitação, intuída ou inferida por quem a diz, daquele ou daqueles a quem é dita. 

Há, nela, o que se poderia chamar de covardia da conveniência. 

Pressupõe a omissão calculada de outras verdades, aquelas que desconstroem as ilusões. 

Pressupõe a comodidade de deslizar pela vida sem construir arestas que tolham o bem-estar, construindo uma falsa aceitabilidade social. 

A covardia da omissão é a afirmação da covardia.

domingo, 3 de dezembro de 2017

DEUS NÃO JOGA DADOS?

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Como emerge um sistema?


Se considerarmos que Einstein estava correto, e “Deus não joga dados”, ou seja, se está correto o princípio que propõe existir uma causa para tudo quanto existe, é possível supor um retorno causal a um último ponto-de-partida.

As questões metafísicas, claro, surgem, então, aos borbotões: propondo sempre a perspectiva de uma explicação científica, portanto deixando de lado a hipótese Deus, é de se perguntar o que havia antes desse ponto-de-partida.

Ou o que deflagou esse ponto-de-partida. 

Não pode ser o “nada”, posto que do “nada”, nada se origina.

Entretanto, se o ponto-de-partida surgiu a partir de algo, voltamos ao início: e o que originou esse ponto-de-partida?

Independente dessas dificuldades próprias de uma concepção determinista do “tudo”, contra ela podemos elencar várias críticas: a concepção indeterminista oriunda da física quântica, ou mesmo o postulado de Göedel, que demonstra a impossibilidade de construir uma linguagem matemática definitivamente consistente que expresse uma realidade, o que nos impossibilita descrever completamente o “tudo”.

Entretanto, a se aceitar nossa condição humana de sermos programados evolutivamente para raciocinarmos causalmente (indução e dedução), podemos conceber a realidade (o “todo”) enquanto um incomensurável sistema, cujo ponto-de-partida perceptível, nas atuais condições, é o “big bang”, da realidade conhecida.

Mesmo assim, provavelmente um grande lapso em termos de tempo terá que ser percorrido até sermos capazes de compreender como as lacunas entre o “ponto-de-partida” e a realidade atual são preenchidas. Uma tarefa tanto mais complexa quanto parece existir uma persistente impossibilidade de conciliação entre a física newtoniana e einsteiniana com a física quântica.

Ou seja, a questão de como emerge um subsistema dentro de outro subsistema, ou seja, como surge um subsistema de normas dentro de um subsistema de poder dentro de um subsistema social dentro de um subsistema orgânico dentro de um subsistema realidade física, nesse diapasão, é realmente uma tarefa descomunal.

Entretanto, deterministas, causalistas, sistêmicos, como aparentemente somos geneticamente instados a ser para sobrevivermos, mesmo que não tenhamos sequer uma pálida noção de todas as relações existentes entre os subsistemas, e, muito menos, daquilo que se origina quando subsistemas se conectam com outros subsistemas engendrando ocupações de “espaços” vazios, não paramos de teorizar, e construir explicações acerca das lacunas no conhecimento, ou mesmo construir teorias que avançam no desconhecido.

A imagem possível que expressa essa concepção é a mesma, embora infinitamente menor, que a teoria do “big bang” possibilita: o nada sendo ocupado pela matéria, ou seja, a ignorância sendo ocupada pelo conhecimento.

Uma realidade finita, mas ilimitada, como pensava Einstein, lentamente ocupada pelo conhecimento, até que a equação final explique tudo.

E tudo desapareça.

sábado, 18 de novembro de 2017

O JUSTO NÃO ESTÁ FORA DE MIM


* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são (suas essências).

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica, a partir do nosso conhecimento pré-adquirido (Kant, Bachelard, Popper...).

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista (Protágoras de Abdera, Antístenes versus Platão), mesmo até Parmênides.

O nominalismo também impede a fenomenologia de Bergson e Husserl e a pretensão de uma ciência cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo.

Não por outra razão a beleza desse trecho de "Romeu e Julieta", Ato II, Cena II:

"JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há em um simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservava a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título.

Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira."

Não há, pois, essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

Thomas Nagel (“Visão a Partir de Lugar Nenhum”; Martins Fontes; SP; 2004; 1ª edição; p. 137; nota) observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as intransigentes teorias empiristas do conhecimento”.

Nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas.

O Justo não está fora de mim, está em mim...

* Arte: www.ebah.com.br

domingo, 15 de maio de 2016

O JUSTO NÃO ESTÁ FORA DE MIM

* Honório de Medeiros

O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são (suas essências).

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica, a partir do nosso conhecimento pré-adquirido (Kant, Bachelard, Popper...). 

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista (Protágoras de Abdera, Antístenes versus Platão), mesmo até Parmênides.

O nominalismo também impede a fenomenologia de Bergson e Husserl e a pretensão de uma ciência cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo.

Não há essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

Thomas Nagel (“Visão a Partir de Lugar Nenhum”; Martins Fontes; SP; 2004; 1ª edição; p. 137; nota) observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as teorias empiristas do conhecimento”.

Nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas.

O Justo não está fora de mim, está em mim...

segunda-feira, 19 de maio de 2014

DESCONCERTAR O LEITOR SISTEMATICAMENTE

Gustave Flaubert


* Honório de Medeiros

Na apresentação feita à "Bouvard e Pécuchet", de Flaubert, aqui no Brasil publicado pela Estação Liberdade, a pesquisadora Stéphanie Dord-Crouslé, autora do estudo "Bouvard et Pécuchet: une encyclopédie en farce" (2000), ao abordar o muito interessante "Dicionário de Idéias Feitas", um dos fragmentos que iria fazer parte do segundo volume, lembra que seu objetivo é "desconcertar o leitor sistematicamente". 

E menciona um trecho de uma carta de Flaubert, datada de 4 de setembro de 1850, enviada do Oriente para seu amigo Louis Builhet: "Você faz bem em pensar no Dicionário das Idéias Feitas. O livro, completamente rematado e precedido de um bom prefácio, onde se indicaria como o texto foi criado com o propósito de vincular o público à tradição, à ordem, à convenção geral, e organizado de uma maneira que o leitor não saiba se estão ou não zombando dele, talvez fosse uma obra estranha e capaz de fazer sucesso, pois seria muito atual" (grifo meu).

Não é esse insight algo que Borges, autor do "Manual de Zoologia Fantástica", nome primitivo do "Livro dos Seres Imaginários", assinaria embaixo?

Lá no "Dicionário de Idéias Feitas" encontramos: "poesia (A). É completamente inútil. Fora de moda", seguido de "poeta. Sinônimo de sonhador e de palerma". Um pouco antes: "pensar. Algo penoso. As coisas que nos obrigam a pensar em geral são abandonadas". Um pouco depois: "xadrez (jogo). Sério demais para um jogo, fútil demais para uma ciência".

Quanto à "Bouvard e Pécuchet", Dord-Crouslé lembra que o eixo temático que norteou Flaubert sempre foi enganar o burguês, mas não somente, também castigá-lo pelos assaltos repetidos da tolice contra o espírito. Para tanto lembra uma outra correspondência de Flaubert, desta vez para sua amante Louise Colet, datada de 16 de dezembro de 1852, na qual ele diz: "Às vezes, tenho pruridos atrozes de descompor os humanos, e um dia, daqui a dez anos, vou descompô-los em algum romance longo de amplo contexto..."

Viva Flaubert!

Arte em: irancartoon.ir