* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
4.
Anjos
e Demônios
“... quem és, afinal?
- Sou parte da força que eternamente
deseja o mal e eternamente faz o bem”
Fausto,
Goethe
Adotemos o termo “outsider”, até por também significar
“estranho”, como opção para designar o divergente inconformado que se revolta e
transgride. Lembremo-nos que o revoltado não é necessariamente o raivoso, mas,
sim, aquele do qual nos fala Camus, o que diz “não”.
E nos questionemos: o que leva o Outsider a divergir, não se
conformar, a se revoltar e dizer “não”? A ânsia de glória à qual aludiu
Bertrand Russel? E por que alguns têm essa ânsia em maior grau que os outros?
A pergunta a ser feita poderia ser a seguinte: por que
alguns não se conformaram, enquanto a grande maioria seguiu sua vida
“normalmente”?
Como explicar o fenômeno do surgimento específico de um
determinado personagem da história, em detrimento de irmãos, primos, amigos, todos
contemporâneos, do comum dos mortais?
Leonard Mlodinow propõe uma hipótese. Mas, antes, analisemos
o papel da estranheza e do padrão nessa busca: parte considerável do trabalho
dos cientistas e filósofos é descobrir padrões na realidade, para os quais
foram atraídos por algum tipo de estranheza no comportamento dos fenômenos.
É a estranheza que conduz ao impulso de buscar o padrão. O
que há ali?
Mas como se dá a percepção da estranheza? Quando ocorre a
fragmentação das expectativas de que tudo ocorra como habitualmente ocorre.
Popper explica isso detidamente em sua epistemologia. Para
ele, conhecemos (aprendemos) quando nos
defrontamos com um problema, qualquer que seja ele:
(...) cada
problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto
conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição
interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais
corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto
conhecimento e os supostos fatos...
O problema pode ser inesperado: não por outra razão a sabedoria popular
diz que a necessidade é a mãe da invenção; ou provocado: qualquer problema é,
antes de tudo, uma questão do espírito (intelectual), mesmo no trabalho
puramente mecânico.
Elaboramos hipóteses que são soluções provisórias a serem testadas. O
teste dirá se erramos ou acertamos, e o erro nos ensina, posto que não
precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado. Uma vez revelado que nossa
hipótese está correta, surge o padrão: uma vez repetidas as mesmas condições
que fizeram surgir a estranheza, já sabemos como tudo se comportará, em termos
de causa e efeito.
Se aprendemos
quando nos deparamos com um problema, é porque há um conhecimento em nós que o
antecede e nos permite identificá-lo. Se o conhecimento é retificável, é
evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo.
O conhecimento (aprendizado) pode, então, ser compreendido como um
“vir-a-ser” de complexidade cada vez maior. E não é possível comparar
informação com conhecimento; quando conheço, estou informado, mas, nem sempre
quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem
compreendê-lo.
É preciso cautela, entretanto. Não é tão simples a lide com
um aparente padrão que provoca quem busca desvendá-lo, assim como não é simples
lidar com estranhezas. O padrão descoberto, se se mantém ao ser constatado,
destrói falsos padrões que o antecederam; a estranheza que se oferece, às vezes
clama por se manter escondida.
Voltemos à questão inicial. Vejamos o caso do livro Homens
em tempos sombrios, de Hannah Arendt. São perfis de Doris Lessing, Rosa Luxemburgo,
Giuseppe Roncalli, Karl Jaspers, Isak Dinesen, Herman Broch, Walter Benjamin,
Bertolt Brecht, Randall Jarrell e Martin Heidegger. Todos “outsiders”, digamo-lo
assim. Qual é o padrão? O que os une? A apreciação pessoal da autora?
Agora, vejamos Luis da Câmara Cascudo e seu Flor de
Romances Trágicos. São perfis de Antônio Silvino, Antônio Tomás, Rio Preto,
Nascimento Grande, Jararaca, Moita Brava, Vilela, Adolfo Rosa Meia-Noite,
Jesuíno Brilhante, Lucas da Feira, José Leão, Pedro Espanhol, José do Vale e
Cabeleira. “Outsiders”? Qual o padrão, o banditismo? E por qual razão optaram
pelo banditismo?
E quanto a Gödel, Escher, Bach, de Douglas Hofstadter?
O padrão seria a genialidade?
Vejamos, também, um exemplo de estranheza e padrão, próprios
da ciência, em um livro de Steven Johnson. A tradutora de Emergence (The
Connected Lives of Ants, Brains, Cities and Software) optou por traduzir o
título desse livro de Steven Johnson para Emergência (A dinâmica de rede em
formigas, cérebros, cidades e softwares). Não faz muito sentido.
Primeiramente não usamos, cá no Brasil, o termo
"emergência", usualmente, no sentido de "algo que emerge".
Usamos no sentido de "situação grave, perigosa, crítica". Para o
sentido de "algo que emerge" utilizamos "surgimento".
Em segundo lugar o subtítulo "dinâmica de redes em
formigas, cérebros, cidades e softwares" é muito pesado. Remete a algo do
nicho específico de estudiosos da área de redes em tecnologia da informação.
Afasta o leitor que se pretende alcançar, aquele de formação mediana.
Talvez mais apropriado fosse a utilização apenas do
subtítulo, a partir de uma tradução mais literal do original: "As vidas
conectadas das formigas, cérebros, cidades e softwares".
Tal preâmbulo pretende dizer que a capa da tradução
brasileira do instigante livro de Steven Johnson não nos permite uma pálida
ideia, sequer, de quão é importante o assunto tratado pelo autor.
Graduado em semiótica pela Brown University e em literatura
inglesa pela Columbia University, Johnson é aclamado pela Newsweek, New York
Magazine e Websight como um influente pensador do ciberespaço.
Tem Steven Pinker, autor de Como a Mente Funciona,
como seu leitor entusiasmado.
Do que trata Johnson em seu livro? Em síntese: do surgimento
de sistemas complexos adaptativos, tais como formigueiros, cérebros, cidades,
softwares, e assim por diante.
Johnson defende a existência de algo em comum entre
tais sistemas, ou seja, "O que une esses diferentes fenômenos é uma forma
e um padrão recorrentes: uma rede de auto-organização, de agentes
dessemelhantes que inadvertidamente criam uma ordem de nível mais alto",
diz ele.
E mais complexa, digo eu.
Johnson chama esse tipo de "surgimento", no qual
um organismo complexo pode emergir, sem que haja um líder para planejar e dar
ordens, sem hierarquia e comando, por intermédio da "mão invisível e
fantasmagórica da auto-organização", de "comportamento emergente".
As raízes dessa hipótese repousam no solo fértil do
pensamento de Adam Smith, Charles Darwin, Alan Turing e, embora não citado pelo
autor, Ilya Prigogine e sua “Teoria do Caos e do Atrator”.
De tudo isso se extrai que em algum momento ímpar na ciência,
quando o cientista percebe algo estranho, fora dos padrões e não explicável,
ele diz “não”, rompe com a tradição científica e elabora uma nova teoria ou
hipótese para explicar o acontecido, que há de ser testado, e, na medida em que
sobreviva aos testes, se estabeleça enquanto um novo padrão, fazendo o
conhecimento avançar.
Podemos dizer que na história aparentemente existe um padrão
semelhante: se fosse uma teia, seria tecida por quem disse e diz “não”, por
aqueles que, “(...) foram os condutores de homens, estes grandes homens, os
modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral
dos homens imaginou fazer ou atingir”, como disse Carlyle e lemos mais acima.
Voltemos a Mlodinow, para tentar compreender o que leva
esses “pequenos e grandes homens” a dizerem não e fazerem avançar nosso
processo civilizatório.