Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 4 de abril de 2025

OS QUE DIZEM "NÃO"

 


Por Gustavo Sobral

Sobre o mais novo livro de Honório de Medeiros, uma publicação da Biblioteca Ocidente 

Honório de Medeiros descobre o ensaio como forma de expressão e o usa como exercício para expor como a ciência, a história, a filosofia e a literatura trataram a figura do fora do comum, o outsider. Numa forma toda sua, apresenta em livro um ensaio erudito para um tema rebelde.

Um passo de alguém que, ao estudar casos concretos de figuras fora da curva como Massilon e Jesuíno Brilhante, agora sai dos casos em particular para pensar o arquétipo. Também é, observando a obra do autor e o seu último livro, o De uma longa e áspera caminhada (2022), mais um abraço ao exercício de pensar polifônico.

Ler Honório de Medeiros é também ler todos aqueles que foram eleitos para acompanha-lo. Uma bibliodiversidade impressionante e instigante. Talvez, você termine a leitura como uma listinha de autores e livros para ler, porque é um livro que também nos leva para fora.

A leitura corre como um thriller, os assuntos vão se sucedendo, se completando, ou abrindo janelas paralelas (e não). O outsider está lá, como também o seu contrário, o homem comum, e não faltam eles, os cangaceiros, tema caro ao autor, e, nesta parte em especial, o autor é narrador, e temos mais uma camada deste livro.

O livro de Honório de Medeiros é curioso, interessante, novidadeiro, tanto na opção da forma, o ensaio; quanto na eleição do tema, o outsider, sendo ele mesmo, o autor, um outsider ao produzir uma obra incomum. Singular e inclassificável. É o livro do ano.

Publicação caprichada da editora Biblioteca Ocidente, comandada por Francisco Issac Dantas, pode e deve ser adquirido, digital ou impresso, no site da editora: https://revistagalo.com.br/selo-bo/os-que-dizem-nao/

Uma resenha sobre o livro anterior: O fio que conecta a trama e uma apreciação da trilogia:  A trilogia de Honório de Medeiros

Gustavo Sobral é escritor, criador e editor do gustavosobral.com.br


XXX

Por Carlos Santos

Enquanto duelo contra meus moinhos de vento (ou gigantes), representados por uma virose, me fortaleço com as reflexões sábias de Honório de Medeiros.

Ele não é Sancho, jamais serei Quixote – e vice versa. Somos irmãos com algum traço de sanidade. E olhe lá.

“Os que dizem não” é seu mais novo livro. Trata-se de um ensaio sobre seres humanos singulares e o pensamento que contraria o rumo da grande maioria da massa gente, através dos milênios.

Faz-me lembrar “O homem medíocre” (1913), do filósofo e escritor argentino José Ingenieros, ensaio que descreve o indivíduo conformista, alienado e comum, atraso à humanidade. É preciso nadar contra a correnteza.

Minha cura em grande avanço, que se diga, passa pela leitura dos que lançam luz na proa. Honório é guia. Rompe as trevas e encara de frente a mesmice coletiva endêmica.

Cá no sertão, à sombra de uma árvore frondosa, dou uma pausa. Mas, meu descanso é a batalha.

Carlos Santos é criador e editor do Blog Carlos Santos

quarta-feira, 23 de março de 2022

ESSÊNCIA IMUTÁVEL, FORMA EVANESCENTE

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Não há nada de novo sob o sol. Seguimos aparentemente em frente para destino ignorado, permanecendo os mesmos de tanto tempo atrás, enquanto as formas, os instrumentos, e os meios que são criação nossa, mas dos quais somos reféns para lidarmos conosco, os fenômenos e as coisas, tornam-se cada vez mais complexos e fugazes, em uma espiral, um "vir-a-ser", como diria Nietzche, de proporções incalculáveis. 

Essência imutável, forma evanescente. 

Leio em Os Crimes de Paris, de Dorothy e Thomas Hoobler, acerca de Vidocq, um personagem maior que sua vida. "Depois de cometer vários crimes na juventude, trocou de lado e se aliou à polícia. Foi o primeiro chefe da Sureté, o equivalente francês do FBI, e modelo para vários personagens da literatura", dizem-me eles. 

Fascínio antigo esse meu por Vidocq. Camaleônico, sofisticado, indecifrável, também foi o criador da primeira agência de detetives do mundo, o "Bureau de Reinseignements", ou Agência de Inteligência. Que outro, além de um francês, criaria uma agência de detetives com esse nome? 

Vidocq inspirou Maurice Leblanc na criação do célebre “Arsène Lupin, O Ladrão de Casaca”, que eu lia, fascinado, na adolescência, graças à bondade de um colega de ginásio, na Mossoró, minha Macondo particular, que não existe mais, pelo menos neste plano. 

Inspirou, também, além de muitos outros, tais como Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugène Sue, o ainda mais célebre personagem de Balzac, Vautrin, presente em vários livros da Comédie Humaine. 

Vautrin, o mesmo que em certo momento, lá para as tantas, explica o mundo: 

"-E que lodaçal! - replicou Vautrin. - Os que se enlameiam em carruagens são honestos, os que se enlameiam a pé são gatunos. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa e você ficará exposto no Palácio da Justiça como uma curiosidade. Furte um milhão e será apontado nos salões como um modelo de virtude. Vocês pagam 30 milhões à polícia e à justiça para manter essa moral... Bonito, não é?" 

Assim falava minha mãe: "vão-se os anéis, permanecem os dedos..." 

sexta-feira, 18 de março de 2022

APRENDER A APRENDER

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

1) APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele.

Como observa Karl Raimund Popper, "cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos."

a) Esse problema pode ser inesperado, e não por outra razão a sabedoria popular diz: “a necessidade é a mãe da invenção”;

b) ou esse problema pode ser provocado:

b.1) quando problematizamos as coisas e/ou os fenômenos pois, tal qual nos disse Gaston Bachelard, “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”;

b.1.1) sempre por intermédio da contra-argumentação, utilizando o contraexemplo, para testar nossas teorias que tentam solucionar o problema.

2) QUALQUER problema é, antes de tudo, algo puramente racional, uma questão intelectual, mesmo quando surge no âmbito de um trabalho puramente mecânico.

a) Se constatamos a existência de um problema, é porque temos um conhecimento anterior a ele, que nos permite essa constatação. 

3) Para tentar uma solução que resolva o problema, elaboramos teorias que são soluções provisórias a serem testadas.

a) Os testes, ou o teste, dirão se erramos ou acertamos;  

b) Até mesmo o erro nos ensina, posto que não precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado, e aprendemos o que não é certo para a solução do problema.

4) SE o conhecimento é retificável, ou seja, pode ser modificado, é evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo.  

5) O conhecimento pode, então, ser compreendido como um “vir-a-ser” de complexidade cada vez maior. 

6) A recusa em problematizar tudo quanto percebemos como um problema, conduz a neuroses. Aqui se compreenda essa recusa como uma fuga do problema com o qual alguém se defrontou.  

7) O como dizemos algo a nós mesmos, ou aos outros, acerca do que aprendemos é papel da Retórica: podemos tentar convencer ou seduzir tanto ao outro como a nós mesmos.

8) NÃO é possível comparar INFORMAÇÃO com CONHECIMENTO: quando conheço, estou informado, mas, nem sempre, quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem compreendê-lo.

terça-feira, 8 de março de 2022

DO PERMANENTE NO IMPERMANENTE

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


No monumental Musashi, de Eijy Yoshikawa, o "santo da espada" diz: "Ao mesmo tempo, um jovem tem o péssimo hábito de achar que não pode realizar seus sonhos no lugar onde está, e de sempre buscá-los por caminhos distantes. Grande parte dos preciosos dias da juventude se perde nessa insatisfação."

Lembrei-me, então, de um trecho há muito tempo lido em Sêneca. Está no Da Tranquilidade da Alma: "Uma coisa sucede a outra, e os espetáculos se transformam em outros espetáculos. Como disse Lucrécio: 'Desse modo, cada um foge de si mesmo'. Mas em que isso é proveitoso, se, de fato, não se foge? Seguimos a nós mesmos e não conseguimos jamais nos desembaraçar de nossa própria companhia".

Ou seja, busquemos o permanente no impermanente.

Em tempos de "vida líquida", como a denomina Zygmunt Bauman, no qual o evanescente é a essência das coisas, buscar o permanente no impermanente pode parecer uma quimera arcaica.

Entretanto se não nos dedicamos a tal por intermédio da submersão em si mesmo, outra coisa não fazemos quando investimos no conhecimento que nos possa trazer o "Grande Colisor de Hádrons".

Lá os cientistas buscam exatamente essa quimera arcaica ao fragmentar a tessitura da realidade.

O que acontecerá quando tudo for compreendido?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

A VERDADE CAMBALEIA

 * Honório de Medeiros.

(honoriodemedeiros@gmail.com)



Michiko Kakutani, prêmio Pulitzer de 1998, crítica literária do The New York Times por mais de quarenta anos, em A Morte da Verdade (Notas Sobre a Mentira na Era Trump), conta que Steve Bannon, estrategista e conselheiro do ex-Presidente, certa vez descreveu a si mesmo como um “leninista”.

O mesmo Bannon, ainda segundo Kakutani, teria dito o seguinte: “Lênin queria destruir o Estado, e esse também é o meu objetivo. Quero acabar com tudo e destruir todo o establishment de hoje em dia.”

Lênin deve estar gargalhando em alguma das grelhas do inferno, apesar das dores. Ele é o patrono dessa maré de pós-verdade que se tornou praticamente hegemônica nos dias atuais, calcada no uso da retórica violenta, incendiária, em promessas simplórias e desconstrução da verdade, tudo potencializado pela internet.

O fundador da URSS explicou, certa vez, que sua retórica era calculada para provocar o ódio, a aversão e o desprezo, não para convencer, mas para desmobilizar o adversário, não para corrigir o erro do inimigo, mas para destruí-lo.

Quem quiser ler um pouco mais, está em Report to the Fifth Congresso of the R.S.D.L.P. on the St. Petersburg Split of the Party Tribunal Ensuing Therefrom.

É bom lembrar que Pilatos inquiriu Jesus, em uma das mais célebres passagens da Bíblia: “Então, tu és rei?”, ao que Ele lhe respondeu: “Tu dizes acertadamente que sou rei. Por esta causa, Eu nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar a verdade. Todos os que pertencem à verdade ouvem a minha voz.” Pilatos, então, questionou: Quid est veritas? (“Que é a verdade”? João 18,38). E assim que disse isso, saiu de novo para onde estavam reunidos os judeus, e lhes disse: “Não encontrei qualquer falta nesse homem”.

Pilatos lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, até mesmo um niilista quanto à moral, e somente acreditava no Poder pelo Poder, e como não escutou resposta, o silêncio de Jesus perturba os filósofos através do tempo.

De qualquer forma já somos todos perdedores. Em um mundo onde o princípio basilar da razão, qual seja o da Verdade Objetiva, não a de cada um, mas aquela que existe independente da vontade de quem quer que seja, desmorona lentamente, confrontada pelo relativismo das narrativas subjetivas, somente a luta, até mesmo física, nele encontra guarida.

Esquecemo-nos que onde tudo pode ser, nada é; onde nada é, tudo pode ser.

Se fôssemos minimamente sensatos, aproveitaríamos o que nos aproxima e deixaríamos de lado o que nos afasta. Esta é o ponto-de-partida para evitar o caos, a fragmentação, a insanidade.

Assim, mesmo descrente de tudo quanto estamos construindo, ainda cabe acreditarmos que é necessário sermos muito cautelosos com o que vemos, ouvimos, lemos, até mesmo tateamos.

As armas da manipulação estão cada vez mais sofisticadas. E não pode, não deve existir dúvida: o Poder somente se toma ou se mantém à custa da sedução, manipulação ou força. Dificilmente via convencimento.                

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

SIR KARL RAIMUND POPPER


Sir Karl Raimund Popper

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Sir Karl Raimund Popper (Viena, 28 de julho de 1902Londres, 17 de setembro de 1994) foi, na minha opinião, o maior filósofo do século XX. Levo em consideração, para pensar assim, a importância de sua obra.

Matemático, físico, lógico, filósofo da ciência e filósofo político, historiador, músico, tradutor, um polímata, enfim, provavelmente o último, dado o crescimento avassalador do conhecimento após o epifenômeno da computação, que lhe foi praticamente posterior.

É muito difícil aquilatar o tamanho de sua contribuição intelectual, construído no embate contra a metafísica, o marxismo, positivismo e a psicanálise, mas, também, no estudo da relação entre teoria da evolução e epistemologia.

Suas análises de Platão e Parmênides são, no mínimo, monumentais: para tal, dominou o grego arcaico.

De sua vasta obra, talvez os mais impactantes livros sejam The Logic of Scientific Discovery, A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária, Lógica das Ciências Sociais, Conjecturas e Refutações (o progresso do conhecimento científico) e, post mortem, O Mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático.

Creio ter sido Sir Karl Popper o último dos grandes, e o maior de todos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

HEGEL: DE UMA LONGA E ÁSPERA CAMINHADA

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


“Senti nesse texto como se estivesse testemunhando o início da sua caminhada no curso de Direito, quando você passou por um dilema que eu mesma vivi e vi muitos dos meus colegas também passarem: primeiramente, a criação de um ideal que permitiria nos enxergarmos como um verdadeiro aluno de direito, e nos fazia trabalhar em tarefas auto-impostas para alcançar esse patamar também auto-imposto, e, em segundo lugar, enxergar a situação do embate entre o que conhecemos e respeitamos e o que somos apresentados e queremos respeitar. Eu não tinha noção da importância de Hegel, e gostei de aprender sob sua influência, acerca da visão que os outros autores tinham dele e de sua obra. Também achei que o texto acabou mostrando de uma maneira muito delicada como é essa “jornada” do saber: inquietar-se, questionar-se e a presença constante da mudança de percepções”.[1]

 

No final dos anos 80, início dos 90 dediquei-me a estudar Hegel.

Peguei meu exemplar do Princípios da Filosofia do Direito, cuja primeira edição é de 1918, e me lancei na empreitada, mesmo a contragosto, ante a dificuldade de compreender o pensamento do autor, que se expressava em uma linguagem deliberadamente abstrusa.

Fichte, a quem se atribui ter sido a ponte entre Kant e Hegel, era ainda pior, mas eu acreditava que era uma espécie de dever moral um estudante de Direito e do marxismo conhecer sua obra.

A duros custos cheguei lá, dadas as dificuldades que o texto, em si, e que são grandes, propunham, e do qual o parágrafo abaixo é um bom exemplo:

            O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo.

Quanto mais lia, menos conseguia esquecer a opinião que de Hegel tinha Schopenhauer, por quem nutro grande admiração.

Para que se tenha uma ideia dessa opinião, lembro a afirmação de Schopenhauer, citando Shakespeare (Cimbelina, ato V, cena 4), em sua Vontade da Natureza, que a filosofia de Hegel era "uma conversa de loucos, vinda da língua e não do cérebro".

Em O Mundo Como Vontade e Representação, Schopenhauer não deixou por menos: 

            Hegel, imposto de cima pelos poderes vigentes, como o Grande Filósofo oficializado, era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e fornicar as mais malucas e mistificantes tolices. Essas tolices foram barulhentamente proclamadas como uma sabedoria imortal, por seguidores mercenários, e prontamente aceitas como tal por todos os tolos, que assim se juntaram num coro perfeito de admiração, como nunca antes se ouvira.

Existe muito mais de Schopenhauer em relação a Hegel, mas é o suficiente. Além dele, também da mesma época há, por exemplo, Soren Kiekergaard, autor de O livro do Juiz, crítico severo de seu historicismo, e citado por Sir Karl Raymund Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos:

            Houve - escreve Kierkegaard - filósofos que tentaram, antes de Hegel ... explicar a história. E a Providência só podia sorrir ao ver tais tentativas. Mas a Providência não se ria às escâncaras, pois havia neles sinceridade e honestidade humanas. Mas Hegel!... Aqui preciso da linguagem de Homero. Como os deuses gargalharam trovejantemente! Esse pequenino e horrendo professor compreendeu simplesmente a necessidade de cada uma e de todas as coisas que existem, e agora executa em seu hormoniozinho toda a peça: “Escutai, deuses do Olimpo!”

Sir Karl Popper comenta a citação dizendo que as expressões de Kierkegaard são quase tão fortes quanto as de Schopenhauer, quando afirma, um pouco depois, que o hegelianismo, "esse brilhante espírito de podridão, é a mais repugnante das formas de licenciosidade, mofo de pompa, e possui um infame esplendor de corrupção".

Ainda em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Sir Karl Popper, lá para as tantas, se pergunta a razão pela qual ainda precisamos nos incomodar com Hegel:

            A resposta é que a influência de Hegel permaneceu como força poderosíssima, apesar do fato de que os cientistas nunca o levaram a sério (...) A influência de Hegel e especialmente a do seu jargão, é ainda muito forte em sua filosofia moral, e social, como nas ciências sociais e políticas (com a única exceção da economia). Especialmente os filósofos da história, da política e da educação, ainda estão sob seu império, em ampla extensão. Em política isso é mais amplamente mostrado de que tanto a ala extrema marxista, assim como o centro conservador e a extrema direita fascista baseiam suas filosofias políticas em Hegel; a ala esquerda substitui a guerra de nações que aparece no esquema historicista de Hegel pela guerra de classes; a extrema direita substitui-a pela guerra de raças; mas ambos o seguem mais ou menos conscientemente (o centro conservador é, em regra, menos consciente do que deve a Hegel).

Mesmo assim li Hegel. Conclui minha tarefa autoimposta. Ter continuado a estuda-lo me permitiu, algum tempo depois, procurar entender a ligação entre a dialética de Heráclito de Éfeso, a de Hegel, com sua “Filosofia da Identidade”, e a de Marx. Fez-me capaz, certo ou errado, de conectar esse entendimento com a “Teoria da Evolução”, por intermédio da “Teoria do Meme”, exposta por Sir Richard Dawkins em O Gene Egoísta.

Permitiu-me, por fim, compreender que sem a ciência qualquer teoria acerca de fatos históricos é mera especulação. Quanto à Filosofia, é pura metafísica, delírio da Razão.



[1] Comentário de Bárbara de Medeiros.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O JUSTO NÃO ESTÁ FORA DE MIM

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são, dizerem suas essências. 

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos, nominamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica a partir do nosso conhecimento pré-adquirido. 

Lemos acerca disso em Kant, Gaston Bachelard, Karl Popper... 

Por outra, nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas. As coisas são processos. 

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista de Protágoras de Abdera; Antístenes versus Platão; mesmo, talvez, até Parmênides. 

O nominalismo também impede a fenomenologia de Henri Bergson e Edmund Husserl e a pretensão de uma hermenêutica cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo. 

Assim, o Justo não está fora de mim, é uma construção pessoal e tem a minha medida, e isso ocorre com tudo quanto não esteja sob o domínio da ciência. 

Thomas Nagel, em Visão a Partir de Lugar Nenhum (Martins Fontes), observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as teorias empiristas do conhecimento”. 

Não há essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

CETICISMO, AUTOCRÍTICA E INCONFORMISMO

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O apático moral é um cético, mas nem todo cético é um apático moral. Aquele que não o é pode abraçar o inconformismo. 

Nesse caso o ceticismo inconformista seria uma forma deliberada de interagir conosco mesmo e com tudo quanto nos envolve. Seria uma arma para se defender contra o pântano do "status quo", e ir além do que foi estabelecido ruinosamente. 

Ceticismo somente, não: conduz à apatia moral. No ceticismo inconformista, duvidamos, questionamos, e nos manifestamos. 

Mas é preciso cuidado: não é somente o Outro que não sabe; o cético inconformista também não sabe, embora saiba que não sabe. Não custa nada acendermos uma vela em homenagem a Sócrates. 

Autocrítica e ceticismo inconformista: o primeiro para nos colocar em nossos reais limites; o segundo, para colocar os outros em seus limites reais.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

TODAS AS COISAS TRAZEM CANSAÇO

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Quanto menos novo fico, mais me abandono ao fascínio do Eclesiastes.

Texto poético belíssimo, denso, sapiencial, condena muitos livros à sua real e diminuta dimensão.

Incita-nos a questionarmos nossa vaidade tola de querermos saber tudo, em um universo cujos alicerces estão firmados de tal forma, que parecem inevitáveis, mas permanentemente obscuros, alheios a nossa vontade e capacidade de entendê-los.

Consolo-me com o Eclesiastes.

"Todas as coisas trazem cansaço. O homem não é capaz de descrevê-las; os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir" (Ec 1,8).

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

VONTADE, LIBERDADE, VERDADE

 Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Hannah Arendt nos encaminha, em Responsabilidade e Julgamento, à noção de que devemos a Paulo a ideia de “Vontade”. Paulo, tão crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro fundador da filosofia cristã, com sua Carta aos Romanos 

Lê-se, em sua Carta aos Romanos, um momento antológico do processo civilizatório: “Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é (o) que faço” (7,19-21). 

Terá sido para cumprir tal desígnio, o de fincar o alicerce da doutrina do Cristianismo, a razão pela qual Jesus o interpelou na estrada para Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”. “Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer” (Atos 9:5,6).  

Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em Augsburgo, na Alemanha. 

Também a Carta aos Romanos foi o ponto de partida para a Reforma Protestante: Lutero escreveu seu Comentário aos Romanos em 1515, e nele já se encontra seu pensamento acerca da Justificação.  

Arendt nos mostra o percurso intelectual do conceito de “Vontade” no pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes” (Confissões). 

A “Vontade” decidirá. 

Assim como o mostra em Nietsche e Kant, além de nos pôr a par de que o fenômeno da “Vontade” era desconhecido na Antiguidade, e que sua descoberta deve ter coincidido com a da “Liberdade” enquanto questão filosófica, distinta de um fato político. 

Vontade, Liberdade, Verdade.  

Fundamental.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

FILOSOFIA: A ÁRVORE DO CONHECIMENTO

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


O conhecimento pode ser imaginado como uma árvore cujo tronco repouse no chão ancestral onde o homem pré-histórico caçava, coletava e, graças à sua primitiva linguagem, bem como à incipiente capacidade cooperativa, se tornou uma espécie apta a sobreviver.

Não é uma imagem precisa, tampouco absolutamente correta, mas cumpre seu propósito para ser assimilada.

Os problemas com os quais nossos antepassados se depararam e as soluções engendradas para ultrapassá-los formaram galhos, ramos, folhas, em ritmo cada vez maior e mais denso, em uma escala inimaginável. Cada folha, como é possível perceber, avança rumo ao infinito desconhecido por um rumo que sugere uma proporcionalidade inversa: quanto mais específico o conhecimento por ela simbolizada, mais ampla e profunda a vastidão a lhe servir de contraponto.

Se focarmos essa imagem em busca de nitidez, podemos acompanhar o desenvolvimento da Matemática, como exemplo, desde os primitivos números naturais até o cálculo, hoje, de tensores hiper espaciais, essas projeções hipotético/geométricas interdimensionais.

Podemos acompanhar, também, a evolução da linguagem até a Babel dos tempos modernos, constituída de signos bem diferenciados – desde os sinais utilizados pelos surdos-mudos, passando pelo informatiquês e o idioma dos guetos, presídios, e subúrbios, até a lógica do sub-universo computacional.

Aliás, o mundo da informática é muito exemplificativo dessa teoria da árvore do conhecimento. No início, meados do século XX, um computador ocupava salas; hoje, os “chips” guardam quantidades colossais de informações.

A imagem da árvore do conhecimento é possível graças à Teoria da Evolução de Darwin. É, digamos, um corolário. Podemos perceber que o Conhecimento se diferencia e especializa na medida em que avança. Sabemos, hoje, quase tudo acerca de quase nada em cada “nicho” do conhecimento, embora tudo quanto descartado por não ter sobrevivido ao choque entre ideias conflitantes forme uma contrapartida em negativo da realidade.

Contrapartida que agrega: aquilo que descartamos não precisa ser outra vez cogitado.

Assim essa árvore é finita e limitada (conceitos distintos) no espaço e tempo conhecidos, mas infinita e ilimitada quanto as suas possibilidades de crescimento. O futuro, para onde ela avança, é construção do passado, e como cada estrada amplia a quantidade de lugares onde se há de chegar, cada problema resolvido no processo civilizatório implica na ampliação de universos de saber.

Ou seja, o tempo, cada vez mais, dá razão a Darwin.

Funciona assim em termos macro, mas também em termos pessoais. Cada avanço nosso implica em ampliar o universo daquilo que não conhecemos. É um paradoxo: quanto mais sabemos, mais há a saber.

É, por fim, o voo do solitário para o infinito: “É como se cada um de nós, estando dentro de um ambiente fechado, uma clausura, criasse uma saída e a utilizasse. Lá, do outro lado da saída, lhe espera um outro ambiente, também fechado, só que maior, bem maior. Sua tarefa, assim, é sempre criar outra saída, sair, entrar em outro ambiente ainda maior, criar outra saída, sempre, em uma escala exponencial...”

Em termos pedagógicos, diria Gaston Bachelard: "todo conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão."

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

DE OUTSIDERS, EXCÊNTRICOS, DIVERGENTES, TRANSGRESSORES, DESVIANTES OU INCONFORMADOS (Quinta Parte)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


5. Excêntricos e Divergentes

“Cada pessoa devia andar por aí rezando pela própria Bíblia, ou seja, fazendo suas próprias leis e fazendo uso de seu livre arbítrio. Mas não é o que tem acontecido” (Mário Bortolotto, www.digestivocultural.com) 


Leonard Mlodinow é doutor em física pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi professor no Instituto de Tecnologia da California e pesquisador no Instituto Max Planck em Munique. Alguns dos seus livros anteriores são O Grande Projeto e Uma Nova História do Tempo, com Stephen Hanwking, Ciência x Espiritualidade, com Deepak Chopra, e sozinho, O Andar do Bêbado, A Janela de Euclides, O Arco-Íris de Feynmann, e Subliminar. Um currículo impressionante.

Mas é de Elastic (Flexible Thinking in a Time of Change), que aqui vamos tratar. Especificamente, daquilo que ele denomina de “pensamento flexível”.

Em síntese, em seu livro, Mlodinow nos diz que “mesmo entre animais mais complexos, boa parte do comportamento do organismo é ‘roteirizada’, ou seja, pré-programada ou automática e iniciada por algum gatilho no ambiente”[1]mas o comportamento roteirizado fracassa face a circunstâncias novas ou de mudança.

Ele defende que em certas situações, quando modos roteirizados não são os mais apropriados para o indivíduo, a evolução providenciou outros dois meios pelos quais podemos enveredar: o pensamento racional, lógico, analítico, e o pensamento flexível.

O pensamento analítico seria a forma de reflexão mais valorizada na Sociedade, apropriado peara analisar as questões mais diretas da vida, o tipo de pensamento no qual nos concentramos nas escolas, mas que ocorre de forma linear, e costuma falhar ao enfrentar os desafios inerentes à mudança.

É diante de desafios impostos pela mudança que o pensamento flexível sobressai.

Desprovido de direção de cima para baixo do pensamento analítico, e mais motivado pela emoção, o pensamento flexível se presta sob medida para integrar diversas informações, resolver enigmas e encontrar novas abordagens para problemas desafiadores[2].

Dito isso, vamos para um Capítulo muito ousado do seu livro, intitulado “O bom, o louco e o esquisito”.

Logo no início Mlodinow conta alguns detalhes “anedóticos” da personalidade de vários “excêntricos” famosos: William Blake, Howard Hughes, Buckminster Fuller, David Bowie, Nikola Tesla.[3] Hughes, por exemplo, “tinha o hábito de se sentar nu por horas em seu quarto ‘isento de germes’ no Beverly Hills Hotel – numa cadeira de couro branca, com um guardanapo cor de rosa envolvendo os genitais”. Depois se indaga: “Serão apenas anedotas divertidas ou existe uma relação significativa entre tendência a comportamentos excêntricos e capacidade de pensamento flexível?”[4]

Temos, assim, o “estranho” que vai suscitar a busca do “padrão”.

Em seguida ele aborda o histórico da pesquisa científica em busca da descoberta de um padrão em relação a essa conduta estranha detectada. E nos informa que tudo começou com um geneticista comportamental, Leonard Heston, nos anos 60, e seu estudo de crianças oferecidas para adoção por mães esquizofrênicas, bem como sua descoberta de que “havia uma pequena dose de esquizofrenia herdada que dotava essas crianças de uma tendência tanto para o pensamento flexível quanto para um comportamento não conformista”.[5]

Ao longo dos anos muitas pesquisas foram feitas na tentativa de corroborar essa hipótese. Mlodinow nos diz, em seu livro, que os cientistas estavam no caminho certo. Questionários aplicados em crianças filhas de mães esquizofrênicas tendiam a mostrar serem elas tão excêntricas quanto bem-dotadas de pensamento flexível, sobretudo de natureza divergente.[6]

Entretanto, é bom ressalvar: existe um espectro que explica até onde essa tendência é salutar. Na base da escala, temos aqueles que têm inibição cognitiva, com pensamentos e ações convencionais; no topo, temos os que podem ter dificuldade em se manter coerentes; no meio, entre as duas extremidades, ficam os que têm uma tendência ao pensamento original e ao desenvolvimento de um comportamento não conformista.

Por fim Mlodinow adverte que os psicólogos acreditam que uma das diferenças-chave entre pessoas com personalidades no meio da escala e aquelas que realmente sofrem de esquizofrenia, está na capacidade de se concentrar, e de forma mais geral, de aplicar um tipo de inteligência analítica e ordeira.

Surge, dessa forma, o padrão procurado, sujeito à falsificabilidade metodológica: quanto mais a hipótese acerca da existência desse padrão resistir às críticas, aos testes, melhor se firmará no universo do conhecimento.

E, de forma muito interessante, surge uma conexão entre o pensamento de Carlyle e o de Mlodinow. Com efeito, se nos perguntássemos de que “massa” seriam feitos os heróis “condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir”, não é tentador acreditar que Mlodinow esteja certo quando propõe que foram eles excêntricos, bem-dotadas de pensamento flexível, sobretudo de natureza divergente?

Homens ou mulheres que ousaram dizer “não”?


[1] O.a.c. Pag. 14.

[2] Idem. Pag. 16.

[3] Estranhos.

[4] O.a.c. Pág. 212.

[5] Idem. Pág. 214 e segs.

[6] Grifo meu.

sábado, 21 de agosto de 2021

DE OUTSIDERS, EXCÊNTRICOS, DIVERGENTES, TRANSGRESSORES, DESVIANTES OU INCONFORMADOS (Quarta Parte)

 * Honório de Medeiros 

(honoriodemedeiros@gmail.com)


4.     Anjos e Demônios 

“... quem és, afinal?

- Sou parte da força que eternamente

deseja o mal e eternamente faz o bem”

Fausto, Goethe 

Adotemos o termo “outsider”, até por também significar “estranho”, como opção para designar o divergente inconformado que se revolta e transgride. Lembremo-nos que o revoltado não é necessariamente o raivoso, mas, sim, aquele do qual nos fala Camus, o que diz “não”.

E nos questionemos: o que leva o Outsider a divergir, não se conformar, a se revoltar e dizer “não”? A ânsia de glória à qual aludiu Bertrand Russel? E por que alguns têm essa ânsia em maior grau que os outros?

A pergunta a ser feita poderia ser a seguinte: por que alguns não se conformaram, enquanto a grande maioria seguiu sua vida “normalmente”?

Como explicar o fenômeno do surgimento específico de um determinado personagem da história, em detrimento de irmãos, primos, amigos, todos contemporâneos, do comum dos mortais?

Leonard Mlodinow propõe uma hipótese. Mas, antes, analisemos o papel da estranheza e do padrão nessa busca: parte considerável do trabalho dos cientistas e filósofos é descobrir padrões na realidade, para os quais foram atraídos por algum tipo de estranheza no comportamento dos fenômenos.

É a estranheza que conduz ao impulso de buscar o padrão. O que há ali?

Mas como se dá a percepção da estranheza? Quando ocorre a fragmentação das expectativas de que tudo ocorra como habitualmente ocorre.

Popper explica isso detidamente em sua epistemologia. Para ele, conhecemos (aprendemos) quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele[1]:

(...) cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos... 

O problema pode ser inesperado: não por outra razão a sabedoria popular diz que a necessidade é a mãe da invenção; ou provocado: qualquer problema é, antes de tudo, uma questão do espírito (intelectual), mesmo no trabalho puramente mecânico.

Elaboramos hipóteses que são soluções provisórias a serem testadas. O teste dirá se erramos ou acertamos, e o erro nos ensina, posto que não precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado. Uma vez revelado que nossa hipótese está correta, surge o padrão: uma vez repetidas as mesmas condições que fizeram surgir a estranheza, já sabemos como tudo se comportará, em termos de causa e efeito.

Se aprendemos quando nos deparamos com um problema, é porque há um conhecimento em nós que o antecede e nos permite identificá-lo. Se o conhecimento é retificável, é evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo. 

O conhecimento (aprendizado) pode, então, ser compreendido como um “vir-a-ser” de complexidade cada vez maior. E não é possível comparar informação com conhecimento; quando conheço, estou informado, mas, nem sempre quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem compreendê-lo.

É preciso cautela, entretanto. Não é tão simples a lide com um aparente padrão que provoca quem busca desvendá-lo, assim como não é simples lidar com estranhezas. O padrão descoberto, se se mantém ao ser constatado, destrói falsos padrões que o antecederam; a estranheza que se oferece, às vezes clama por se manter escondida.

Voltemos à questão inicial. Vejamos o caso do livro Homens em tempos sombrios, de Hannah Arendt. São perfis de Doris Lessing, Rosa Luxemburgo, Giuseppe Roncalli, Karl Jaspers, Isak Dinesen, Herman Broch, Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Randall Jarrell e Martin Heidegger. Todos “outsiders”, digamo-lo assim. Qual é o padrão? O que os une? A apreciação pessoal da autora?[2]

Agora, vejamos Luis da Câmara Cascudo e seu Flor de Romances Trágicos. São perfis de Antônio Silvino, Antônio Tomás, Rio Preto, Nascimento Grande, Jararaca, Moita Brava, Vilela, Adolfo Rosa Meia-Noite, Jesuíno Brilhante, Lucas da Feira, José Leão, Pedro Espanhol, José do Vale e Cabeleira. “Outsiders”? Qual o padrão, o banditismo? E por qual razão optaram pelo banditismo?[3]

E quanto a Gödel, Escher, Bach, de Douglas Hofstadter? O padrão seria a genialidade?[4]

Vejamos, também, um exemplo de estranheza e padrão, próprios da ciência, em um livro de Steven Johnson. A tradutora de Emergence (The Connected Lives of Ants, Brains, Cities and Software) optou por traduzir o título desse livro de Steven Johnson para Emergência (A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares). Não faz muito sentido.[5]

Primeiramente não usamos, cá no Brasil, o termo "emergência", usualmente, no sentido de "algo que emerge". Usamos no sentido de "situação grave, perigosa, crítica". Para o sentido de "algo que emerge" utilizamos "surgimento".

Em segundo lugar o subtítulo "dinâmica de redes em formigas, cérebros, cidades e softwares" é muito pesado. Remete a algo do nicho específico de estudiosos da área de redes em tecnologia da informação. Afasta o leitor que se pretende alcançar, aquele de formação mediana.

Talvez mais apropriado fosse a utilização apenas do subtítulo, a partir de uma tradução mais literal do original: "As vidas conectadas das formigas, cérebros, cidades e softwares". 

Tal preâmbulo pretende dizer que a capa da tradução brasileira do instigante livro de Steven Johnson não nos permite uma pálida ideia, sequer, de quão é importante o assunto tratado pelo autor.

Graduado em semiótica pela Brown University e em literatura inglesa pela Columbia University, Johnson é aclamado pela Newsweek, New York Magazine e Websight como um influente pensador do ciberespaço.

Tem Steven Pinker, autor de Como a Mente Funciona, como seu leitor entusiasmado.

Do que trata Johnson em seu livro? Em síntese: do surgimento de sistemas complexos adaptativos, tais como formigueiros, cérebros, cidades, softwares, e assim por diante.

Johnson defende a existência de algo em comum entre tais sistemas, ou seja, "O que une esses diferentes fenômenos é uma forma e um padrão recorrentes: uma rede de auto-organização, de agentes dessemelhantes que inadvertidamente criam uma ordem de nível mais alto", diz ele.[6]

E mais complexa, digo eu.

Johnson chama esse tipo de "surgimento", no qual um organismo complexo pode emergir, sem que haja um líder para planejar e dar ordens, sem hierarquia e comando, por intermédio da "mão invisível e fantasmagórica da auto-organização", de "comportamento emergente".

As raízes dessa hipótese repousam no solo fértil do pensamento de Adam Smith, Charles Darwin, Alan Turing e, embora não citado pelo autor, Ilya Prigogine e sua “Teoria do Caos e do Atrator”.

De tudo isso se extrai que em algum momento ímpar na ciência, quando o cientista percebe algo estranho, fora dos padrões e não explicável, ele diz “não”, rompe com a tradição científica e elabora uma nova teoria ou hipótese para explicar o acontecido, que há de ser testado, e, na medida em que sobreviva aos testes, se estabeleça enquanto um novo padrão, fazendo o conhecimento avançar.

Podemos dizer que na história aparentemente existe um padrão semelhante: se fosse uma teia, seria tecida por quem disse e diz “não”, por aqueles que, “(...) foram os condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir”, como disse Carlyle e lemos mais acima.

Voltemos a Mlodinow, para tentar compreender o que leva esses “pequenos e grandes homens” a dizerem não e fazerem avançar nosso processo civilizatório.



[1] POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1978. Pág. 14 e segs.

[2] ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Schwarcz. 2008.

[3] CASCUDO, Luis da Câmara Cascudo. Flor de Romances Trágicos. Natal: EDUFRN. 1999.

[4] HOFSTADTER, Douglas R. Gödel, Escher, Bach. Brasília: Editora UNB. 2001.

[5] JOHNSON, Steven. Emergência: A Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.

[6] Grifo meu.