sábado, 21 de agosto de 2021

DE OUTSIDERS, EXCÊNTRICOS, DIVERGENTES, TRANSGRESSORES, DESVIANTES OU INCONFORMADOS (Quarta Parte)

 * Honório de Medeiros 

(honoriodemedeiros@gmail.com)


4.     Anjos e Demônios 

“... quem és, afinal?

- Sou parte da força que eternamente

deseja o mal e eternamente faz o bem”

Fausto, Goethe 

Adotemos o termo “outsider”, até por também significar “estranho”, como opção para designar o divergente inconformado que se revolta e transgride. Lembremo-nos que o revoltado não é necessariamente o raivoso, mas, sim, aquele do qual nos fala Camus, o que diz “não”.

E nos questionemos: o que leva o Outsider a divergir, não se conformar, a se revoltar e dizer “não”? A ânsia de glória à qual aludiu Bertrand Russel? E por que alguns têm essa ânsia em maior grau que os outros?

A pergunta a ser feita poderia ser a seguinte: por que alguns não se conformaram, enquanto a grande maioria seguiu sua vida “normalmente”?

Como explicar o fenômeno do surgimento específico de um determinado personagem da história, em detrimento de irmãos, primos, amigos, todos contemporâneos, do comum dos mortais?

Leonard Mlodinow propõe uma hipótese. Mas, antes, analisemos o papel da estranheza e do padrão nessa busca: parte considerável do trabalho dos cientistas e filósofos é descobrir padrões na realidade, para os quais foram atraídos por algum tipo de estranheza no comportamento dos fenômenos.

É a estranheza que conduz ao impulso de buscar o padrão. O que há ali?

Mas como se dá a percepção da estranheza? Quando ocorre a fragmentação das expectativas de que tudo ocorra como habitualmente ocorre.

Popper explica isso detidamente em sua epistemologia. Para ele, conhecemos (aprendemos) quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele[1]:

(...) cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos... 

O problema pode ser inesperado: não por outra razão a sabedoria popular diz que a necessidade é a mãe da invenção; ou provocado: qualquer problema é, antes de tudo, uma questão do espírito (intelectual), mesmo no trabalho puramente mecânico.

Elaboramos hipóteses que são soluções provisórias a serem testadas. O teste dirá se erramos ou acertamos, e o erro nos ensina, posto que não precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado. Uma vez revelado que nossa hipótese está correta, surge o padrão: uma vez repetidas as mesmas condições que fizeram surgir a estranheza, já sabemos como tudo se comportará, em termos de causa e efeito.

Se aprendemos quando nos deparamos com um problema, é porque há um conhecimento em nós que o antecede e nos permite identificá-lo. Se o conhecimento é retificável, é evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo. 

O conhecimento (aprendizado) pode, então, ser compreendido como um “vir-a-ser” de complexidade cada vez maior. E não é possível comparar informação com conhecimento; quando conheço, estou informado, mas, nem sempre quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem compreendê-lo.

É preciso cautela, entretanto. Não é tão simples a lide com um aparente padrão que provoca quem busca desvendá-lo, assim como não é simples lidar com estranhezas. O padrão descoberto, se se mantém ao ser constatado, destrói falsos padrões que o antecederam; a estranheza que se oferece, às vezes clama por se manter escondida.

Voltemos à questão inicial. Vejamos o caso do livro Homens em tempos sombrios, de Hannah Arendt. São perfis de Doris Lessing, Rosa Luxemburgo, Giuseppe Roncalli, Karl Jaspers, Isak Dinesen, Herman Broch, Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Randall Jarrell e Martin Heidegger. Todos “outsiders”, digamo-lo assim. Qual é o padrão? O que os une? A apreciação pessoal da autora?[2]

Agora, vejamos Luis da Câmara Cascudo e seu Flor de Romances Trágicos. São perfis de Antônio Silvino, Antônio Tomás, Rio Preto, Nascimento Grande, Jararaca, Moita Brava, Vilela, Adolfo Rosa Meia-Noite, Jesuíno Brilhante, Lucas da Feira, José Leão, Pedro Espanhol, José do Vale e Cabeleira. “Outsiders”? Qual o padrão, o banditismo? E por qual razão optaram pelo banditismo?[3]

E quanto a Gödel, Escher, Bach, de Douglas Hofstadter? O padrão seria a genialidade?[4]

Vejamos, também, um exemplo de estranheza e padrão, próprios da ciência, em um livro de Steven Johnson. A tradutora de Emergence (The Connected Lives of Ants, Brains, Cities and Software) optou por traduzir o título desse livro de Steven Johnson para Emergência (A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares). Não faz muito sentido.[5]

Primeiramente não usamos, cá no Brasil, o termo "emergência", usualmente, no sentido de "algo que emerge". Usamos no sentido de "situação grave, perigosa, crítica". Para o sentido de "algo que emerge" utilizamos "surgimento".

Em segundo lugar o subtítulo "dinâmica de redes em formigas, cérebros, cidades e softwares" é muito pesado. Remete a algo do nicho específico de estudiosos da área de redes em tecnologia da informação. Afasta o leitor que se pretende alcançar, aquele de formação mediana.

Talvez mais apropriado fosse a utilização apenas do subtítulo, a partir de uma tradução mais literal do original: "As vidas conectadas das formigas, cérebros, cidades e softwares". 

Tal preâmbulo pretende dizer que a capa da tradução brasileira do instigante livro de Steven Johnson não nos permite uma pálida ideia, sequer, de quão é importante o assunto tratado pelo autor.

Graduado em semiótica pela Brown University e em literatura inglesa pela Columbia University, Johnson é aclamado pela Newsweek, New York Magazine e Websight como um influente pensador do ciberespaço.

Tem Steven Pinker, autor de Como a Mente Funciona, como seu leitor entusiasmado.

Do que trata Johnson em seu livro? Em síntese: do surgimento de sistemas complexos adaptativos, tais como formigueiros, cérebros, cidades, softwares, e assim por diante.

Johnson defende a existência de algo em comum entre tais sistemas, ou seja, "O que une esses diferentes fenômenos é uma forma e um padrão recorrentes: uma rede de auto-organização, de agentes dessemelhantes que inadvertidamente criam uma ordem de nível mais alto", diz ele.[6]

E mais complexa, digo eu.

Johnson chama esse tipo de "surgimento", no qual um organismo complexo pode emergir, sem que haja um líder para planejar e dar ordens, sem hierarquia e comando, por intermédio da "mão invisível e fantasmagórica da auto-organização", de "comportamento emergente".

As raízes dessa hipótese repousam no solo fértil do pensamento de Adam Smith, Charles Darwin, Alan Turing e, embora não citado pelo autor, Ilya Prigogine e sua “Teoria do Caos e do Atrator”.

De tudo isso se extrai que em algum momento ímpar na ciência, quando o cientista percebe algo estranho, fora dos padrões e não explicável, ele diz “não”, rompe com a tradição científica e elabora uma nova teoria ou hipótese para explicar o acontecido, que há de ser testado, e, na medida em que sobreviva aos testes, se estabeleça enquanto um novo padrão, fazendo o conhecimento avançar.

Podemos dizer que na história aparentemente existe um padrão semelhante: se fosse uma teia, seria tecida por quem disse e diz “não”, por aqueles que, “(...) foram os condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir”, como disse Carlyle e lemos mais acima.

Voltemos a Mlodinow, para tentar compreender o que leva esses “pequenos e grandes homens” a dizerem não e fazerem avançar nosso processo civilizatório.



[1] POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1978. Pág. 14 e segs.

[2] ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Schwarcz. 2008.

[3] CASCUDO, Luis da Câmara Cascudo. Flor de Romances Trágicos. Natal: EDUFRN. 1999.

[4] HOFSTADTER, Douglas R. Gödel, Escher, Bach. Brasília: Editora UNB. 2001.

[5] JOHNSON, Steven. Emergência: A Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.

[6] Grifo meu.

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