sexta-feira, 11 de março de 2016

DE UMA QUIETA TENDÊNCIA A NEGAR O MUNDO

* Honório de Medeiros


Vila-Matas, em seu inigualável "Bartleby e Companhia", observou que Roberto Colasso, referindo-se a Robert Walser, o autor de "Jakob von Guntem", genial atraído pelo nada, e ao próprio Bartleby, o personagem símbolo dessa estranha pulsão, criação de Herman Melville, chama a atenção para os "seres que imitam a aparência do homem discreto e comum" no qual "habita, no entanto, uma inquieta tendência à negação do mundo."

Meu pai e seus silêncios, sua deliberada omissão em falar acerca do seu passado, seu instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, sua disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma.

Não inquieta, mas profundamente quieta era sua negação ao mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais.

Mas hoje percebo: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente placidez de sempre.

E eu, e nós, que sempre o achamos tão comum. Como poderia, ele que sempre foi um sobrevivente?

Ou sabia muito e desdenhava, ou sabia muito e percebia que não valia a pena.

EU TE AMO



* Bárbara de Medeiros

Mais uma madrugada chegou e eu não consegui dormir por causa de uma velha amiga chamada ansiedade. Quando meu coração acelera a velocidades exorbitantes e minha cabeça gira, minha única escolha é me agarrar a um refúgio que guardo a sete chaves (e uma senha de dezessete dígitos) no fundo do meu computador, em que fotos, depoimentos e prints de conversas ajudam a me lembrar que, no fundo, no fundo, eu não sou odiada por todos que me conhecem.

(talvez pareça ridículo, mas quando eu não consigo dormir à noite o motivo normalmente é esse).

Hoje resolvi abrir uma conversa antiga com um dos melhores professores que já tive na vida – não citarei nomes porque ele sabe quem é. De todas as escolas em que já estudei, a dele foi a minha favorita, e o mais engraçado é que ele é a única coisa que eu sinto falta quando lembro dos momentos que passei lá. O resto, consigo reconhecer que “foi bom enquanto durou”, e a nostalgia não me consome e a saudade não me afoga quando penso.

Ele, ao contrário, é servido nas minhas lembranças numa bandeja de ouro com uma taça de melancolia, e a falta dele dói tanto que eu juro que sinto que falta um pedaço do meu coração.

Mas as lembranças escoam no tempo, e por mais que eu não duvide da importância que ele teve na minha vida (escolar e pessoal), não consigo lembrar grande parte dos momentos que compartilhamos. E é por isso que às três da manhã me encontro revirando as mensagens trocadas pelo Facebook há quase quatro anos (eu juro que parece que foi ontem).

Pra começar, ficou óbvio pra mim que grande parte do tempo eu, como a adolescente bipolar que era, perdi bastante tempo estando chateada com ele, provavelmente como uma forma de chamar atenção? Nossa turma foi a primeira que ele ensinou, e eu sei que o apego que eu tive por ele todas as outras meninas da sala também tiveram, e ele teve por todas nós. Mas seria exagero dizer que nós tinhamos uma conexão especial?

Minha mãe suspiraria e reviraria os olhos, lembrando-me que eu sempre tive um fetiche por professores. Por mais que ele tenha sido meu professor de história, pasmem! Eu nunca fui apaixonada por ele. Não era apaixonada por ele, como fui pelo seu antecessor e pelo seu sucessor e por tantos outros que me deram essa fama de platonicamente Lolita. Eu o amava.

Mas eu não o amava com suspiros apaixonados e sonhos acordados, com a ansiedade feliz e infantil de uma criança que imaginava ter encontrado seu príncipe encantado. Eu nunca pensei nele como um homem com quem eu poderia ter meu felizes-para-sempre, ou qualquer outra coisa que a gente imagine que é o amor e a base de um relacionamento quando se é adolescente.

Eu o amava com o fervor de uma menina encantada, apaixonada pela paixão com o qual ele ensinava nossa matéria favorita, com a habilidade que logo fez todas as quarenta meninas da sala amarem história. Eu o amava com uma preocupação lenta e constante: “Você está bem?”, “Você precisa de alguma coisa?”, “Posso te ajudar?”.

Eu o amava todas as vezes que pulava da cama ansiosa porque teríamos aula, todas as segundas e sextas, e era como se só nesses dias a vida fizesse sentido. Porque ele me entendia, me respeitava e me fascinava.

E eu não o amava como quem esperava algo dele ou de mim ou de nós, eu o amava pelo que ele representava pra mim, o mestre que não se achava nada, mas que dava tudo de si para que nós fossemos alguém.

Nós éramos o seu mundo e a realização de um sonho, e quando eu vi a decepção começar a corroer seu coração, tão jovem, tão cedo, foi como se estivesse me matando também.

Seria prepotência dizer que eu fui seu bote salva-vidas? Eu me senti assim. Eu fiz de tudo para que fosse assim.

E eu disse que o amava, todos os dias, com um abraço apertado, com um olhar encantado ou com as palavras mágicas, digitadas ou pronunciadas.

Por que é tão difícil dizê-las?

Por que é um tabu?

Porque esse homem foi importante para mim, e eu o amei, e não de uma forma sexual ou romântica, mas como uma evolução natural do processo de admiração que vivi.

Eu o amei como amo meu pai, minha mãe, meu irmão, a memória da minha avó e meus amigos mais queridos, e um monte de outros professores que vieram antes e depois dele.

E ele sabe disso.

Mas em algum momento, entre esses quatro anos que nos afastaram fisicamente um do outro, eu mudei.

E dizer “eu te amo” se tornou tão, tão difícil. Algo que a gente fala pros pais, pro irmão quando necessário, pros amigos após um momento de hesitação, pros avós porque eles precisam ouvir, e apenas raramente pra um interesse amoroso.

Nunca pra professores.

Mesmo que seja verdade, e que nosso coração esteja explodindo de amor por eles.

Porque não é apropriado.

E eu só tenho pena. Porque talvez se não houvesse o “o que ela quis dizer com isso?” e as pessoas dissessem tudo o que sentem e querem que seja dito, o mundo seria um lugar com mais amor e felicidade.

Esse texto é um desabafo longo demais, que talvez nunca seja a luz do dia, de uma menina que está prestes a completar dezoito anos e não sabe a última vez que falou que amava um professor.

Hoje, por escrito e sem citar nomes, eu gostaria de dizer.

Eu amo vocês. Muito obrigada por serem pessoas lindas, por dentro e por fora, que fazem acordar cedo valer a pena quando vejo aquele brilho de felicidade nos seus olhos, por estarem ensinando algo que gostam.

Eu amo você, primeiro professor de história que viu potencial em uma menina ignorada por todos ao seu redor.

Eu amo você, professor de inglês que hoje é amigo e que eu ainda estou descobrindo novos motivos para amar.

Eu amo você, professor de história-músico por quem eu nutri uma paixão platônica e que hoje é o fruto das minhas maiores risadas.

Eu amo você, professor de francês que deve ter sido minha alma gêmea em alguma vida passada.

Eu amo você, professora de matemática que sem sorrir na maior parte das aulas cavou um túnel em meu coração até encontrar seu lugar.

Eu amo você, professor de geografia que me ensinou mais do que eu posso colocar em papel. Sinto sua falta todos os dias.

Eu amo você, minha primeira professora de inglês. E sua morte não pode nunca tirar de mim a importância da sua vida na minha.

E eu amo você, meu último professor de história e minha última paixão platônica. Sua aula era uma peça de teatro da qual eu nunca conseguia tirar os olhos.

Espero um dia recuperar a coragem de dizer o que precisa ser dito, sem medo do que os outros pensam que eu quero obter com o que digo.

Nunca é nada demais, só uma consciência limpa e um coração um pouco menos pesado.

Porque sabe como é: tem horas que o amor transborda.