O pai de minha sogra tinha mais de noventa e seis anos quando esse fato aconteceu.
Andar curvado, pele curtida, mãos nodosas, cabelos finos e totalmente brancos, de uma magreza ascética, poucas palavras, um começo de senilidade que não lhe fizera perder totalmente o senso.
Homem tipicamente sertanejo e rural, daquela estirpe de nordestinos como já não os há, cuja palavra empenhada vale mais que qualquer cheque em branco, seu código de honra era imutável: uma vez tomada uma posição, não havia possibilidade de mudança.
Seus valores eram "preto no branco". Aprendera assim com seus avôs e pais e, segundo ele, deveria ser assim por que assim o era desde que o mundo é mundo.
Aconteceu que um dos seus muitos filhos, o mais velho, suscetível, em termos de honra, tanto quanto ele, depois de uma desavença onde não faltaram palavras ásperas de lado-a-lado, foi-se embora jurando nunca mais voltar.
Ele sentiu o golpe, mas não o acusou. Ano após ano, mesmo as lágrimas de mãe que sua esposa derramava escondido e ele pressentia, não lhe fez sequer murmurar o nome daquele que ousara levantar a voz e desrespeitar sua autoridade paterna.
Era como se o filho não existisse, e as notícias esparsas, trazidas pelos outros até o seio da família não lhe eram comunicadas, circulando sem o seu conhecimento, por entre a mãe e irmãos.
Dias antes da última eleição municipal que o encontrou vivo, uma ligação da desconhecida esposa desse seu filho comunicou sua doença: entubado, inconsciente, comatoso, jazia na unidade de tratamento intensivo de um grande hospital em uma cidade distante, no norte do País.
Criou-se uma sincronia macabra entre a expectativa do dia eleição e o da sua morte, nessa altura, já esperada.
Embora todos, em casa, soubessem da situação, e poupassem o pai por temor de um agravamento da sua fragilidade de idoso, a ansiedade pelo desfecho, tanto da eleição, quanto da morte - agravada pela dificuldade de se obterem informações - aumentava cada vez mais.
No dia anterior ao da eleição, às oito horas da manhã, uma das suas filhas, como de costume, foi acordá-lo para o café e o encontrou falando como se estivesse se dirigindo a alguém. Perguntou-lhe: “com quem está falando, papai?” “Com esse homem de olhos acesos que não para de me olhar”. “Quem, papai, aqui não tem ninguém”. “Você pensa que eu sou doido; o que ele queria aqui no meu quarto?”
A filha imediatamente teve um palpite, e, angustiada, sentou-se lentamente na cama. “Papai, esse homem era novo ou velho?” “Era novo, ainda.” Nesse instante, o telefone tocou estridentemente lá fora. Ela correu para atender. Do outro lado da linha, a informação esperada: “seu irmão acabou de falecer.”
Mas ainda não acabara o inexplicável. À noite, enquanto era acomodado em sua cama, véspera tumultuada de eleição, o pai virou-se para a filha e resmungou. Atenta, ela lhe indagou: “o que é papai?” “Essas almas”, respondeu, “hoje está cheio delas aqui.”
Pouco tempo depois, chegou sua vez...
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros
Imagem: @michaellalima