quarta-feira, 30 de julho de 2025

MEMÓRIAS DE UM COMERCIANTE E BANQUEIRO

 


Sebastião Fernandes Gurgel


* Honório de Medeiros


O “Memórias de um Comerciante e Banqueiro (Diário)", de Sebastião Fernandes Gurgel, abrangendo o período entre 1900 a maio de 1966, abrange 6 volumes (do 1290 ao 1295), 2ª. Edição, 2002 – da Coleção Mossoroense, Série "C", esse incomparável legado que Vingt-Un Rosado deixou para o futuro.

Dos 6 volumes, vieram a público os 5 primeiros; o sexto não foi impresso ou foi retido pela família, e diz respeito ao espaço de tempo entre 8 de janeiro de 1955 e maio de de 1966.

Não há informações quanto à primeira edição.

Chegaram às nossas mãos, informa Raimundo Soares de Brito, que lhe faz o prefácio da edição, graças a Obery Rodrigues, filho, e o empresário Ronald Gurgel, neto de “Seu Tião Gurgel”.

É uma obra interessante sob muitos aspectos.

Nela encontramos desde o registro obsessivo do preço dos produtos vendidos pelo comércio, ano a ano, como a menção aos males –e o tratamento - que acometem a saúde do autor no espaço de tempo que dura o diário. Também salta à vista as anotações relativas às estiagens e invernadas, assim como acerca de fatos da vida social do Oeste potiguar.

Não contivesse outros temas esses bastariam para um estudo de caráter sociológico. Mas há mais, muito mais, tal qual o registro da vida social, econômica e política de Mossoró na primeira metade do século XX.

E, por que não dizer, um vasto e portentoso material para uma análise da época. É todo um excelente material à espera de futuros mestres e doutores.

O volume alusivo à 1927, é o III. Abrange de 01 de fevereiro de 1916 a 08 de junho de 1936.

Que nos diz Sebastião Gurgel em relação à invasão de Mossoró pelo bando de Lampião?

Infelizmente “Seu Tião” foi avaro nos comentários. Aliás, de sua lavra, não vamos encontrar textos longos alusivos a qualquer que seja o tema. Trata-se de registros secos, esboços às vezes até mesmo toscos, em relação aos fatos.

Entretanto há um comentário seu, a respeito de sua conduta durante o episódio, que vale a pena ser transcrito, pela auto-ironia nele contida: “Eu, já se sabe, nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada”.

Sebastião Gurgel não deixou claro para onde fugiu quando da invasão de Mossoró pelo bando de Lampião.

Deixou claro, entretanto, que como consequência da onda de boatos acerca da volta dos bandidos, pegou a família no dia 10 de julho e a levou para Natal, onde alugou casa, somente voltando para Mossoró, no dia 8 de setembro do mesmo ano.

Na mesma data – 31 de julho – na qual informou sua saída de Mossoró, comentou que no dia 24 de julho houve “um acontecimento sensacional”: o casamento do Monsenhor Almeida Barreto com Maria Nazareth de Oliveira, algo que deve ter causado bastante impacto na cidade, haja vista a publicação – Coleção Mossoroense, Série “B”, Número 1637, 1999 - pelo pesquisador Dr. Paulo Gastão, de plaquete na qual transcreve carta de Rodolpho Fernandes ao citado sacerdote, de quem era compadre, acusando o recebimento de correspondência sua, marcada como “confidencial”, na qual expõe as razões do seu gesto.

Comove o leitor, ao longo da leitura do seu Diário, o apreço que Sebastião Gurgel tinha por sua esposa e companheira de toda uma vida – Dna. Elisa – com quem teve oito filhos.

Suas demonstrações de apreço e os agradecimentos a Deus pela escolha que fez são notáveis, principalmente se levarmos em conta que o casamento foi, de acordo com os moldes da época, “arranjado”.

Também chama a atenção a religiosidade simples de “Seu Tião”: missa dominical, envolvimento nas ações da Igreja, uma legião de “afilhados”, uma devoção prática a um Deus provedor e justiceiro ao qual se dirige de cabeça baixa para aceitar, por exemplo, sem questionamentos, a “pena” por Ele imposta a sua família através de José, seu filho, seminarista, acometido de lepra.

Nada mais medieval.

Quanto ainda não há para se escrever acerca desse País de Mossoró e seus habitantes!

@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

segunda-feira, 28 de julho de 2025

domingo, 27 de julho de 2025

SEU LULA NOGUEIRA

 


* Honório de Medeiros          


Ali e acolá, em livros que somente alguns leem, seja porque deliberadamente os procuram, seja por um desses acasos da vida, me deparo com seu nome.

Está posto em um pé-de-página, ou em algum parágrafo.

Recentemente, ao reler a literatura norte-rio-grandense acerca da saga lampiônica em Mossoró – Raul Fernandes e Raimundo Nonato da Silva – lá estava seu nome, “en passant”, como teria dito, trazendo expressões próprias do jogo de xadrez, que tanto amava, para o cotidiano.

Foi exatamente o jogo de xadrez que me levou a conhecê-lo. Eu e vários de minha geração, a quem ele pacientemente ensinou a jogar. 

Tínhamos em torno dos oito anos e nosso mundo era muito simples: brincar no Colégio Diocesano, brincar no patamar da Igreja de São Vicente, brincar em casa nas raras vezes em que a rua nos era proibida. 

Assim como brincar de aprender a jogar xadrez nas tardes provincianas de Mossoró, anos sessenta, na pequena casa onde Lula Nogueira - “Seu" Lula - vivia sozinho com o filho solteirão – uma figura misteriosa a quem quase nunca víamos e acerca de quem falávamos aos sussurros.

“Seu” Lula morava nessa casinha branca que tinha uma área de entrada diminuta, porta e janela dando imediatamente para a salinha de visita e jantar, ao mesmo tempo. Do lado esquerdo de quem entrava dois quartos: o primeiro, com janelão para a rua, era o seu; o outro, do filho. 

A sala emendava com uma pequena cozinha dela separada por uma mureta onde pontificava um filtro de água de cerâmica e um varal de madeira de empilhar pratos, meio escondidos por um pano.

Tudo muito normal, tudo muito comum, não fosse uma mesa oficial de xadrez colocada perpendicularmente à janela da sala para aproveitar a luz do sol, na qual ficavam postados, desde sempre, livros e revistas argentinas acerca do jogo, além de majestosas e manuseadas peças tipo “Stauton”, para os embates enxadrísticos.

Embora possa lembrar de “Seu" Lula conversando na nossa rua, principalmente na roda de “Seu" Napoleão, onde o escutei, entre perplexo e admirado, certa vez, afirmar enfaticamente que somente morreria após a passagem do ano 2000, tais incursões eram raras.

Certo, mesmo, era passar em frente à sua casinha, fosse manhã ou tarde, e encontra-lo defronte ao tabuleiro de xadrez, mão esquerda com dedos polegar e indicador apoiando a cabeça, cigarro esquecido embora aceso entre os dedos médio e anular, enquanto a mão direita movia as peças para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ou na diagonal, na tentativa de criar ou solucionar problemas enxadrísticos que já haviam lhe granjeado reputação nacional. 

Podia, também, ser o caso de estar, simplesmente, reproduzindo uma partida de xadrez de grandes mestres internacionais.

Depois eu, como os outros, fui embora. O mundo nos esperava. Entretanto, nunca esquecemos – aqueles que fomos seus alunos – nosso professor de xadrez.

A ele ofereci, em silêncio, minha primeira medalha de ouro nos Jogos Estudantis do Rio Grande do Norte, disputando pela então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte.

Basta, ainda hoje, ver peças tipo “Stauton”, ou mesmo um tabuleiro oficial, que volto no tempo para aqueles dias já longínquos quando um menino magro, tímido, e um ancião de mãos nodosas, emoldurados pela claridade solar que ultrapassava a janela da sala e escandia a fumaça dos muitos cigarros fumados ou esquecidos, jogavam intermináveis partidas nas quais somente a profunda gentileza do professor impedia uma humilhação contínua ao aluno.

@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros@gmail.com