American Girl in Italy (Ruth Orkin, 1951)
* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. Olhei disfarçadamente: a noite apenas começava, mas ela já parecia estar muito cansada.
Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. Melhor não.
A fotografia - ou seja, a reprodução em preto e branco, dividia, com outras, a atenção dos frequentadores.
“É a que chama mais atenção”, disse-me, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?” “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra.
Olhei novamente a fotografia: uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinquenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma.
Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas, há algo de aflito no seu olhar, talvez causado pela vergonha de tão exacerbada atenção.
Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, disse que não foi difícil convencer a americana, que conhecera em uma pensão para turistas, a servir de modelo. Não houvera produção: exceto a ideia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo.
Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficaremos com o passar dos anos”.
A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista.
Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha, a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que não trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra.
Cada vez que ela ia, eu olhava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extrairíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, que meu olhar não alcançava.
“Você não se preocupa com sua beleza?”, perguntei. “Como assim?”, indagou. “Essa história de você trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo para me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”.
As meninas, aquelas adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a rede social e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve.
A conta chega.
“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”.
“Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”.
Ela não esperou qualquer comentário meu à sua resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente.
Desci a escada e ganhei a rua. Procurei o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era adolescente: Sidarta, de Herman Hesse.
Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, enquanto contemplavam as águas de um rio.
Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a procura do oceano, o rio continua no mesmo lugar.
A vida passa, mas está. O homem vai, mas a humanidade permanece.