sábado, 17 de janeiro de 2015

A APROPRIAÇÃO, PELO ESTADO, DA FORÇA DE TRABALHO DO SERVIDOR PÚBLICO

* Honório de Medeiros

Para entendermos o raciocínio que neste artigo é desenvolvido, precisamos esquecer as sofisticadas definições criadas por intelectuais acerca do que seja Estado. Vamos pegar a noção do senso comum, que é uma evolução do pensamento de Aristóteles acerca do que seja uma comunidade política: Estado é um território no qual vive uma população submetida a uma elite governamental supostamente representativa dos interesses da maioria.

Essa elite governamental, para aumentar ou se perpetuar seu poder, necessita de instrumentos através dos quais tal seja possível, os assim chamados “Aparelhos do Estado” - Poder Executivo, Legislativo e Judiciário – cristalizações de relações de domínio – que operam, se transformam em realidade, por intermédio dos servidores públicos. Em síntese: alguns mandando em muitos através de outros.

Não esqueçamos que o Estado é uma hipostasia, uma abstração. O que existe, realmente, são relações de domínio.

Os servidores públicos concretizam essa dominação exercida pela elite governamental, da qual eles são integrantes, sobre a maioria da população e, ao mesmo tempo, são dominados pelo topo da hierarquia do Estado ao qual pertencem. Nesse papel de “correia de transmissão” entre o Estado e a Sociedade os servidores vendem, ao primeiro, em troca de uma remuneração, sua força de trabalho física ou intelectual.

No Estado brasileiro, por força de disposição constitucional pétrea, ou seja, supostamente “imexível”, essa remuneração não pode ser reduzida.

Entretanto essa mesma remuneração, muito embora não possa ser reduzida, é alvo permanente de apropriação por parte do Estado ao qual o servidor público presta serviço. Isso ocorre indiretamente, por exemplo, quando seu poder de compra é corroído pela inflação, e o Estado paga cada dia menos pelo mesmo trabalho, ou diretamente, quando a base de cálculo sobre a qual incide a alíquota do imposto de renda permanece baixa por que o Governo não corrige seu valor erodido pelo custo de vida. Ao não corrigir mais servidores são tributados.

Outro exemplo de apropriação direta é a imposição do pagamento da contribuição previdenciária aos aposentados, somente possível vergando-se, como se vergou, via Supremo Tribunal Federal, cláusula pétrea da Constituição, qual seja a alusiva ao direito adquirido.

A lista de exemplos é interminável: não pagamento, pelo Estado, dos débitos oriundos de questões jurídicas transitadas em julgado – os precatórios – e das decisões administrativas indiscutíveis e irrecorríveis, tais como férias vencidas e não pagas, gratificações não incorporadas, adicionais não reconhecidos, e assim por diante. É, também, o caso do vindouro pagamento, pelo servidor público, de contribuição previdenciária ao regime complementar, caso queira sobreviver, na aposentadoria, com algo além do teto que lhe reservará o regime próprio de previdência. Outro, ainda, é a não implantação de Planos de Cargos e Salários, impedindo o servidor público de ascender profissionalmente seja por mérito, seja por antiguidade, e, assim, melhorar sua remuneração.

Em todos esses exemplos se configura aquilo que o próprio Poder Judiciário denomina de “enriquecimento ilícito do Estado”. Resulta da sua fome pantagruélica, da qual é vítima permanente a classe média, constituída em grande parte por servidores públicos, espremida entre os que muito têm - a quem não importa o que lhes é cobrado – e os pobres, excluídos ou miseráveis, de quem nada se pode arrancar diretamente.

Pois o servidor público não tem como fugir da voracidade do Estado: indefeso, passivo, constata, todos os meses, o imposto de renda ser cobrado na fonte, ou seja, em sua remuneração, enquanto os megacontribuintes, pagando caro a escritórios especializados, através das brechas das leis, vão driblando os fiscais e engordando seus lucros.

Matéria publicada na Revista Veja (edição 2100, ano 42, nº 7, 18 de fevereiro de 2009) aponta para 20 bilhões de reais o débito de madeireiras, siderúrgicas, bancos, financeiras, empresas telefônicas, indústrias, cartéis econômicos, distribuidoras, postos de combustíveis, fabricantes de alimentos e medicamentos, promotores de eventos, supermercados e padarias, empresas aéreas e outros, para com o Estado. Esse valor é apenas estimativo e aumentou muito ultimamente.

Tampouco consegue reagir a essa apropriação silenciosa e eficiente: vilipendiado de todas as formas, inclusive por intermédio da mídia subserviente comprada pelos governantes, a imensa maioria dos servidores públicos assistem, perplexos, a uma permanente campanha difamatória, contra si promovida quando o verdadeiro alvo deveria ser os cargos em comissão e funções de confiança ocupadas politicamente, detentores de gratificações ou vantagens espúrias ou mal atribuídas, tudo quanto corrói e solapa a administração pública.

Essa apatia, reforçada por mecanismos táticos compensatórios tais como gratificações, horas-extras, diárias, indenizações, todas elas impossíveis de serem levadas para a aposentadoria, aliena o servidor público, deteriora a prestação do serviço à Sociedade, e contribui para sua depreciação.

E não se está analisando, aqui, o mal que a ausência de uma política de qualificação contínua do servidor público pode causar. Tentativas esporádicas esbarram no óbvio: de que adianta qualificar-se se não há possibilidade de ascensão profissional, se não há promoção, se não há vantagens e regalias para quem se esforça e carrega o piano, pergunta-se o servidor público.

Do ponto de vista estratégico o aviltamento da remuneração dos servidores públicos, no Brasil, implica no comprometimento da capacidade de consumo da classe média, por eles fortemente constituída. Esse aviltamento cerceia seu poder de compra e estimula a corrupção. Por outro lado implica, também, na impossibilidade de elaboração de políticas públicas consistentes, dado sua falta de qualificação. E como não as há, usa-se um manjado meio de instaurar a corrupção: contratos milionários com a iniciativa privada para prestação de assessorias, consultorias e outros que tais, através, quase sempre, de licitações – quando as há – manipuladas.

Até quando, por intermédio dessa contínua apropriação, a classe média e segmentos dos servidores públicos permanecerão bancando, alienados, o pagamento do serviço da dívida do Estado e financiando ações sociais assistencialistas, populistas, bem como obras públicas desnecessárias, impostas à Sociedade por meio de estranhos critérios que a mídia áulica se encarrega de legitimar?

Até quando serão a classe média e os servidores públicos responsáveis pela benemerência do Estado junto aos excluídos e miseráveis para assegurar, a sua elite dominante, seu voto e lealdade política?

* Republicação.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

ANA MARIA CASCUDO BARRETO


(1936-2015)

"A morte não é nada. 
Eu somente passei 
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês, 
eu continuarei sendo.

Me dêem o nome 
que vocês sempre me deram, 
falem comigo 
como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo 
no mundo das criaturas, 
eu estou vivendo 
no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene 
ou triste, continuem a rir 
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi, 
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo 
o que ela sempre significou, 
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora 
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora

De suas vistas?

Eu não estou longe,
Apenas estou
Do outro lado do Caminho...

Você que aí ficou, siga em frente,
A vida continua, linda e bela
Como sempre foi."

("A Morte", Santo Agostinho)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

DA TRAGICOMÉDIA HUMANA

O Poder Político enquanto fenômeno é o parâmetro fundamental para o estudo da tragicomédia sócio-humana. Poder Político: capacidade de impor pela força, em última instância, uma vontade. Ele está por trás de tudo, na vida social: engendra as soluções para transpor os obstáculos que lhe possam surgir; constrói estratégias adaptativas. Não há vazio no espaço social, em termos de Poder Político, porque o Poder Político está sempre presente. É onipresente. Mudam seus titulares por razões múltiplas, circunstanciais, mas o Poder Político não desaparece. Tudo é prolongamento ou instrumento desse fenômeno. O que há para além dele? Melhor: o quê o instaura, faz surgi-lo? Ernst Becker diria: o medo da morte. Darwin diria: a necessidade de sobreviver. Marx diria: a luta de classes. E quanto a Freud? A nostalgia da autoridade paterna. Isto é, queremos o Poder Político por querermos deixar nossa marca na história; ou queremos o Poder Político para assegurarmos a sobrevivência dos nossos gens; ou o queremos para nos apropriarmos do excedente produzido pelos explorados, qual seja, o lucro; ou o queremos para restaurarmos a autoridade paterna. Que importa? Sejamos positivistas: não há Sociedade sem Poder Político. Por isso o anarquismo é uma utopia, um delírio. Eis o ponto de partida. 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

OS LEGALISTAS DE OCASIÃO

* Honório de Medeiros

Alguns serventuários da Justiça são hipócritas seletivos: muitas vezes criticam a norma jurídica, dizendo-a injusta, como se soubessem, em essência, o que é certo ou errado, bom ou mal, mas quando lhes convém a ela se apegam para defenderem interesses pessoais ou corporativos.
São os legalistas de ocasião.

A ilusão ou cinismo em defender que a norma jurídica possa ser Justa-em-si-mesma se deve ao atraso peculiar da filosofia e sociologia no nicho jurídico e à incompreensão acerca do assunto por parte da Sociedade. E esse nicho se mantém assim, incólume em seu atraso, ao longo do tempo, porque cumpre um determinado papel, na engrenagem social, de dar uma aparência de legitimidade (apego ao Justo) à odiosa opressão do Estado.

O Estado necessita parecer legítimo, mesmo não o sendo desde seu surgimento. Nasceu banhado em sangue, assim vive e, se desaparecer, assim desaparecerá.
   
Qualquer norma jurídica, assim como qualquer partitura musical, ou qualquer trecho em idioma a ser traduzido, nada é em si mesma. Passa a ser na medida em que a interpretamos. Então somos nós, ao interpretá-la, que somos Justos ou não, bons músicos ou não, bons tradutores ou não, aos nossos próprios olhos ou aos olhos dos outros. Não por outra razão o senso comum diz: tal juiz é justo, aquele outro não o é.

Entretanto mesmo quando estão legalistas, não largam os serventuários da Justiça o viés do Justo. Nessas ocasiões se contorcem em piruetas retóricas para dar uma aparência de legitimidade (apego ao Justo) naquilo que fazem. É assim que se configura a pseudo legitimidade do Estado, do qual esses serventuários são instrumentos.

Pois bem, muito embora não exista um Justo-em-si-mesmo, todos nós estamos construindo um Justo particular que emana de nossa individualidade e circunstância pessoal, na medida em que julgamos, seja lá o que seja que estejamos a julgar. Um juiz, por exemplo, dá vida a uma norma jurídica na medida de seu conhecimento, sua história pessoal, sua circunstância de vida, quando a interpreta. Alguém que interprete uma partitura musical - um músico, faz o mesmo. Um tradutor que interprete um trecho de um idioma, também.

Antes da interpretação, nada; depois da interpretação, tudo...

Não pode ser diferente, não há como ser diferente. Uma norma jurídica não é Justa pelo fato de ser uma norma jurídica. Ela pode ser Justa na opinião pessoal do Juiz que a interpreta, ou na opinião pessoal de alguns outros que leram sua interpretação. Mas nunca será Justa-em-si-mesma.

Não por outra razão o Estado desestimula o ensino e o estudo da Filosofia e Retórica. Não a Retórica que se confunde com Oratória, mas a Retórica que estuda os meios por intermédio dos quais se manipula, constrange, seduz as pessoas.

Então convenhamos: usar a norma jurídica como escudo para defender interesses pessoais ou corporativos, alegando respeito à legalidade é, realmente, muita hipocrisia.

Ou desfaçatez... 

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

POLIFONIA INTERPRETATIVA



* Honório de Medeiros


Nada tão instigante quanto pegar um fato qualquer e analisar como cada veículo de comunicação o trata. Cada um o trata de maneira diferente. As diferenças são de forma e conteúdo, e deixam entrever, nas entrelinhas, as raízes ocultas das diferentes motivações existentes no seu bojo. Um mesmo fato, várias interpretações: as ingênuas, as manipuladas, as tecnicamente absurdas, as cansadas, as óbvias, cada uma delas um indicativo acerca de quem a fez, uma assinatura, um estilo, uma personalização de quem por ela é responsável. No mundo do Direito, a interpretação da norma jurídica também ocorre assim. Na música... Estaria Nietzche certo a afirmar que "não existem fatos, somente interpretações"? E quanto à matemática? Popper deu a melhor resposta à tentativa de relativizar o conhecimento com fulcro nessa polifonia interpretativa. Pare ele, o conhecimento se firma enquanto resiste à crítica. O que nos leva a supor que em todos os instantes somos demiurgos dessa realidade que é cambiante, permanentemente enigmática, e eternamente em construção, o resultado do entrechoque de ações que resultaram de interpretações, tudo em escala colossal.