sábado, 2 de abril de 2011

A PEQUENINA FLOR LILÁS


Honório de Medeiros
Havia uma única pequenina flor lilás no nicho de cimento no qual algumas plantas resistiam bravamente. Era um restaurante em um terraço, ao cair da noite cálida de Natal. Bárbara desceu da cadeira onde a tínhamos colocado e enquanto se preparava para se aventurar pelos seus arredores pediu nossa aprovação nos olhando com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco. Em passos trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequenina flor solitária e, em seguida, estendeu até ela sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão como seria em sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, segurou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida. Arrancou a flor na primeira tentativa. Manteve a flor na mão e a contemplou durante algum tempo, resolvendo o que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim, e, atenta ao meu olhar, veio em minha direção bamboleando e estendendo a flor numa oferta silenciosa enquanto meu coração se apertava lentamente.

Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre eles, um operador de máquina de plastificação de documentos. Procurei-o e lhe expus minha história e meu projeto: aprisioná-la entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos – a flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre. Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.

De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando então suspendi minha filha e a cobri de beijos. Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo e os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, a face de minha esposa, a imagem de Bárbara – vão desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhê-la e, em seguida, entregá-la a mim? Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco pode ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta de uma flor é um gesto através do qual se externa um afeto?

Claro que dirão que estou imaginando coisas. Nada teria havido ali de especial. Seria tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de idéias. Ela viu alguém fazendo isso e se lembrou de fazer o mesmo. Ora, meu Deus! Essas pessoas não crêem. Vêem tudo cinza. Acham que um arco-íris é tão-só gotículas de água atravessadas por um raio de sol. Percebem o mundo apenas através da lógica. São os homens-ocos, dos quais fala o poeta T. S. Elliot em “A Terra Desolada”. Por causa dessas mesmas pessoas eu mesmo poderia não acreditar, hoje, em fadas, mas sei que elas existem, existem sim, sou capaz de jurar, basta, para isso, minha pequenina flor lilás.

quinta-feira, 31 de março de 2011

QUAL O SEGREDO DA MAGIA DE "CASABLANCA"?


Honório de Medeiros

Aqueles que o assistiram e se apaixonaram não perdem a oportunidade de fazê-lo novamente quando algum desses canais de televisão o programa para a madrugada.

Aliás, nenhum outro horário é tão propício.

Qual o segredo de "Casablanca"?

Talvez seja o de nos falar daquele amor imaginário, arrebatador, impossível, que cada um de nós gostaria de viver pelo menos uma vez na vida.

Um amor como o do filme, no qual os personagens são levados a um heroísmo comovente, que ao mesmo tempo os redime e os separa.

Um amor que, se vivido, nos distanciaria do comum, do trivial, da nossa realidade imediata, e nos transportaria para uma dimensão onde seríamos aquilo que projetamos ser, e, não, essa amarga construção do dia-a-dia, o que de fato somos.

terça-feira, 29 de março de 2011

CRISE DO ESTADO OU CRISE NO ESTADO?


Honório de Medeiros

Há muito tempo falamos em crise do Estado no Brasil. Desde a República Velha, pelo menos. Poderíamos indagar: crise do Estado Burguês/Liberal brasileiro? Como a queda do muro de Berlim ainda está próxima os paradigmas marxistas, não os leninistas poderiam ser os instrumentos teóricos através dos quais analisaríamos esta atual circunstância histórica . Alguns marxistas, por exemplo, que ainda posam de leninistas, asseguram ser a América Latina o elo fraco do sistema internacional capitalista no momento, haja vista a presença fantasmagórica do populismo, conseqüência imediatas das contradições de classe tornadas agudas pelo neoliberalismo. Como ainda é avassaladora a presença do marxismo enquanto aparato intelectual para a descrição da realidade social, parece não haver mais espaço, no mundo acadêmico, para o pensamento de Freud e uma possível psicanálise com fulcro em uma “teoria do vínculo social”, nem para uma “teoria do campo social” de cunho darwinista que o substitua ou complemente.



Do ponto de vista exclusivamente jurídico a carência é ainda maior, visto não ser mais possível aceitar a herança jusnaturalista, fundamentada em uma teoria das fontes do Direito de conteúdo exclusivamente metafísico, enquanto base para uma análise sócio-política do fenômeno estatal. Também não é possível aceitar o formalismo kelseniano por que associado ao positivismo exacerbado e estreito típico dos modelos lógicos aos quais Goëdel demonstrou não poderem obter coerência a partir de si mesmo. Há algo tão metafísico quanto a norma hipotética fundamental? Carece o positivismo, evidentemente, de um conteúdo explicativo próprio das grandes sínteses ontológicas. Seria Marx ainda hegemônico, mesmo que por exclusão?

Marx nos disse, através dos seus intérpretes, que o Estado nada mais seria que um instrumento de opressão de uma classe sobre outra. Uma superestrutura ideológica resultante das relações de produção específicas de uma circunstância histórica. Poderíamos dizer, então, que essa crise pelo qual supostamente passa o Estado Brasileiro seria típica do acirramento de uma luta de classes, das contradições inerentes ao sistema capitalista, algo tão antigo, no Brasil, quanto sua descoberta por Pedro Álvares Cabral?



Mas caiu o Muro de Berlim e com ele a hegemonia do pensamento marxista como paradigma para as ciências sociais. É bem possível que as suposições quanto a essa queda tenham sido grandes demais. Talvez muito de seu pensamento efetivamente não tenha perdido a consistência teórico/empírica. Penso, principalmente, no Marx sociólogo para distanciá-lo do Marx filósofo. Penso em Friedrich Engels. Penso em paradigmas epistemológico-sociológicos e percebo a presença de Marx e de todo um conjunto de alavancas intelectuais que sobreviveram à queda do Muro de Berlim e ao seu ostracismo intelectual. E muito embora Marx não tenha escrito uma teoria do Estado pronta e acabada, encontro um interessante paralelo entre sua concepção de Estado enquanto resultante da luta de classes, divisão social do trabalho e relações de produção, nessa ordem, e uma possível teoria do Estado a partir das relações de domínio em uma perspectiva darwiniana. Muito embora seja inaceitável, hoje, até mesmo do ponto de vista lógico, o primado de a infra-estrutura material originar a superestrutura ideológica -algo que em lógica é denominado “falácia naturalista” e já identificada por Henri Poincaré - o “insight” básico do Estado enquanto cristalização de forças em conflito, pelo Poder, em última instância é compatível com os paradigmas de um certo tipo de darwinismo. Ou seja, para apreendermos uma noção de Estado que não esteja contaminada pela “antropoformização” – a tendência de considerá-lo agente e não ambiente ou espaço (“topos”) - é plenamente satisfatório recorrer ao marxismo e sua noção, dentre outras, de “aparelho” (na linguagem de Althusser e Poulantzas). Teremos, então que entender aparelho como elemento de um conjunto sistemático desse tipo de estrutura burocrática instaurada por relações de poder que constituem o Estado. Portanto o aparelho judiciário, o governamental, o legislativo, e assim por diante, nada mais são que aparelhos do Estado, ou, em última instância, cristalizações de relações de domínio.



Penso agora em darwinismo por que de todas as grandes sínteses fornecedoras de paradigmas para uma ciência social ele foi o único que sobreviveu à virada do século. Penso em darwinismo por que é impossível compreender qualquer epifenômeno social atual fora de uma perspectiva jusnaturalista, positivista, ou funcionalista sem que para ele recorramos em busca de referencias teóricas que resistam, pelo seu próprio conteúdo, às críticas implacáveis do mundo acadêmico. E penso em darwinismo por que algumas de suas contribuições, aquelas que não estão sendo deturpadas e saturando de leviandade e misticismo a discussão acadêmica – em um interessante paralelo com a física quântica - podem ser bastante úteis na tentativa de explicar nosso mundo social.



Pois bem, para certo darwinismo a idéia de Estado é que este seja uma resposta, uma estratégia adaptativa de sobrevivência para segmentos da espécie humana, ou para coalizão de genes, engendrada a partir das relações de domínio existentes em uma circunstância histórica. Que o Direito seja resultante dessas relações de domínio até mesmo o cauteloso Bobbio assevera. Assim como Pierre Bourdieu. Nicos Poulantzas. Trasímaco da Calcedônia, para começo de assunto. O marxismo diz o mesmo com outra linguagem. Que o Estado tenha surgido de atos de força, ou seja, do Poder, há uma tradição nesse sentido que começa com Platão, passa por Renan, Nietsche, Kautsky, os marxistas, de uma forma geral, Popper, e chega aos nossos dias. Devo observar que esse tipo de conjectura, ou melhor, de teoria do conhecimento, não nos permite construir visões de como será o futuro. Embora possamos encontrar leis gerais explicativas, sempre esbarramos no óbvio: pode haver leis ainda mais gerais, ainda não descobertas, que englobem a anterior e apontem para rumos desconhecidos. Dizendo de forma simples: é impossível a predição. Mesmo que o sol nasça todo dia, talvez não nasça amanhã. É apenas provável que nasça amanhã. Ou melhor: há uma propensão quanto ao seu nascimento amanhã.



Mas essa teoria permite que expliquemos o passado e nossa explicação resista às críticas. Então talvez possamos compreender como surge o Estado, e com qual papel, a partir de um dos corolários da teoria da evolução. A evolução – não no sentido moral – vai do mais simples para o mais complexo. Se visualizarmos a árvore do conhecimento compreenderemos essa afirmação. Imaginemos, por exemplo, a evolução da matemática, desde a aritmética ao cálculo de tensores hiperespaciais. Ou da música. Ou do Direito. Ou da norma jurídica, mais especificamente: concreta e pessoal por que casuísta, antes da formação do Estado, para geral e abstrata, hoje, típica de uma necessidade política complexa. Ou as normas jurídicas das sociedades mecânicas para as normas jurídicas das sociedades orgânicas, como diz Durkheim. Esse corolário, aliado à contribuição de Herbert Spencer acerca da diferenciação e especialização das espécies da qual Popper fez uso em sua teoria do conhecimento é um rico manancial para analisarmos se realmente há uma crise do Estado ou se essa crise é aparentemente fabricada.



Uma conseqüência óbvia da utilização desses paradigmas é identificar estratégias adaptativas: Marx, Darwin e até mesmo a moderna Sociologia, com Pierre Boudieu e a categoria filosófica do Poder Simbólico ajudam a compreender a possibilidade de que a idéia de “Crise do Estado” seja uma manipulação, algo próprio do jogo do Poder Político. Eles ajudam a compreender a “função de ocultação” que um conceito como o de Estado veiculado pela mídia possui. Não precisamos ir muito longe. Basta nos lembrarmos dos EUA fabricando a crise do Iraque para ocupar, estrategicamente, suas reservas de petróleo. Basta nos lembrarmos dos EUA fabricando a crise com o Irã para continuar detendo a hegemonia nuclear na Terra. O modelo é simples: cria-se um inimigo estratégico potencial e abstrato (hoje é o terrorismo, ontem foi o comunismo, antes de ontem foi a heresia, para a Inquisição); cria-se uma crise; mobiliza-se e manipula-se a sociedade através da mídia ; e arranca-se das mesmas vítimas de sempre o ônus da luta (tributos, vidas).



Do ponto de vista concreto a lógica do Poder Político fabrica consensos e gera crises. O Consenso de Washington, um conjunto de propostas teóricas acerca de como deve ser a gestão da economia mundial legitima e impõe uma crise ao Brasil que não é do Estado, vez que os aparelhos estatais continuam funcionando normalmente. Uma das faces da crise imposta ao Brasil é a determinação do superávit primário como meta “de Estado”, não de Governo. E essa determinação nos é imposta sob a ameaça da fuga do capital estrangeiro que está a financiar nossa execução orçamentária. Dinheiro para o superávit financeiro é escassez para infra-estrutura. Para a saúde. Para a educação. Para a segurança pública. Uma crise imposta ao Brasil foi aquela referente à necessidade de despejar dinheiro público no saneamento de bancos privados em “débâcle” financeira por má gestão, no governo Fernando Henrique. A mídia – o chamado “clero secular” para lembrar a expressão de Isaiah Berlin – trabalhou muito e bem, financiada com nosso dinheiro, para que ficássemos apavorados com a possibilidade de todo nosso sistema financeiro ruir por terra e, qual um castelo de cartas, em decorrência, a razoável vida que nós, da classe média, levávamos. O “clero secular”, por ignorância ou má-fé, exerce um papel fundamental nesse processo de gerar crises: não por outra razão setores avançados das elites acreditam piamente que haja um déficit previdenciário. E a idéia de acabar com esse déficit é “vendida” como uma política de Estado. Idéia tão manipulável politicamente que nosso Presidente, no início de 2007, dela abdicou em busca de dividendos eleitorais. Não sabe o “clero secular” que o Governo coloca sob essa denominação não apenas o pagamento das aposentadorias, mas, também, programas de inclusão social efetivados através do colossal repasse de dinheiro arrancado da classe média para, dentre outros, a aposentadoria rural. Não sabe ou não quer saber. Entendida dessa forma não há previdência pública que funcione. Lembro, aqui, que a criação da contribuição previdenciária do aposentado contou com a participação decisiva do Supremo Tribunal Federal flexibilizando o conceito de “direito adquirido”. Lembro, também, que dias antes da votação no Supremo Tribunal Federal um ainda não ministro expedira um parecer condenando veementemente essa flexibilização, o que não o impediu de, uma vez ministro, mudar rapidamente de idéia. Práticas típicas de segmentos da elite assegurando a perpetuação do “status quo”.



A lógica do poder político pode ser tudo, menos burra. Pensemos acerca da atual greve dos bancários (2006). Pensemos naquilo que os bancários reivindicam. Percebamos o que os banqueiros oferecem. Vejamos o lucro estratosférico dos banqueiros. Entendamos por que os banqueiros não podem ceder: é a teoria do dominó, cedendo um, não há quem segure os outros que estão na fila lutando por melhoria salarial. Não ceder, ou ceder de forma ínfima, é uma barreira de contenção. Outra conseqüência do “Consenso de Wanshington” é a expropriação lenta, contínua e determinada da força de trabalho do servidor público, que é a parcela mais representativa da classe média: há uma expropriação direta, através da cobrança do imposto de renda, e há várias indiretas, dentre elas os cortes de vantagens. E há uma terceira expropriação: o aumento do custo de vida, que certamente não afeta a parcela da elite que repassa o ônus para os menos favorecidos, e a inflação. Esse achatamento remuneratório, digamos assim, engendra corrupção e desídia. Em uma escala muito mais ampla e perigosa, amordaça a classe média por que a amedronta com o fantasma da impossibilidade de manutenção do seu estilo de vida. É incalculável a dor de um pai típico da classe média que é obrigado a tirar o filho de um colégio particular para colocá-lo em uma escola pública. Percebamos a distorção.



Percebamos, também, a distorção que é o chamado contingenciamento orçamentário. Contigencia-se o orçamento para manipulá-lo. A possibilidade do contingenciamento torna inútil toda a discussão política que origina o orçamento. O que é contingenciado? O dinheiro para as políticas públicas por que estas são lentas e longas, atravessam governos. E o Poder Inconseqüente quer o agora, o imediato. Quer obras, às vezes não tão necessárias, mas para as quais há a demanda de setores específicos e poderosos da elite. Mas não quer um programa para a erradicação da mortalidade infantil por que implica em um longo e lento período de execução. Não quer um investimento consistente na educação por que o retorno não é eleitorável em curto prazo.



Observemos que tudo quanto foi mencionado é decisão política: manipulação do conceito de Estado, criação de inimigos fictícios do Estado, flexibilização de uma cláusula pétrea da Constituição Federal, criação da contribuição previdenciária, necessidade de pagar o superávit fiscal, contingenciamento orçamentário. Decisão de quem detém o Poder Político. Decisão de quem não assume o ônus da decisão e o transfere para essa entidade hipostasiada, abstrata, fictícia, chamada Estado. Decisão de Governo. Por que de concreto há, como nos mostram a ciência, relações de domínio, relações de Poder.



Então é preciso olhar com um olhar crítico essa idéia de “Crise do Estado”. É preciso perceber a função de ocultamento que o termo Estado possui conforme lidamos com ele hoje. Dizemos “Política de Estado” quando deveríamos dizer “Política de Governo”. Por que não podemos nem devemos aceitar que os detentores do Poder usem os aparelhos do Estado como escudo abstrato para ocultar sua manipulação. “Não sou eu, é a lei.” “Cumpro meu dever”. “Obedeço a ordens”. Essas expressões são tão mais perigosas por que isentam seus protagonistas da responsabilidade política que devem ter em relação ao que fazem com seus semelhantes. “Política de ou do Estado”: essa antropoformização dos aparelhos estatais torna impessoais as relações entre dominantes e dominados e permite ampliar e sofisticar os mecanismos de dominação. Óbvio que a grande maioria daqueles que exerce parcelas residuais de Poder não percebe o caráter de “correia-de-transmissão” que envolvem seus atos. Não percebem e virão a ser punidos mais na frente, por que são peças descartáveis, utilizáveis apenas enquanto aperfeiçoam o processo de expropriação que a configuração de poder existente instaura. E mais que em qualquer outro ambiente essa realidade se faz presente no campo jurídico.



É preciso também olhar criticamente as manobras diversionistas decorrentes dessa alienante manipulação: é muito comum encontrarmos em ambientes acadêmicos propostas de “aperfeiçoamento do Estado”. Todas as vezes que escuto essas propostas me lembro que antes os governos imperialistas esmagavam resistências com espadas, lanças e escudos, como o fez Roma; hoje o esmagamento é feito com armas muito mais aperfeiçoadas, como fuzis com mira a laser. O Estado aperfeiçoado é o Estado Orewelliano.


Dessa forma, parece claro que devemos aperfeiçoar a Democracia. É no campo político que são tomadas as decisões que impulsionam os aparelhos do Estado. É preciso crítica, vigilância, participação. É preciso um combate constante, profundo, amplo e disseminado ao autoritarismo. É preciso ampliar até o limite do impossível a inserção dos excluídos no processo político. Caso contrário continuaremos pagando o preço da nossa alienação: confundirmos o aparente com o essencial; o contingente, com o estrutural; o circunstancial com o definitivo.


É preciso crítica, vigilância e participação principalmente por que a tomada, por setores da elite, dos aparelhos do Estado pode engendrar tentações autoritárias: em recente episódio ocorrido (2006) no Norte do País, integrantes da cúpula do Tribunal de Contas, Assembléia Legislativa, Ministério Público, Poder Judiciário e Poder Executivo – uma quadrilha de aparelhos do Estado – foi flagrada em crimes que causaram e causam comoção e indignação, tentações autoritárias e críticas à democracia. Entender assim, entretanto, é um viés equivocado. Ao contrário do que se supõe, somente nas democracias é possível expor publicamente um tumor dessa natureza.



Para que esse processo de crítica, vigilância e participação se tornem efetivo é preciso que nós nos mobilizemos e combatamos aquilo que mudou para pior: a qualidade dos nossos atores políticos. Estamos pagando o preço da nossa omissão. Somos condescendentes. Somos omissos. Somos ignorantes. Não introjetamos a lição que Péricles nos legou através da Oração aos Mortos de Maratona, no sentido de construirmos uma “Paidéia”, uma “Cultura” de Democracia real, concreta, não formal, abstrata. Uma Democracia de inclusão social. Políticas Públicas da Sociedade, não do Estado.



Precisamos combater a manipulação de uma realidade que insiste em saltar ante nossos olhos: o Brasil que vivemos não é aquele que os detentores do Poder nos apresentam. Basta sairmos daqui agora e irmos a postos de saúde, escolas públicas e delegacias de polícia para constatarmos o que essa afirmação quer dizer. As modificações no aparelhamento do Estado são decisões políticas. São essas que devem ser modificadas. O “corpus” político deve configurar o Estado que é sempre autoritário e o colocar a reboque da Sociedade para que a tradição de Democracia enquanto valor seja preservada. Não há crise do Estado; há crise no Estado.

SE ELEITO DEPUTADO, ASSASSINO CONFESSO TOMARIA POSSE

Pimenta Neves e Sandra Gomide


Blog de Augusto Nunes

"Faz mais de 10 anos que o jornalista Antonio Pimenta Neves matou a ex-namorada Sandra Gomide com uma bala nas costas e outra na cabeça. Horas depois do crime, contou tudo à polícia e se tornou réu confesso. Em 2006, foi condenado em primeira instância a 18 anos de prisão, reduzidos a 15 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Não cumpriu nenhum.

No momento, espera em liberdade o julgamento de um recurso encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. O caso está com o ministro Celso de Mello, que não sabe quando terá tempo de examiná-lo. Tecnicamente, Pimenta Neves não é culpado de nada: graças às alquimias da legislação e às acrobacias da jurisprudência, tornou-se inconstitucional tratar um matador assumido como assassino antes que a sentença transite em julgado.

O cidadão brasileiro Antonio Marcos Pimenta Neves poderia, se quisesse, ter disputado uma vaga na Câmara dos Deputados em 2010. Não lhe faltariam simpatizantes, sobretudo entre colegas de ofício. O público alvo seria alcançado sem muita despesa, já que a Justiça Eleitoral concentrou o público alvo de delinquentes candidatos em poucos lugares: agora, a população carcerária se vale de urnas instaladas nos presídios para cumprir o dever cívico do voto.

Com alguma lábia e um pouco de sorte, Pimenta Neves hoje estaria festejando, entre uma conversa no cafezinho da Câmara e uma reunião para tratar da reforma política, a vitória da turma do prontuário no STF ─ e os nítidos sinais de que a lei da ficha suja será pulverizada de vez até 2012. A inovação legal torna inelegível gente condenada em duas instâncias. Isso é inconstitucional, já avisaram alguns ministros. É preciso aguardar o julgamento doo último recurso na última instância.

Sandra Gomide agonizava de costas quando levou o tiro de misericórdia. Nunca mereceu uma lágrima do seu executor. Para pelo menos seis doutores do STF, detalhes do gênero são pieguices irrelevantes, coisa de leigos que nem imaginam as altitudes jurídicas alcançadas por uma toga. A lei só retroage em benefício do réu, declamariam em coro. O princípio da anterioridade é sagrado, alertariam aos berros ─ mais de 10 anos depois do assassinato. E todos fingiriam ignorar que o processo dorme numa gaveta do Supremo.

Nada como um caso exemplar para encerrar a conversa fiada: caso virasse deputado, Pimenta Neves continuaria servindo à nação com as bênção do STF e sob as asas da Constituição. Os pimentas neves que agem fantasiados de pais-da-pátria são cada vez mais numeros. Há algo de muito errado com um país que torna possível tamanha afronta à justiça."

domingo, 27 de março de 2011

O JUIZ QUE LIMPOU OS FICHAS-SUJAS

Ruth de Aquino (colunista de Época):

"O novo juiz do Supremo Tribunal, Luiz Fux, é faixa preta em jiu-jítsu. Carioca de 57 anos, foi surfista, tocou guitarra numa banda de rock, The Five Thunders (“Os cinco trovões”). Aluno brilhante de escolas públicas, Fux tornou-se, na semana passada, o ídolo dos fichas-sujas.

A decisão do juiz de adiar a Lei da Ficha Limpa para 2012 lavou o passado de políticos que há muito tempo violam o Artigo 14 da Constituição. Este sim deveria ser o artigo intocável. É o que prega a moralidade na vida pública.

Fux acredita que continua a ser o mesmo lutador da juventude. “Na minha época, os professores de jiu-jítsu davam o exemplo da retidão”, escreveu, em depoimento para a Uerj, onde se formou em Direito.
 
Em seu primeiro voto polêmico, Fux não pode ser criticado por desrespeitar a legislação. Baseou-se nela para desempatar os votos dos colegas.
 
A Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, com 1,6 milhão de assinaturas, foi aprovada no ano passado e sancionada pelo Congresso e por Lula. Tornava inelegíveis os políticos condenados por improbidade, corrupção, abuso de poder econômico, quebra de decoro.

Fux elogiou a lei, mas concluiu que ela não poderia valer para 2010, já que, pelo Artigo 16 da Constituição, mudanças em leis eleitorais precisam ser aprovadas até um ano antes do voto.
 
O palavreado no Supremo costuma ser rebuscado. “A Lei da Ficha Limpa, no meu modo de ver, é um dos mais belos espetáculos democráticos, posto que é uma lei de iniciativa com escopo de purificação no mundo político”, começou Fux, em sua média inicial com a torcida do povo brasileiro, que não aguenta mais tanta impunidade em campo.

E continuou: “Um dispositivo popular, ainda que oriundo da mais legítima vontade popular, não pode contrariar regras expressas no texto constitucional.”
 
Acontece, senhor juiz, que os fichas-sujas vêm contrariando regras expressas no texto constitucional muito tempo antes de a lei ser aprovada. Caso levássemos a Constituição à risca, dezenas de políticos não poderiam estar no Congresso nem disputar as eleições de 2010.
 
Um dado me convence de que validar a Ficha Limpa já nas últimas eleições não equivale a rasgar o texto da Constituição: o voto de cinco juízes do Supremo.

Foram favoráveis à aplicação imediata da lei: Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Ricardo Lewandowski. Todos estudaram Direito, chegaram ao STF e fizeram uma opção.
 
Entre o Artigo 16, que fala da “anualidade”, e o Artigo 14, que fala da “moralidade pública”, esses cinco juízes ficaram com o último."