sábado, 9 de junho de 2012

EM UM CERTO TEMPO PASSADO



Houve um tempo no qual comíamos apenas abacates crus no café-da-manhã, PFs no almoço, líamos e discutíamos Marx à tarde, e, quando vinha a noite, bebíamos cachaça e declamávamos Augusto dos Anjos para as meninas de São Carlos, em São Paulo, antes de as convidar para dançar forró, que estava começando a fazer sucesso, no "Porão" da Universidade Federal de São Carlos. Aqui, com o grande "Gentil", o "Alma minha Gentil que te partiste, tão cedo desta vida descontente...". Tirando a foto, meu irmão Gilson Ricardo, com quem eu passava as férias.

"O PROBLEMA NÃO ESTÁ NA INSTITUIÇÃO, E SIM NAS PESSOAS"

Do www.blogdafeira.com.br


Por Danillo Ferreira

Existe uma construção no imaginário de alguns policiais que pretende simplesmente acusar as pessoas como culpadas por más práticas nas organizações policiais. Para eles, “a instituição é perfeita, as pessoas é que a distorcem”. Trata-se de um argumento curioso, que possui consequências ainda mais inusitadas.

Se o problema está nas pessoas, não há motivo para diferirmos, por exemplo, uma ditadura de uma democracia, pois qualquer um dos regimes pode ser igualmente bom, se temos pessoas boas. Como meus colegas defendem que o Brasil, por sua cultura, é um exemplo de país com pessoas “más”, parece que a Suécia, ou o Japão, teria sucesso ao implementar uma Ditadura.

Este raciocínio, que pretende conservar estruturas institucionais existentes, terceirizando o problema para “as pessoas”, acaba mesmo por extinguir a necessidade de quaisquer instituições. Ora, se todo o nosso problema é moral (poucas pessoas “boas” e muitas pessoas “más”), não há necessidade de instituição alguma. É só aguardar até que tenhamos mais “bons” do que “maus” no mundo para que tudo dê certo.

Poucos teriam esta ingenuidade quase infantil, embora defendam o argumento apontado no início deste texto.

É preciso observar que instituições são feitas para resolver problemas, devendo se ajustar sempre que os problemas mudam ou se tornam mais complexos. Se deixa de resolver os problemas, deixa de fazer sentido enquanto instituição, na medida da quantidade de problemas que deixa de sanar. 

É óbvio que a cultura local deve ser considerada nos mecanismos institucionais de resolução de problemas. E aí deve-se atentar para a formação dos profissionais e para a estrutura correcional, que também são problemas que se referem ao modelo de instituição adequado. Ou a formação policial não serve para modificar, em certo grau, os indivíduos? Orientá-los para determinados tipos de prática, em detrimento de outras? Estamos condenados à “educação que vem de berço”?

Existem, sim, elementos institucionais que, independentemente de quem os esteja operando, são ineficientes, ineficazes. Alguns gargalos são insuperáveis pela maior boa vontade que exista, algumas perversões permanecerão existindo enquanto determinada arquitetura institucional prevalecer.

Defender a conservação de uma instituição dizendo que o problema são as pessoas é infantil e até ridículo. Observemos os resultados: sua instituição resolve os problemas que se dispõe a resolver? Se sim, ela é perfeita. Se não, precisa enfrentar o desafio da mudança.

Autor: Danillo Ferreira - Tenente da Polícia Militar da Bahia, associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e graduando em Filosofia pela UEFS-BA. | Contato: abordagempolicial@gmail.com

DUAS COISAS ME FAZEM SEGUIR EM FRENTE





Por Bruna Negreiros

E assim, naquele momento, mais uma vez ela me dizia o quanto acreditava em Deus, afirmando que confiava e sabia que tudo daria certo. Repetia.

 
- Há duas coisas que me fazem seguir em frente, a fé e a esperança.
 
E eu me surpreendia, aquilo parecia tão absurdo para mim. Custava-me acreditar e aceitar que alguém que passava por situação tão dolorosa poderia ainda assim ter fé e crer na existência de um ser bom, um ser supremo que cuidava de todos. Aquilo me irritava, e como irritava! Logo eu que costumava respeitar a crença de todos, tempos depois acabara me tornando alguém que sentia um tremendo desconforto ao ouvir ela dizer. E ela repetia.
 
- Confio em Deus e em Jesus Cristo e somente eles podem me ajudar nesse momento. O que seria de mim sem a fé?
 
Aquilo continuava a me irritar, ficava em silêncio, mas subjacente ao que demonstrava na superfície, o meu corpo parecia até ter milhares de facas pontudas e cortantes por dentro. E o que eu queria de verdade era gritar.
 
- Escuta, presta bem atenção! Não há provas, não existem fatos que comprovem. Sabe esse Deus que você tanto fala? Ele não existe! Nós o criamos. Foram humanóides há milhares de anos que procuraram uma explicação para a vida, para as coisas, e sem conhecimento científico justificaram tudo através de um ser divino!
 
Mas infelizmente eu sabia, bem no fundo, e custava-me muito dizer, mas eu tinha conhecimento que aquela fé e esperança que ela tanto falava, eram o alicerce que ainda a matinha de pé. E por mais que eu quisesse, mesmo no ápice do desespero e da raiva, eu sabia que não poderia dizê-lo. Afinal, aquilo era o que a motivava e fazia com que mesmo com tanto sofrimento, um sorriso tímido e sincero ainda surgisse no canto de sua boca.
 
Algumas vezes eu tentava realizar uma espécie de brincadeira, tentando um tipo de regressão, voltando a tempos que hoje me parecem tão distantes. Transportava-me aos meus 11, 12 anos de idade, aos tempos que os problemas eram poucos, as brincadeiras eram muitas e eu ainda acreditava em Deus. Talvez eu nem acreditasse mesmo, penso que só seguia a ideologia hegemônica da família, uma criança de 11 anos de idade não pode questionar muita coisa. Nessa pequena viagem de volta ao passado, tentava lembrar o que eu pensava sobre o assunto na época, e infelizmente não recordo de muita coisa. Lembro-me vagamente do primeiro contato na escola com a teoria do big bang. Confesso quão estática fiquei ao tomar conhecimento desta teoria. Veio-me a epifania, tudo parecia ter sentido, e por muito tempo me considerei diferente de todas as outras crianças na sala de aula, lembro-me que por muito tempo a teoria criacionista e a do big bang coexistiram dentro daquela pouco desenvolvida mente infantil.

terça-feira, 5 de junho de 2012

XIV FÓRUM DO CANGAÇO EM MOSSORÓ

XIV Fórum do Cangaço em Mossoró



Programação

Dia 12/06/12 – Terça-feira -19h15min
Local: Universidade Potiguar
Conferência de abertura
Tema: O código do sertão: violência e
resolução de conflitos
Conferencista: Prof. Francisco Linhares Fonteles Neto – Fortaleza/Ce
Coordenação: Paulo Medeiros Gastão
21:00h - Lançamento de livro:
Obra: A outra face do cangaço: vida e morte de um praça.
Editora. Edições Bagaço
Autor. Antônio Vilela de Sousa

Antônio Vilela presente ao XVI Fórum do Cangaço
Dia 13/06/12 – Quarta-feira - 08:00h
Assembléia Geral da SBEC
19h15min - Mesa-redonda
Tema: Violência contra a mulher no tempo do cangaço
Debatedoras
Juliana Pereira Ischiara - Quixadá/CE
Susana Goretti Lima Leite – Mossoró/RN
Moderadora
Rosimeiry Florêncio de Queiróz Rodrigues


Paulo Gastão e Juliana Ischiara, presentes ao XIV Fórum do Cangaço

Dia 14/06/12 – Quinta-feira -19h30min
Posse da nova diretoria
20h00min - Mesa Redonda
Tema: Narrativas sobre o cangaço na imprensa
Debatedores
Anildomá Willans de Souza – Serra Talhada/PE
Wescley Rodrigues Dutra – Cajazeiras/PB
Moderador
Marcilio Lima Falcão

ELIAS CANETTI, ENSAÍSTA


Por Franklin Jorge

Excepcionalmente dotado das artes do feiticeiro, previu Elias Canetti que o ar é o nosso último bem comum. Disse-o num discurso pela passagem do quinquagésimo aniversário de Hermann Broch, em Viena, 1936. Ao refletir sobre a data, viu Canetti um belo sentido na homenagem que se presta a um homem pelo seu quinquagésimo ano de vida e, desde então, percebeu que o público e o privado não admitem distinção; interpenetram-se hoje e de uma forma jamais vista no passado.

Consumido por uma compulsiva fome de leitura, forjou Canetti, como escritor, uma individualidade complexa e poderosamente vital. Tudo o que há lido, desde que aprendeu a ler, parece estar sempre ao seu dispor. Um leitor, enfim, alerta e hipercrítico. Descobriu – ou inventou – os seus precursores.

Ensaísta emérito, por índole, temperamento e cultura, escreveu os ensaios de Consciência da palavra, dos seus livros mais pessoais. Contém e resume todo um credo humanista ávido de vida. Escritor enciclopédico, sempre reiterando que nada surge sem grandes modelos, parece dizer-nos também que o ensaio agrada aos espíritos analíticos e discriminadores.

Dentre as suas obsessões, a busca de Kafka, um de seus precursores -, leitmotiv recorrente de suas inquisições metafísicas -, Franz Kafka é uma ideia fixa para o escritor. Canetti amplia a nossa consciência das coisas e da palavra. Como um arguto e inquieto observador minucioso, aplica-se a Canetti o mesmo axioma de Otto Maria Carpeaux para Benedito Croce. Foi um homem que pensou implacavelmente sem pensar em consequências. Sim, repetindo o próprio Canetti, leitor multifacético de Schopenhauer, rarefeito é o número de cabeças que pensam. Muitos escrevem sem medir as palavras. Leviana e epidermicamente, expedem palavras sem pensamento e sem noção.

Trata-se, obviamente, de um escritor para escritores; de um escritor que é um poço inesgotável de surpresas e novidades, adverte-nos o diabo da inveja. O homem de Ruschuk, Bulgária, é desses escritores que pacientemente deglutem o conhecimento, a informação, a herança dos séculos, devolvendo-os aos leitores em parágrafos que contém a memória universal.

Escritor de uma estirpe rara, tece Canetti a sua escrita com clareza e densidade, com razão e inteligência, podendo assim louvar seus precursores. Gogol, Stendhal, Thomas Mann, Karl Kraus, Kafka, Dostoievski etc.

Mestre da sátira, escreveu um único romance que não poucos afirmam ser o contraponto tardio de Don Quixote. Auto-de-fé foi o único de oito romances planejados que escreveu e que constitui um tour de force, numa prosa tão maior do que a de Joyce; um tour de force que se lê com prazer e assombro. Uma obra visceral, sob alguns aspectos, até, inumana. Ou sobre-humana, outros dirão. Canetti nunca foi desses escritores ricos, barulhentos, que querem ser levados a serio.

De suas obras, Massa e poder, a desconcertante e minuciosa trilogia biográfica constituída por A língua absolvida, O jogo dos olhos e Uma luz em meu ouvido; e, sobretudo, o romance Auto-de-fé, avultam, em grandeza metafísica e perspicácia, entre as criações magnas de Canetti. Diz-nos, através dessa obra progressiva – canettiana -, que a prática faz o mestre, tornando-nos merecedores, portanto, de uma paga justa.

Mario Vargas Llosa viu Auto-de-fé como um pesadelo realista. De fato, parece ser um dos maiores horrores da literatura, algo da mesma natureza demoníaca de Vathek, o califa ímpio. Contém o desejo do autor de escrever um texto rigoroso e desapiedado; um texto que não podia ser agradável ou complacente. Para muitos, uma das obras de ficção mais ambiciosas da narrativa moderna; para outros, a obra de um intelecto desmedido que não quer ser feliz, quer ser sábio. Um romance cômico inexcedível que só muito raramente provoca o riso do leitor. Assim, Auto-de-fé.

Canetti considera a leitura uma carícia. E, o escritor, alguém que nada obtém por herança, sem mérito nem esforço. Jamais será um pobre de espírito quem pensa assim! Alguém que engordou de inércia. Sobretudo preservou Canetti a coragem de manter-se sozinho. De não ser de preço comum no mercado. Desde cedo soube o que queria ser e quis sê-lo sem tardança. Porem deu tempo ao tempo e fez milhares e milhares de anotações que recheiam seus arquivos. Os arquivos de um escritor compulsivo, insuportável em sua minuciosidade. Ninguém era capaz de escrever com tanta raiva, como escrevia às vezes Canetti.

Os ensaios desse autor constituem uma biblioteca de humanidades e convergem para um fim, seu trabalho. Sua escritura – por sua extensão e profundidade -, dir-se-ia quase infinita, obra de um fazedor de bruxarias. De um ilusionista da literatura. Uma obra aparentemente sobre-humana. Trabalho que resultou, concretamente, num espólio literário extraordinário.

Canetti escreveu milhares de fragmentos que, organizados, procriarão dezenas de novos livros, de livros inéditos, desconcertantes, justificando a sua natureza de obra progressiva. O ensaio, como declarou, foi o meio pelo qual se manifestou o seu talento. Sua energia verbal, encantatória, persuasiva.

Engrandeceu Elias Canetti a arte do ensaio. Acrescentou-lhe o seu nome desmedido.

.Fragmento de O Escrivão de Chatham, v.2 -2 [inédito]

domingo, 3 de junho de 2012

A CASA-GRANDE DA FAMÍLIA DIÓGENES, CONTINUAÇÃO


Pereiro, Ceará: mítica, misteriosa...



Casa-Grande da Família Diógenes, do final do século XVIII, com trinta e oito compartimentos, construída por escravos, palco de muitas histórias e estórias...






Eis que na parede da Casa-Grande encontro a fotografia de uma ancestral comum. O Coronel José Fernandes de Queirós e Sá foi o pai do construtor da Casa Grande da Fazenda João Gomes em Marcelino Vieira, Rio Grande do Norte, e meu tetravô pelo lado materno.



As impressionantes janelas da Casa-Grande, quase do tamanho da cozinheira, a quem pedi que ficasse onde está, para estabelecer a comparação.



Muito mais acerca da Casa-Grande da Família Diógenes em www.honoriodemedeiros.blogspot.com.br, ou, especificamente:
1) A CASA GRANDE DA FAMÍLIA DIÓGENES EM PEREIRO, NO CEARÁ:  http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2009/12/casa-grande-da-familia-diogenes-em.html

A FORMAÇÃO DA MENTALIDADE SUBMISSA


Vicente Romano

befelgueiras.blogs.sapo.pt


Por Vicente Romano [*]  


A manipulação

Além de insígnia militar romana e de pequena estola ornamental dos sacerdotes, o manípulo, era também o punhado de forragem que se punha diante do burro, de forma a que o não pudesse alcançar, para que, ao persegui-lo, o animal carregasse ou puxasse a carga que outrem lhe destinara.

 

Segundo os dicionários, manipular significa "operar com as mãos, trabalhar demasiado alguma coisa, manuseá-la, manejar as coisas a seu modo ou intrometer-se nas coisas alheias" e, por fim, "intervir com meios hábeis ou, por vezes, astuciosos, na política, na sociedade, no mercado, etc., com frequência para servir interesses próprios ou de terceiros".

 

Desta forma, etimologicamente, manipulação acaba por ser uma intervenção consciente num dado material com um fim determinado. Neste sentido, diz-se que o oleiro manipula a argila ou que o realizador de cinema ou de televisão manipula as imagens filmadas. Aqui, vamos referir-nos à manipulação dos conteúdos de consciência, das mensagens dos meios de comunicação no seu sentido mais lato. Trata-se de uma intervenção com consequências sociais e, portanto, de um acto político.

 

É certo que toda a utilização dos media pressupõe sempre uma manipulação. Qualquer processo de produção comunicacional, desde a selecção do meio, à gravação, à mistura e montagem, à realização e distribuição é uma intervenção, uma manipulação do material existente. Aquilo que importa, como assinalava Enzensberger em 1969, após os acontecimentos do "Maio" francês e alemão do ano anterior, não é que os meios e as mensagens da indústria da consciência sejam manipulados ou não, mas sim quem os manipula, em proveito de quem e ao serviço de que interesses.

 

Neste contexto da submissão das consciências e da formação da opinião, vamos entender por manipulação a orientação da comunicação por uma minoria, com o objectivo da dominação de todos os outros. O primeiro passo para sermos donos das nossas vidas e do nosso futuro é o representado pela identificação dos entraves que, interessadamente, outros nos colocam no caminho para levarem a água ao seu moinho. Por isso convém ter claro o conceito de manipulação e os seus objectivos antes de passarmos à descrição das técnicas utilizadas por essas minorias para conseguirem atingir os seus objectivos.

 

A manipulação espiritual, como comunicação orientada para o domínio ideológico, visa adaptar, na medida em que lhe for possível, ao sistema social vigente, a consciência e as actividades, incluídas as que se processam no tempo livre, da maioria da população contra os seus próprios interesses e, dessa forma, subordiná-los aos interesses minoritários que a promovem. As maiorias devem submeter a sua imagem do mundo, a sua compreensão das coisas, os seus gostos, em suma, o seu modo de vida, aos interesses das minorias. A manipulação significa a deformação espiritual do povo, significa privá-lo das suas faculdades e actividades criadoras. Através dela, desgasta-se sistematicamente a subjectividade do indivíduos, isto é, a sua personalidade. Manipulação significa uniformização do espírito, a desgraduação de todo o ser humano à condição de objecto ou de um número que se vende por "xis" ao milhão, no caso dos telespectadores das audiências televisivas, por exemplo. O receptor e o consumidor das mensagens e produtos desta indústria da consciência e do entretenimento não participa na planificação, na direcção, nas decisões nem na gestão desta produção. Não se trata, como pretendia McLuhan, de que o meio seja a mensagem, mas sim de todos os meios transmitirem a mesma mensagem e até a mesma imagem. Por isso, "o que vemos, lemos e ouvimos, o que se veste, o que se come, os sítios onde se vai e aquilo que se acredita estar a fazer, passaram a ser responsabilidade de um sistema de informação que fixa gostos e valores em função dos seus próprios critérios de mercado, os quais, por sua vez, se reforçam entre si" (H. I. Schiller). [1]

 

Para lograr essa uniformização da consciência numa sociedade fraccionada por contradições antagónicas aplicam-se métodos psicológicos cujo êxito foi testado e confirmado na "publicidade" comercial, a indústria do reclame.

 

Mobilizando recursos científicos nas disciplinas mais diversas (sociologia, estudos de opinião, psicologia, politologia, relações públicas, estudos comportamentais e motivacionais, teoria da comunicação, etc), consegue construir-se um pensamento em modelos pré-formatados. Uma maneira de pensar que, para além do mais, reforça a aparência de que se está a agir livremente. Sob a cobertura de uma suposta liberdade de expressão, os poucos que dela realmente dispõem, quer dizer, as minorias que detêm os meios para a expressar, tentam moldar sistematicamente as consciências de milhões de pessoas, condenando-as à menoridade intelectual, educando-as para a docilidade, para suportar, sem críticas, o sistema de dominação e exploração vigente, e para considerar como próprios os falsos ideais deste mesmo sistema. As actuações e condutas daí resultantes são apresentadas como "livres decisões", autodeterminadas, quando na realidade são induzidas, heterodeterminadas.

 

Como fenómeno típico da vida espiritual nesta autodenominada "sociedade de mercado livre", a manipulação das consciências parte, entre outras, das seguintes condições prévias:

 

1) A concentração sem precedentes do capital em sectores chave e, ao mesmo tempo, a recente baixa das taxas de juros.

2) O problema daí derivado da valorização do capital e da procura de novos investimentos.

3) O desenvolvimento do sector terciário, de serviços.

4) A eliminação das fronteiras nacionais por necessidade de expansão do capital, ao mesmo tempo que se estão gerando continuamente novas fronteiras e conflitos étnicos.

5) O agravamento das contradições do sistema capitalista, especialmente entre Norte e Sul, entre pobres e ricos.

6) A existência de modernos meios técnicos e conhecimentos científicos – aquilo que costuma englobar-se sob a designação "novas tecnologias" – que permitem o exercício unitário e simultâneo do poder económico e ideológico sobre o conjunto de toda a sociedade.

7) Uma oferta massiva de mercadorias que estimula o consumo enquanto ideal de desejo

8) O progressivo abandono da ideia de "público", conducente à marginalização dos serviços públicos enquanto organização e modo de regulação do sistema

9) O subsequente processo de desregulação e privatização com a preponderância dos critérios de rentabilidade financeira sobre os critérios de rentabilidade social

10) A comercialização de todos os aspectos da vida material e espiritual dos cidadãos o que conduz, necessariamente, a que o produto barato, isto é, o produto indiferenciado, uniforme, determine a produção e os programas. O efeito final da comercialização é, como se constata, o entretenimento à base de enlatados fabricados em série e envoltos em reclames publicitários.

11) Aquilo que se impõe é o valor de troca da informação e do entretenimento como mercadoria destinada a compensar ilusoriamente as carências afectivas da maioria da população e não o útil potencial do seu valor de uso

12) A indústria da comunicação e da consciência, principal instrumento de dominação e submissão, transformou-se num sector estratégico nos campos económico, político e cultural

 

A manipulação dirige-se ao pensamento, aos sentimentos, às acções (e omissões) de toda e qualquer pessoa. Da esfera íntima até à apresentação pública no trabalho, na escola ou na política, não sobra um único aspecto, uma única dimensão da vida que dela não receba a influência. O objectivo final da manipulação é a obtenção da passividade e da submissão. A manipulação das mentes é uma guerra psicológica planificada, elaborada a partir de conhecimentos científicos, contra o desenvolvimento progressista, isto é, solidário e cooperativo do ser humano ou, o que é a mesma coisa, orientada contra o progresso social.

 

Naquilo a que se chama "sociedade de mercado livre", a função da indústria da comunicação, como de qualquer indústria, consiste em gerar lucro, mais ainda, em estimular a sua criação e, sobretudo, em manipular a maioria da população de maneira a que esta não empreenda acções contra o sistema de economia privada, mas antes que o apoie e reforce. A razão de ser da manipulação funda-se nas leis que regem a economia de mercado. Por isso há quem a tenha qualificado como um instrumento de conquista, como o fez Paulo Freire, na sua "Pedagogia do Oprimido". [2] A manipulação, diz o pedagogo brasileiro, é um dos recursos mediante os quais "as elites dominantes tratam de fazer com que as massas se moldem aos seus objectivos". Valendo-se de mitos que explicam, justificam e até adornam as condições existentes de vida, a minoria que dispõe dos media mobiliza-se em favor de uma ordem social que não serve os interesses das maiorias. Uma manipulação bem sucedida fará com que as pessoas não pensem noutros ordenamentos sociais possíveis nem, consequentemente, em alterar os existentes.

 

Por outras palavras, a função primordial da indústria da comunicação, da consciência, do entretenimento ou como quer que se lhe chame, na sociedade capitalista consiste em desorganizar e desmoralizar os submetidos. Neutraliza os dominados, por um lado, e consolida, por outro, a solidariedade com a classe dominante e com os interesses desta. Ao fim e ao cabo, "os ricos também choram", têm problemas com os seus filhos, etc. Os modelos de conduta que apresentam, baseiam-se no êxito pessoal, no individualismo, no isolamento e na fragmentação social. O colectivo, segundo tal lógica, não conduz a lado algum.

 

Manipula-se, em suma, quando se produzem informações que não reflectem os interesses e necessidades dos seus consumidores, quando deliberadamente se produzem mensagens desconformes com a realidade social.

 

O oposto da manipulação é a formação da consciência crítica e da vontade democrática, tendo em vista o desenvolvimento multifacetado da pessoa humana. Para isso requer-se, entre outras coisas, a transformação do sistema de produção material e espiritual, do sistema de ensino, a criação de condições efectivas de acesso que estendam a liberdade concreta de expressão a todos, a supressão das medidas estatais que limitam essas liberdades, requer-se a travagem e anulação da influência dos monopólios e oligopólios na formação da opinião pública e na cultura. Terão as maiorias de converter-se em protagonistas dos media, recorrendo aos modelos e exemplos concretos e reais para a formação da sua opinião em todos os aspectos da vida. O povo como protagonista, implica que as maiorias trabalhadoras elaborem as suas notícias e as discutam [3] . 

 

Técnicas de manipulação

a) A selecção

 

Uma das técnicas de manipulação que melhor passam despercebidas consiste no seleccionar para difusão aquelas informações que melhor satisfazem os interesses e os objectivos dos seus produtores. Qualquer objecção que se faça a esta selecção costuma, segundo a escassíssima minoria que a elabora e destina a todos os outros, equivaler a um atentado contra a liberdade de expressão, de comércio, de criação, etc.

 

E, contudo, a informação é, por natureza, selectiva. Não se consegue publicar tudo aquilo que acontece. Mesmo que fosse possível sabê-lo, os jornais e as revistas têm um número limitado de páginas, um espaço finito. O mesmo acontece com os espaços e os tempos radiofónicos e televisivos. Daí a necessidade de seleccionar entre o fluxo incessante, proveniente dos correspondentes, das agências, do material em bruto que, depois de uma primeira triagem é passado às redacções jornalísticas, as quais, por seu lado, voltam a seleccioná-lo de modo que, no fim do processo, apenas se publicará qualquer coisa como um por cento da informação inicialmente gerada. Trata-se de uma zona de desperdício astronómico, que bem valeria a pena analisar.

 

Logicamente, cada qual selecciona de acordo com os seus gostos, educação, ideologia, interesses, necessidades, etc. Na formação social que se denomina "mercado livre", quer dizer, capitalismo, selecciona-se aquilo que se crê ir vender melhor e a mais gente.

 

Seja como for, devido à concentração existente nesta indústria da consciência, ou do entretenimento, como outros preferem chamar-lhe, a verdade é que se contam pelos dedos de uma mão as agências internacionais que seleccionam os acontecimentos e as imagens que vemos na maior parte do mundo. O mesmo é válido para a produção de filmes, séries televisivas, livros de texto, etc. Basta recordar a informação sobre a Guerra no Golfo, do princípio dos anos 90, cuja cobertura foi atribuída em exclusivo à cadeia norte-americana CNN, com os jornalistas devidamente escolhidos e previamente industriados pelos militares do Pentágono. Basta recordar que 95 por cento das imagens difundidas pelos meios de comunicação são fornecidas por uma agência noticiosa dos Estados Unidos ou, ainda, que 90 por cento dos conhecimentos armazenados em bancos de dados de todo o mundo são propriedade privada norte-americana.

 

Em suma, uns poucos detêm o poder de definir a realidade para a maioria de todos os outros, de dizer-lhes o que se passa, o que é bom e o que é mau, o que se deve ou não fazer e como fazê-lo, etc. Este poder de fixar o programa social de qualquer comunidade é a chave do controlo social. Lorde Nordcliffe, dono de um dos mais poderosos consórcios jornalísticos dos princípios do século XX, explicava-o muito directamente e sem muito gaguejar: "Deus ensinou os homens a ler para que eu possa dizer-lhes quem devem amar, quem devem odiar e o que devem pensar". [4]

 

E a história que nos contam costuma ser, quase sempre, a dos outros, não a nossa. Enquanto estamos entretidos a viver as histórias dos outros, não temos tempo para nos interessarmos pelas nossas próprias, isto é, com as histórias da nossa vida. Porque se nos ocupássemos dela, se acerca dela descobríssemos como são bem outros que a determinam e não nós, certamente não ficaríamos de braços cruzados e tentaríamos mudar a figura das coisas.

 

b) Silenciamento

 

O simples método de manipular comunicando tão-somente aquilo que convém implica, por definição, o silenciamento do inconveniente. Os governos, por exemplo, encontram um formidável instrumento de controlo social no silenciamento de informações vitais à população, como ocorreu em Espanha durante a Guerra do Golfo com a questão dos sobrevoos e abastecimentos das tropas norte-americanas.

 

Quando a verdade não corresponde aos interesses do capital, não se trata de mentir, mas antes de não dizer a verdade. Este método é mais difícil de ser percebido pelos leitores, ouvintes ou telespectadores.

 

Informa-se de maneira selectiva, mas credível, acerca de fenómenos, pormenores, sem contexto, sem chegar, nunca, à essência do sistema.

 

Os governos despendem centenas de milhões na acumulação de informação que se destina a ser imediatamente silenciada, por razões de Estado, de interesse ou segurança nacional, etc., mas cujo conhecimento acabará repartido por uns quantos. Um exemplo quase pueril, para não mencionarmos outros de maior substância, é o daqueles ex-chefes de Estado que ao cessarem funções levam consigo milhares de documentos para redigirem as suas memórias e, com eles, fazerem, portanto, o seu negócio privado. Por isso se diz que informação é poder ou, com maior precisão, que o poder se baseia na ocultação da informação. Não era diferente nos países socialistas.

 

c) A comunicação oficial e protocolar

 

A maioria das notícias dos meios de comunicação, em especial da televisão, refere-se às actividades dos governantes. A televisão considera precisar imprescindivelmente de notícias que possam apresentar-se com imagens. Nas deslocações, visitas e inaugurações dos chefes de Estado e dos governantes, podemos assistir a como descem dos aviões, como têm à espera as suas guardas de honra, apresentação de armas e hinos nacionais, como chegam e partem nos carros topo de gama, como membros das comitivas e guarda-costas abrem e fecham as portas, como os governantes olham para as câmaras com expressões e gestos estudados.

 

Às vezes, nem se distingue, onde estão, se em Madrid, em Bruxelas ou noutra qualquer capital. As imagens parecem-se entre si, como gotas de água. Os personagens que decidem a nossa vida desaparecem, então, atrás de portas que se fecham e, aí, onde verdadeiramente começa a história, é onde nós ficamos sem saber o que se negoceia e assina para lá delas. É assim que se encena o espectáculo da democracia. Dá um trabalho considerável distinguir entre espectáculo, política e reclame publicitário. Mas o primado é sempre do espectáculo. [5]

 

d) Os mitos da sociedade ocidental

 

A manipulação das consciências efectua-se também por meio de uma série de mitos que estruturam os conteúdos das mensagens. Herbert Schiller, no seu já antes citado "Mind Managers", analisa cinco destes mitos.

 

1) O mito do individualismo e da decisão pessoal. Baseia-se na suposta primazia do indivíduo como valor supremo. Aqui reside o fundamento da liberdade, da propriedade privada, do triunfo pessoal a todo o custo, etc. Esta forma de apresentar o progresso do ser humano oculta, capciosamente, o facto de aquilo a que chamamos sociedade ou cultura humana ter surgido da cooperação, da solidariedade e da comunicação. É isso que distingue o humano do animal. O egoísmo selvagem representa precisamente a animalidade.

 

2) O mito da neutralidade. A eficácia da manipulação depende da inexistência de provas da sua existência, de que as mentes submissas acreditem que as coisas são inevitavelmente como são, sem que nada exista que possa mudá-las. Para esse efeito, é fundamental que as pessoas creiam na neutralidade das instituições sociais, dos governos, do sistema de ensino, dos meios de comunicação e da ciência. Lamentavelmente para esses interesses, os factos desmentem esta tão cacarejada neutralidade.

 

3) O mito da inalterabilidade da natureza humana. A opinião que tenham sobre a natureza humana influi também no comportamento das pessoas e nas suas expectativas. Quando se difunde a ideia, que se pretende até demonstrar "cientificamente", segundo a qual a condição humana é uma criação definitiva, acabada, seja por Deus ou pelo ADN, genoma humano ou como quer que se denominem as novas "divindades" da ciência, estará, então, a admitir-se que as relações conflituais são inerentes à própria condição humana, nada tendo a ver com as circunstâncias sociais; que a agressividade é incorrigivelmente própria da natureza humana; e que, portanto, não vale a pena mudar o meio social gerador, ele sim, de tais conflituosidade e agressividade de uns seres humanos para com os outros. Os efeitos sociais destas teses são a desorientação, a incapacidade para identificar as contradições e as suas causas e, o que é pior, a aceitação submissa da situação existente.

 

4) O mito da ausência de conflitos sociais. Consequência lógica do anterior, impõe-se o mito de que não existem conflitos sociais, de classe. O conflito apresenta-se sempre como um problema individual. Do ponto de vista da sua comercialização, dizem-nos os investigadores, a apresentação como colectivos dos problemas sociais, requer não apenas um esforço acrescido, como perturba os consumidores. Daí que os entretenimentos e produtos culturais de maior difusão estejam tão impregnados de violência individual. A cooperação, a unidade e a luta colectivas constituem conceitos potencialmente perigosos.

 

5) O mito do pluralismo dos media. Este baseia-se na ilusão de que ao dispor de um grande número de títulos de jornais e revistas ou de muitas emissoras de rádio ou canais de televisão, o cidadão está apto a escolher entre uma oferta efectivamente diversificada. É uma ilusão que surge reforçada pelo facto de o consumidor poder realmente optar por um ou por outro título, ou canal. Mas caso se observe mais de perto os conteúdos, facilmente se verá como são todos mais ou menos idênticos. Multiplicidade de botões (canais) não é sinónima de diversidade de opiniões. Onde se encontra, por exemplo, um diário de grande projecção ou um canal de televisivo de esquerda? O pluralismo autêntico é o das opiniões diferentes e contrastadas. O aumento de títulos, canais e programas não basta. Se todos oferecem a mesma informação oficial protocolar, a mesma música, os mesmos espectáculos banais, os mesmos concursos e os mesmos reclames publicitários, não é pluralismo o que se tem, mas sim uniformidade e conformismo, compensação fácil para os défices emocionais, as angústias e frustrações e, em última instância, doutrinação.

 

a) Os inquéritos e sondagens de opinião

Transformaram-se actualmente numa verdadeira indústria de que a política e outras indústrias mal podem prescindir. São técnicas para averiguar e determinar os hábitos e preferências individuais e colectivos. Não são, de modo algum, instrumentos neutrais, uma vez que os gostos e as tendências humanas não podem ser separados das relações sociais em que existem. A sua publicação pode, inclusivamente, criar, ela mesma, estados de opinião; através dela podem dissipar-se as dúvidas dos indecisos, estimular o espírito gregário. Pelas sondagens não se pretende ficar a saber o que as pessoas desejam, mas antes se os métodos anteriormente empregues foram eficazes ou se, pelo contrário, é preciso modificá-los. A indústria dos inquéritos e sondagens emprega-se, consabidamente, para dirigir gostos e decisões, tanto na compra de bens de consumo, como nas eleições políticas.

 

b) A censura

É a forma mais brutal de intervenção para manipular as consciências. Ainda que deva ter-se em conta que existem diversos tipos de censura. Assim, nos regimes totalitários, pratica-se a censura prévia, isto é, a que se efectua antes de que os produtos se imprimam e saiam para a rua. Também acontece censurar depois da impressão, intervindo antes da publicação e comercialização. Deste modo, podem confiscar-se jornais, revistas e livros nos quais já se tenham investido somas consideráveis, infligindo os correspondentes prejuízos aos seus editores. Mas não se pode, igualmente, esquecer a autocensura que a si mesmos impões os produtores (jornalistas, escritores, artistas, etc.), antes de darem por concluídos os seus trabalhos, de forma a que estes agradem às instâncias superiores e não lhes criem problemas.

 

A arma contra a censura é a motivação. Quando se quer escutar a mensagem, de pouco valem as barreiras e as intromissões. Os espanhóis que queriam escutar a "Pirinaica" [como os portugueses que queriam ouvir a Rádio Argel ou a Rádio Moscovo] durante a ditadura, bem que o faziam apesar dos perigos e das interferências. A censura não resolve nada, apenas prejudica a sociedade sobre a qual é exercida. Os obstáculos impostos à liberdade conseguem apenas, como regra, estimular ainda mais o desejo de conhecer o interdito. Quando a opinião pública não pode informar-se nem expressar-se livremente, procura as suas próprias formas de satisfazer as necessidades que sente e os interesses que partilha. Não há muros que possam entravar a radiodifusão, como acontecia na ex-República Democrática Alemã (RDA), cuja população escutava diariamente os programas de rádio da então República Federal, através dos quais podia dedicar-se a imaginar o fascinante espectáculo do "paraíso" capitalista que tanto viria a frustrá-la posteriormente.

 

c) A fulanização da política

Os acontecimentos sociais, no discurso dos media, personalizam-se. Os dirigentes políticos passam a ser julgados pelos seus atractivos pessoais e não pelos respectivos programas, por aquilo que conseguiram fazer ou pelos falhanços que averbaram. Os principais problemas apresentam-se ao público reduzidos a análi-ses de atributos pessoais, dos seus hobbies, deslizes sentimentais, vida familiar e, até, por via da análise dos vestidos e penteados. Os conflitos sociais são interpretados e expostos como conflitos de personalidades. A guerra no Golfo não é uma luta pelo controlo do petróleo e pela independência nacional de determinados países, mas antes uma questão pessoal entre Bush e Saddam, por exemplo. Estrategicamente, esta fulanização tem a virtualidade de alienar as atenções das pessoas e das grandes massas relativamente aos problemas sociais que as afectam, de facto.

 

d) A exposição linguística

Como mencionámos ao falar da violência psicológica ou simbólica, a linguagem continua a ser o principal instrumento de manipulação. Se os seres humanos desenvolveram a linguagem para poderem entender-se uns aos outros, para poderem cooperar entre si para benefício de todos, o capitalismo de hoje utiliza a linguagem precisamente na direcção inversa, para os confundir e dividir. As notícias são, quase invariavelmente, apresentadas sem conexão entre si. Esta fragmentação dificulta e impede a sua compreensão, pois sem contexto não há significado. Uma coisa existe, através das outras, dizia Hegel. Se não nos são apresentadas as relações que existem entre acontecimentos e estados de coisas, não podemos simplesmente entender o que se passa. Explicar a violência na Irlanda do Norte em termos de católicos e protestantes, sem dizer a quem pertence a riqueza, quem ocupa os postos de trabalho e quem são os pobres ou os que estão no desemprego, não serve de nada para perceber o que ali se passa. O mesmo poderia dizer-se de todos os conflitos no mundo, veiculados pelos media. No conflito jugoslavo, parece que só há um "mau", os sérvios, que se qualificam de "antigos comunistas". Ao comunismo e neo-comunismo da Sérvia, opõe-se a "liberdade" da Croácia, ainda que o seu governo seja fascista. Na "sociedade de mercado livre" incluem-se as monarquias feudais da Arábia, todas as ditaduras latino-americanas e quase todas as africanas e asiáticas. O modelo da sociedade democrática e livre por excelência são os Estados Unidos da América, que apesar do ardor com que proclamam a liberdade de circulação de pessoas e bens, impõem há mais de 40 anos, um bloqueio económico a Cuba, ou que com a sua legislação proteccionista impedem a importação de bens de outros países, entre os quais europeus. E podíamos continuar indefinidamente.

 

Um método simples de observar o facciosismo da opinião dos media consiste em atentar nos adjectivos com que qualificam os acontecimentos e as pessoas. Através deles, saberemos como os julgam, que pretendem, se a sua tão propalada neutralidade e independência tem, afinal, ou não tem, alguma a coisa a ver com a realidade e a lógica das coisas.  

 

O entretenimento

Entreter significa compensar durante um lapso de tempo, as debilidades e carências emotivas e sentimentais. O entretenimento apela aos défices emocionais que, de vez em quando, todos nós temos. É disso que vive esta indústria. Porque o objectivo último do entretenimento maioritariamente proporcionado pelos media de hoje não é o postulado ético da coexistência entre povos e etnias e culturas, mas é antes o de ganhar dinheiro com programas que exploram os mais primitivos instintos (sexo e violência). Quando a aspiração de toda a construção cultural consistiu ao longo dos séculos em refrear e sofisticar estes instintos, hoje em dia, o direito do mais forte limita-se, ao potenciá-los, a contradizer todo o património de avanço cultural e político nos direitos humanos.

 

Enquanto jogo lucrativo com as emoções de terceiros, o entretenimento torna-se, na realidade, uma questão política determinada pelos meios que se utilizem para o disseminar. Quem diariamente se distrai com o assassinato, a morte, a fraude, a violência bruta, aprende que o direito do mais forte e que o individualismo egoísta prevalecem sobre os direitos humanos, a solidariedade e a cooperação e aprende ainda que a melhor maneira de responder às opiniões contrárias é partir a cara àqueles que as expressem. O simplismo e a rudimentaridade dos punhos, em vez da complexidade e diversidade das opiniões, da força dos argumentos racionais, produz mirones cínicos e não cidadãos democratas, dotados de consciência crítica e sentimentos solidários.

 

O entretenimento e a diversão das grandes massas das populações e a organização perversa dos seus tempos livres, converteram-se numa das indústrias mais lucrativas e prósperas dos nossos dias. Aproveitando-se das forças produtivas mais modernas, as novas tecnologias da informação e da comunicação, como costumam ser designadas, gera-se uma ampla oferta de organização do tempo livre, entendido como tempo de ócio, de não trabalho. Mas, isto em nada significa que este seja um tempo efectivamente à nossa disposição, ocupado com actividades organizadas e dirigidas por nós mesmos. O que se passa é que esta indústria utiliza, na projecção dessa e doutras ilusões, todas as formas de cultura popular: histórias, desenhos animados, discos, cassetes, jogos de vídeo, programas de rádio e de televisão, cinema, revistas ilustradas, acontecimentos desportivos, concertos e festivais de pop e de rock, fascículos, livros promovidos pelos reclames comerciais, etc., etc. Existe uma enorme quantidade de produtos para iludir as pressões e angústias da vida quotidiana, para a evasão através do jogo e do entretenimento, para tentar, enfim, satisfazer esperanças e desejos secretos.

 

Esta exploração interessada das necessidades humanas de entretenimento, de descanso, de distensão cumpre uma outra função importante: abstrair da sua realidade as grandes massas da população, algo que deve entender-se também no âmbito da manipulação ideológica e da formação da mentalidade submissa. E, não obstante, encontra-se muito arreigado o mito de que a diversão e o lazer são neutrais, carecem de pontos de vista orientados e existem à margem dos restantes processos sociais. No fim de contas, que pode ter de mal seleccionarmos o programa que mais nos agrade, a estância balnear que a carteira nos autorize, ou os video-jogos com que se entretêm os nossos filhos, enquanto nos poupam, aliás, a ter de aturá-los e responder às suas perguntas? Se dermos, porém, uma olhadela, ainda que superficial, aos conteúdos, não tardaremos em descobrir o negócio da violência que se empenha em projectar a ilusão de um "oeste selvagem", nas fitas de cowboys, por exemplo. Um "oeste" que já por volta de 1875 bem tinha desaparecido, mas de que ainda hoje continua a alimentar-se a fábrica de sonhos de Hollywood. Ou o negócio do terror, do sexo, da pornografia, a chirichia das revistas cor-de-rosa ou os supostos debates (magazines) da hora da sobremesa. A própria guerra e a morte são convertidas em diversão. Quem pára o suficiente para pensar no sentido existente por trás do facto de que as pontes e edifícios que voam pelos ares, os choques de comboios, os saltos do décimo andar, os voos supersónicos do Super-Homem, etc., etc., equivalem apenas a uma burla estética? Hoje em dia, aluga-se inclusivamente público para jogos e concursos junto de lares de terceira idade, escolas primárias ou faculdades. Há adultos, jovens ou crianças, que por dez euros ou um simples lanche e um sumo, estão dispostos a rir ou aplaudir de cada vez que a produção os mande fazer uma coisa ou a outra.

 

Vivemos a cultura do simulacro.

 

A cultura popular já não é feita pelo povo. Como salienta Herbert Schiller, "a rede da cultura popular que relaciona entre si os elementos da existência e que fixa a consciência geral daquilo que existe, do que é importante, do que está reciprocamente ligado, converteu-se, primordialmente, num produto manufacturado". Esta cultura, que pode perfeitamente designar-se por "cultura dos media", impregna a mentalidade e contribui decisivamente para a formação da opinião da maioria, uma vez que esta não dispõe, na verdade, de qualquer outra fonte de informação. A UNESCO estima que, hoje em dia, 85 por cento dos serviços culturais do mundo são veiculados pelos meios de massas, especialmente pela televisão. Os seus conteúdos e programas proporcionam reiteradamente a quem os vê chaves interpretativas e hierarquias de valores na nossa sociedade, bem como indicações sobre como proceder para atingir o sucesso e a felicidade, como educar os filhos, como deve o casal fazer amor, etc., etc. Estes materiais formam, doutrinam, estimulam a ambição e o lucro pessoais e propagam a ideia de que a natureza humana é imutável. Negam, enfim, a viabilidade de outras formas de organizar a vida e a coexistência humanas.

 

O êxito da indústria do entretenimento assenta nas expectativas do público. O espectador espera do televisor o prazer, a diversão, o desafogar das tensões, da mesma forma que da máquina de lavar espera roupa limpa e do frigorífico alimentos frescos. Ao mesmo tempo que subsistem, bem longe desta indústria, aquilo que são as naturais necessidades de lazer e de actividade livre das dos seres humanos e das grandes massas populacionais por eles constituídas, necessidades que ainda não se precisaram devidamente e que qualquer programa político emancipador deverá ter bem em conta.

 

NOTAS

 

[1] A citação do autor é da edição em castelhano de Schiller, Herbert I. (1972) Mind Managers, "Los Manipuladores de Cerebros" (1989), Gedisa, Barcelona (:189). H. I. Schiller (1919-2000) foi um dos mais profundos e radicalmente críticos pensadores do dispositivo mediático. Professor na Universidade da Califórnia, em San Diego, a sua obra está por traduzir em português. Na linha de estudos sobre as relações de dependência mediática imperial, sobretudo da América Latina em relação ao seu país, os Estados Unidos, a sua abordagem da globalização comunicacional e da evolução tecno-política dos dispositivos contemporâneos de comunicação, centrava-se nas possibilidades perversas de os novos meios e as novas redes se transformarem em extensões imperialistas de controlo e manipulação à escala planetária (NT)

 

[2] Freire, Paulo (1970), Pedagogia do Oprimido, acerca oposição entre a teoria dialógica da acção (cujo objectivo é a adesão das massas às formas de organização da sua libertação), e a teoria antidialógica da acção cujo instrumento é a manipulação e objectivo a conquista e a dominação). Ver especialmente páginas 102 e segs. da edição aqui consultada, 17ª, de 1987, Rio de Janeiro, Paz e Terra. (NT)

 

[3] Matéria essencialmente ideológica e política, tal como o autor aqui a coloca, a verdade é que as práticas e o debate em torno do jornalismo participativo, do cidadão-jornalista, etc., têm vindo a conhecer um impulso que à data da edição deste livro, poucos poderiam antever. Um interessante roteiro sobre o estado da arte no debate internacional deste tema, e não só, pode ser encontrado no excelente Ponto Media, o actualizado, atento e cuidado blogue do jornalista português António Granado, disponível em http://ciberjornalismo.com/pontomedia/ (NT)

 

[4] O autor vai, aqui, uma vez mais à raiz da questão. De assinalar, porém, que bem depois de Nordcliffe, as ciências da comunicação chegaram a conclusões que validam palavra por palavra a asserção do lorde britânico. Onde melhor e de modo mais acessível podemos continuar, ainda hoje, a encontrar coligidos, em língua portuguesa, os estudos que corroboram o aqui explanado, é nas colectâneas organizadas por Nelson Traquina, da Universidade Nova de Lisboa, contendo, entre outros importantes estudos, os textos e autores fundamentais das principais teorias do "valor notícia" e dos critérios de selecção noticiosa (gate keeping), das teorias funcionalistas sobre o trabalho e a organização das redacções jornalísticas, bem como das teorias do agendamento (agenda setting), em especial da evolução de 25 anos de pesquisa nesta área por parte dos seus autores McCobms e Shaw (1972 e 1993). Portanto, duas obras de referência e aprofundamento, em português: Traquina, Nelson (org) (1993), Jornalismo: Questões, Teorias 'Estórias', Lisboa, Ed. Vega. E Traquina, Nelson (2000), O Poder do Jornalismo, Análise e Textos da Teoria do Agendamento, Coimbra, Minerva. (NT)

 

[5] Uma das mais importantes e radicalmente profundas obras sobre estes aspectos sócio-comunicacionais e políticos das nossas sociedades é da autoria do co-fundador francês da chamada Internacional Situacionista, Guy Debord: "Comentários sobre a sociedade do espectáculo". Obra original de 1988, escrita duas décadas após o seu outro clássico, "A sociedade do espectáculo" (original de 1967), os "Comentários" antecipam com uma precisão cirúrgica a evolução do sistema espectacular nas suas formas mais recentes, e que ultrapassaram a própria vida do seu autor, que se suicidou a 30 de Novembro de 1994. Existe uma (esgotada) tradução portuguesa dos "Comentários", pela editora Mobilis in Mobile, datada de 1995 e uma outra igualmente esgotada edição portuguesa de "A Sociedade...", de 1991, pela mesma editora, depois de uma primeira edição ter circulado semi-clandestinamente em português em 1972. (NT)

 

[*] Catedrático de Comunicação Audiovisual (jubilado em 2005) da Universidade de Sevilha, doutorado pela Universidade Complutense de Madrid e doutorado cum laude pela Universidade de Münster, autor de 13 livros.    O presente texto é um excerto de A formação da Mentalidade submissa, tradução de Rui Pereira, Deriva Editores , Porto, 2006, 165 pgs., ISBN 972-9250-20-0

 

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