terça-feira, 5 de junho de 2012

ELIAS CANETTI, ENSAÍSTA


Por Franklin Jorge

Excepcionalmente dotado das artes do feiticeiro, previu Elias Canetti que o ar é o nosso último bem comum. Disse-o num discurso pela passagem do quinquagésimo aniversário de Hermann Broch, em Viena, 1936. Ao refletir sobre a data, viu Canetti um belo sentido na homenagem que se presta a um homem pelo seu quinquagésimo ano de vida e, desde então, percebeu que o público e o privado não admitem distinção; interpenetram-se hoje e de uma forma jamais vista no passado.

Consumido por uma compulsiva fome de leitura, forjou Canetti, como escritor, uma individualidade complexa e poderosamente vital. Tudo o que há lido, desde que aprendeu a ler, parece estar sempre ao seu dispor. Um leitor, enfim, alerta e hipercrítico. Descobriu – ou inventou – os seus precursores.

Ensaísta emérito, por índole, temperamento e cultura, escreveu os ensaios de Consciência da palavra, dos seus livros mais pessoais. Contém e resume todo um credo humanista ávido de vida. Escritor enciclopédico, sempre reiterando que nada surge sem grandes modelos, parece dizer-nos também que o ensaio agrada aos espíritos analíticos e discriminadores.

Dentre as suas obsessões, a busca de Kafka, um de seus precursores -, leitmotiv recorrente de suas inquisições metafísicas -, Franz Kafka é uma ideia fixa para o escritor. Canetti amplia a nossa consciência das coisas e da palavra. Como um arguto e inquieto observador minucioso, aplica-se a Canetti o mesmo axioma de Otto Maria Carpeaux para Benedito Croce. Foi um homem que pensou implacavelmente sem pensar em consequências. Sim, repetindo o próprio Canetti, leitor multifacético de Schopenhauer, rarefeito é o número de cabeças que pensam. Muitos escrevem sem medir as palavras. Leviana e epidermicamente, expedem palavras sem pensamento e sem noção.

Trata-se, obviamente, de um escritor para escritores; de um escritor que é um poço inesgotável de surpresas e novidades, adverte-nos o diabo da inveja. O homem de Ruschuk, Bulgária, é desses escritores que pacientemente deglutem o conhecimento, a informação, a herança dos séculos, devolvendo-os aos leitores em parágrafos que contém a memória universal.

Escritor de uma estirpe rara, tece Canetti a sua escrita com clareza e densidade, com razão e inteligência, podendo assim louvar seus precursores. Gogol, Stendhal, Thomas Mann, Karl Kraus, Kafka, Dostoievski etc.

Mestre da sátira, escreveu um único romance que não poucos afirmam ser o contraponto tardio de Don Quixote. Auto-de-fé foi o único de oito romances planejados que escreveu e que constitui um tour de force, numa prosa tão maior do que a de Joyce; um tour de force que se lê com prazer e assombro. Uma obra visceral, sob alguns aspectos, até, inumana. Ou sobre-humana, outros dirão. Canetti nunca foi desses escritores ricos, barulhentos, que querem ser levados a serio.

De suas obras, Massa e poder, a desconcertante e minuciosa trilogia biográfica constituída por A língua absolvida, O jogo dos olhos e Uma luz em meu ouvido; e, sobretudo, o romance Auto-de-fé, avultam, em grandeza metafísica e perspicácia, entre as criações magnas de Canetti. Diz-nos, através dessa obra progressiva – canettiana -, que a prática faz o mestre, tornando-nos merecedores, portanto, de uma paga justa.

Mario Vargas Llosa viu Auto-de-fé como um pesadelo realista. De fato, parece ser um dos maiores horrores da literatura, algo da mesma natureza demoníaca de Vathek, o califa ímpio. Contém o desejo do autor de escrever um texto rigoroso e desapiedado; um texto que não podia ser agradável ou complacente. Para muitos, uma das obras de ficção mais ambiciosas da narrativa moderna; para outros, a obra de um intelecto desmedido que não quer ser feliz, quer ser sábio. Um romance cômico inexcedível que só muito raramente provoca o riso do leitor. Assim, Auto-de-fé.

Canetti considera a leitura uma carícia. E, o escritor, alguém que nada obtém por herança, sem mérito nem esforço. Jamais será um pobre de espírito quem pensa assim! Alguém que engordou de inércia. Sobretudo preservou Canetti a coragem de manter-se sozinho. De não ser de preço comum no mercado. Desde cedo soube o que queria ser e quis sê-lo sem tardança. Porem deu tempo ao tempo e fez milhares e milhares de anotações que recheiam seus arquivos. Os arquivos de um escritor compulsivo, insuportável em sua minuciosidade. Ninguém era capaz de escrever com tanta raiva, como escrevia às vezes Canetti.

Os ensaios desse autor constituem uma biblioteca de humanidades e convergem para um fim, seu trabalho. Sua escritura – por sua extensão e profundidade -, dir-se-ia quase infinita, obra de um fazedor de bruxarias. De um ilusionista da literatura. Uma obra aparentemente sobre-humana. Trabalho que resultou, concretamente, num espólio literário extraordinário.

Canetti escreveu milhares de fragmentos que, organizados, procriarão dezenas de novos livros, de livros inéditos, desconcertantes, justificando a sua natureza de obra progressiva. O ensaio, como declarou, foi o meio pelo qual se manifestou o seu talento. Sua energia verbal, encantatória, persuasiva.

Engrandeceu Elias Canetti a arte do ensaio. Acrescentou-lhe o seu nome desmedido.

.Fragmento de O Escrivão de Chatham, v.2 -2 [inédito]

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