sexta-feira, 10 de maio de 2019

UM DITO DE MORDER O JUÍZO

* Honório de Medeiros

Seu Antônio de Luzia, ultimamente, usa uma espécie de bengala, feita de um pedaço de mulungu que ele aplainou, lixou, oleou, botou empunhadura e ponta de metal, e, na maioria do tempo, fica entre suas pernas enquanto ele, sentado em sua cadeira de balanço de palha trançada, na sombra da canafístula que banha a ponta de sua calçada alta de cimento cru e aponta no rumo do despenhadeiro da Queda, acompanha, em silêncio, com raras palavras, a conversa de final-de-tarde dos que se aprochegam para um dedal de prosa no Feijão, seu pouso "até que a Danada me leve", como diz, no Sítio Canto, Martins, nas beiradas da rua de barro usado pelo povo para entrançar da zona rural à cidade, e vice-versa.

Lá o encontrei, como sempre, dias desses, quando passei por Martins no rumo do remanso da Serra das Almas, nas bandas de Pau dos Ferros, caminho e meio para a Serra do Camará.

Depois dos cumprimentos de praxe, saboreada com gosto a xícara de café coado no pano, grão pilado em casa, perguntei pela parentada e começamos a assuntar daquele jeito de sempre: eu comento alguma coisa, ele reflete, bate com a ponta da bengala no chão, e sem tirar os olhos dos pés de caju que ficam no terreno largo e comprido do outro lado da rua - comprado, eu desconfio, somente para evitar a perda do poleiro pela passarinhada da redondeza, se outro qualquer se assenhoreasse - me responde de forma seca ou me conta alguma história ou estória cujo desfecho é uma espécie de fecho moral, bem dizer o último botão da casaca, como o povo de antigamente levava a cabo, nas conversas de começo de noite nos oitões das casas do Sertão, enquanto a fumaça da pequena fogueira se misturava com as sombras das pessoas, espalhadas pelas  paredes de tijolo cru.

Eram os tempos de estórias de trancoso, de cantadores de viola, repentistas, cordelistas, contadores de "causos", caçadores de onça, viajantes que chegavam de inopino e encontravam uma caneca de café, um mungunzá ainda quente, um naco de carne de sol e, depois de pagarem a hospedagem com uma boa conversa, quando atualizavam os presentes com as novidades que traziam consigo do vale e de mais longe, muito além, também tinham uma boa rede para um sono reparador até a hora do leite morno, na madrugada do dia seguinte, tirado do peito da vaca naquele instante, adoçado com raspa de rapadura, antes de botar o pé na estrada e pegar o rumo a que se destinavam.

Falei a seu Antônio a respeito dos noticiários de hoje que ouvimos e vemos na televisão, nos poucos jornais escritos, e na tal da internet, e critiquei as mentiras, dizendo-lhe ser, mais que nunca, difícil confiar em quem quer que fosse ou em qualquer coisa dita. 

Contei alguns exemplos, lembrei escritos de alguns homens sabidos acerca desses acontecidos, e terminei lançando o bordão que parece mais um ponto final tipicamente sertanejo para encerrar conversa: "o mundo tá perdido, Seu Antônio".

Ele matutou para lá e para cá, pigarreou, bateu com a ponta da bengala no chão, e me disse: "desde que o mundo é mundo tem dois tipos de pessoas: os sabidos e os bestas. Dos sabidos, tem os que enxergam os finalmente de seus fazeres, e os que somente vêm até um palmo além das ventas. Quanto aos bestas, esses são um só, desde que o tempo é tempo. Pois meu filho, eu lhe digo sem medo de errar: o pior tipo de sabido é aquele que só vê até um palmo depois das ventas. Esse pensa que sabe das coisas, e quando é levado no bico pelo mais sabido que ele, e arranca um pedaço do besta, ficando com a parte menor, não sabe que está arrancando dele também." 

Passei um bocado de tempo pensando no dito de Seu Antônio. A noite fechou, o luzeiro de Deus tomou conta do Sítio, ainda tomei uma sopa quente de feijão com bolacha quebrada dentro do prato, mordi um pedaço de rapadura, tomei mais de uma caneca de água, depois me despedi, arrepiei no rumo da cidade, fui dormir, e tudo aquilo que Seu Antônio de Luzia tinha me dito não deixou de morder meu juízo um minuto sequer, e para ser sincero, ainda morde até hoje.