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sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

EMPREGO: COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA

 

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Ao longo de minha vida enquanto professor, encontrei muitos casos de alunos que claramente não queriam se bacharelar em Direito.

Estavam ali, no curso, cumprindo uma trajetória que não era de seu agrado. Prefeririam se dedicar à música, à história, a escrever, à arquitetura, jornalismo, psicologia...

Quando eu percebia procurava conversar. Às vezes, em alguns casos, sequer o aluno tinha percebido que sua praia não era aquela. Seduzido por ideais que lhe eram impostos pela sociedade, como status e dinheiro, ou, pior, por ideais que seus pais cultivavam, ali ficavam eles, nas salas de aula, a passar horas e horas tomando contato direto com uma realidade, no seu caso, no mínimo entediante.

Mesmo aqueles que sabiam exatamente o que queriam, tal como passar em um concurso público e supostamente se tranquilizar quanto ao futuro, para, então, se dedicar a alguma atividade que lhe desse prazer, tal como a literatura, era fácil perceber que tinham uma dúvida latente e perturbadora pairando sobre suas mentes: “será que vale a pena todo esse tempo perdido? A vida é tão curta...”

Pois bem, se é assim, ou mesmo que seja apenas para lhe assegurar a certeza de sua escolha, na medida em que isso seja possível, ou por pura curiosidade, vale a pena ler COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA, de Roman Krznaric.

Desde já advirto: não se trata propriamente de livro de autoajuda. O livro é bem escrito, bem fundamentado, e faz parte de uma coleção “tocada” pelo filósofo Alain de Botton, autor de Religião para Ateus e Como Proust pode Mudar sua Vida.

Eu mesmo somente me interessei, quando li uma citação de Richard Sennet, pensador de meu agrado, no livro.

Quanto ao escritor, é membro fundador da “The School of Life”, e foi mencionado pelo jornal “Observer” como um dos mais importantes pensadores sobre estilo de vida do Reino Unido, além de ser conselheiro de organizações tais quais a Oxfam e Nações Unidas.

Então, se for o caso, mãos à obra!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JUSTIÇA E DIREITO: JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.” 

“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.” 

“Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.” 

“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas”. 

“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens.” 

“Qual a decisão de vocês?” 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em Subliminar, Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.” 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de Retórica, aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em A Nova Retórica. 

A partir do que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela Sociologia e Antropologia a partir da Teoria da Seleção Natural: 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.” 

“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.” 

“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.” 

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, a "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, autor de The Ruling Class, a Teoria da Classe Política, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

domingo, 2 de agosto de 2020

CULTURA: A BANALIDADE E DECADÊNCIA DA CULTURA ATUAL

  * Honório de Medeiros         

Em 23 de novembro de 2015, causou celeuma uma "performance", denominada "Macaquinhos", na qual os atores exploravam os ânus uns dos outros, apresentada em uma unidade do Sesc em Juazeiro do Norte, no Ceará. Foi notícia nacional.

"A performance mostrava um grupo composto por homens e mulheres totalmente nus, em círculo, explorando com as mãos o ânus do companheiro a frente. De acordo com os artistas Caio, Mavi Veloso e Yang Dallas, idealizadores do projeto, a apresentação tem o intuito de 'ensinar que existe ânus, ensinar a ir para o ânus e ensinar a partir do ânus e com o ânus'." 

Em agosto de 2017, o Santander Cultural abriu suas portas para a primeira exposição “queer” realizada no Brasil. De origem inglesa, o termo é utilizado para designar pessoas que não seguem o padrão da heterossexualidade ou de gênero definido - notadamente gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.

Choveram denúncias nas redes sociais de pedofilia e zoofilia, principalmente para duas obras em especial: “Cenas do Interior II” (1994), de Adriana Varejão, que teve uma cena em que um homem penetra uma cabra, e “Travesti da Lambada e Deusa das Águas” (2013), de Bia Leite, que faz referência ao meme da internet “criança viada”. 

Também há menção a um vídeo que mostrava um homem recebendo um jato de sêmen no rosto. A obra é intitulada “Come/Cry” e é assinada pelo “artista” Maurício Ianes. 

O nome do artista consta na lista entregue ao Ministério da Cultura como um dos autores das obras expostas no Queermuseu. 

Mais recentemente, em uma performance na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, o artista fluminense Wagner Schwartz se apresentou nu, no centro de um tablado. Em vídeo que circula nas redes sociais, sob fortes críticas, uma menina que aparenta ter cerca de quatro anos aparece interagindo com o homem, que estava deitado de barriga para cima, com a genitália à mostra. 

Agora, recordo Bárbara Tuchman, em A Prática da História: 

"O maior recurso, e a realização mais duradoura da humanidade, é a arte. O domínio da linguagem demonstrado por Shakespeare e seu conhecimento da alma humana; a complicada ordem de Bach, o encantamento de Mozart". 

Serão, esses, sintomas da decadência da cultura? O decadente, na arte, o banal, o medíocre, o aviltante, exerce sua tirania destruidora tanto quanto a proibição da liberdade de expressão estética. 

Entretanto não é somente a possibilidade da presença permanente do fenômeno da decadência, a ser questionado. É sua banalização. A banalização da decadência. 

O livro de Llosa, Mário Vargas Llosa, A Civilização do Espetáculo, cujo título foi calcado no A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, um dos mais originais pensadores do século, deixa confortável quem procura um texto, de melhor qualidade, que dê respaldo a essa sensação permanente de estranhamento e solidão, vivenciada por muitos, originada pelo descompasso entre a “cultura” na qual fomos criados e a realidade que encontramos nos dias de hoje. 

Não é, portanto, “saudosismo”, o que sentimos. 

Há, de fato, um progressivo e profundo processo de banalização dos valores fundantes da cultura, entendidos como pressupostos da construção do processo civilizatório. 

Cultura como a pensou, por exemplo, T. S. Elliot, citado por Llosa, em Notas para uma definição de cultura, de 1948, tão atual, posto que, por exemplo, lá para as tantas, expõe: “E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura.”

É bem verdade que em ensaios tais como A civilização do espetáculo, e Breve discurso sobre a cultura, Vargas Llosa não nos aponta as causas do surgimento desse fenômeno, muito embora aluda, de forma enfática, à “necessidade de satisfação das necessidades materiais e animada pelo espírito de lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade”, como a força motriz que que conduz o processo de destruição da cultura tradicional. Llosa não nos oferece uma teoria que explique tudo.

Para Llosa, por exemplo, civilização do espetáculo é "a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal.". Trata-se de uma constatação. 

Como não lembrar do personagem de O Lobo da Estepe, de Herman Hesse, em seu permanente solilóquio: "O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?" 

Entendo, embora possa estar enganado, que Zygmunt Bauman e sua obra acerca da “vida líquida”, “modernidade líquida”, também não o conseguiu. Sua preocupação era descrever um fato, ou melhor, um fenômeno social, o processo civilizatório por nós vividos hoje.

Bauman disse: "a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante"; nas quais "as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades." 

Eu me pergunto, então, em relação a Bauman: não há um padrão, uma lei geral que origine esse processo? Não seria essa "vida precária" em "condições de incerteza constante" uma fase do processo evolucionário acerca do qual teorizou Darwin? 

Somos hoje, ainda, devedores, nesse aspecto de tentar entender o padrão oculto que rege os fenômenos, de Freud, Marx e Darwin, por assim dizer.

Mas não é o caso de abordar esse tópico por aqui. Aqui apenas registro o alívio em constatar que não estamos errados quando nos sentimos órfãos de uma cultura, uma “Paideia” que, desde os meados do século XX, vem sendo deixada, cada dia mais velozmente, e de forma mais radical, para trás. 

Que o digam, como pálido exemplo, a música, o teatro e a literatura contemporânea. 

É a banalização da cultura... 


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

DE FORMIGAS, CÉREBROS, CIDADES E SOFTWARES


* Honório de Medeiros


A tradutora de "Emergence (The Connected Lives of Ants, Brains, Cities and Software)" optou por traduzir o título desse livro de Steven Johnson para "Emergência (A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares).

Não faz muito sentido.

Primeiramente não usamos o termo "emergência", usualmente, no sentido de "algo que emerge". Usamos no sentido de "situação grave, perigosa, crítica". Para o sentido de "algo que emerge" utilizamos "surgimento".

Em segundo lugar o subtítulo "dinâmica de redes em formigas, cérebros, cidades e softwares" é muito pesado. Remete a algo do nicho específico de estudiosos da área de redes em tecnologia da informação. Afasta o leitor que um divulgador de idéias científicas pretende alcançar, aquele de formação mediana.

Talvez mais apropriado fosse a utilização apenas do subtítulo, a partir de uma tradução mais literal do original: "As vidas conectadas das formigas, cérebros, cidades e softwares". 

Tal preâmbulo pretende dizer que a capa da tradução brasileira do instigante livro de Steven Johnson (Jorge Zahar Editor, 2003) não nos permite uma pálida ideia, sequer, de quão é importante o assunto tratado pelo autor. Graduado em semiótica pela Brown University e em literatura inglesa pela Columbia University, Johnson é aclamado pela Newsweek, New York Magazine e Websight como um influente pensador do ciberespaço.

Tem Steven Pinker(1), autor de "Como a Mente Funciona", como seu leitor.

Do quê trata Johnson em seu livro? Em síntese: do surgimento de complexos sistemas adaptativos, tais como formigueiros, cérebros, cidades, softwares, e assim por diante. "O que une esses diferentes fenômenos é uma forma e um padrão recorrentes: uma rede de auto-organização, de agentes dessemelhantes que inadvertidamente criam uma ordem de nível mais alto", diz ele.

E mais complexo, digo eu.

Johnson chama esse tipo de "surgimento", no qual um organismo complexo pode se aparecer sem que haja um líder para planejar e dar ordens, sem hierarquia e comando, via a "mão invisível e fantasmagórica da auto-organização" de "comportamento emergente".

As raízes dessa densa teoria repousa no solo fértil do pensamento de Adam Smith, Charles Darwin, Alan Turing e, embora não citado pelo autor, Ilya Prigogine e sua teoria do caos e do atractor.  

E, claro, Richard Dawkins e seu antológico último capítulo de "O Gene Egoista", no qual cria a teoria do "meme" que, por si só, é um "meme", esse inesperado momento zero do surgimento de um novo sistema dentro de outro maior.

Leitura mais que recomendável.

Leia, também: http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/09/inato-ou-adquirido.html e http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2011/10/o-gene-egoista.html

(1) http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/01/o-egoismo-dos-genes.html

domingo, 22 de maio de 2016

UMA OBRA ESSENCIAL ACERCA DA ELITE POLÍTICA



* Honório de Medeiros


Tempos atrás recebi, pelo correio, comprado através da “Estante Virtual” (www.estantevirtual.com.br) – esse desaguadouro para o qual todos os bibliômanos brasileiros convergem, a obra “La Clase Política”, de Gaetano Mosca, com seleção e introdução de Norberto Bobbio, edição popular (livro de bolso, trocando em miúdos) do “Fondo de Cultura Económica” de 1984, México, após procura na qual se alternavam períodos de calmaria e outros de busca frenética.

Desconfio, claro, muito embora sejam reais as dificuldades de encontrar esse texto – tomo como prova o fato de somente agora conseguir encontrá-la nesse imenso sebo virtual mencionado acima, ao qual recorri em muitas oportunidades – que era para ser assim mesmo, ou seja, não me seria fácil adquirir, manusear, analisar e criticar metodicamente, em seus detalhes, a obra que Gaetano Mosca, já octogenário, classificava como “seu trabalho maior”, “seu testamento científico”, e à qual dedicara suas melhores energias durante quarenta anos, como nos lembra Norberto Bobbio em sua introdução.

Isso por que dou como certo que os livros têm vida, e muito mais que adquiri-los, somos, por eles, adquiridos, tal como nos leva a crer Carlos Ruiz Zafón em seu “A Sombra do Vento”, quando nos apresenta ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, localizado em misterioso lugar do centro histórico de Barcelona, fantasia, bem o creio, nascida de suas leituras do imenso Jorge Luis Borges e de seu maravilhoso conto “A Biblioteca de Babel”, em “Ficções”.

E, em tendo vida, e vontade própria, houve por bem “A Classe Política” brincar comigo de gato e rato, sem dúvida por considerar que meus arroubos juvenis criticando Marx, nos corredores da Faculdade de Direito, firmado em leituras ainda pouco digeridas, de Popper e Aron, não mereciam o suporte final de uma metódica construção teórica da qual resultava a hipótese – que assombrava meus pensamentos em seus contornos imprecisos – de que há uma elite dominante presente em todas as sociedades, sejam quais sejam elas, seja qual seja a época. É como nos diz a apresentação do livro, em sua contracapa: “Mosca considera que hay uma clase política presente em todas las sociedades. Gobiernos que parecen de mayoría están integrados por minorias militares, sacerdotales, oligarquias hereditárias y la aristocracia de la riqueza o la inteligencia”.

Percebo, portanto, que “A Classe Política” aguardou o momento certo: quando fosse possível, na medida de meus esforços, compreender que há uma relação entre sua idéia central, a Teoria da Evolução de Darwin - naquela vertente anatematizada da Sociobiologia – e a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que me permitisse não somente iniciar, para mim mesmo, a descrição do fenômeno jurídico em sua totalidade, seja como conjunto de normas jurídicas, seja como fato social, ela se tornaria, então, disponível.

Assim, resta ler, ler de novo, e reler o que escreveu, acerca da “elite política” esse italiano nascido em Palermo, em 1º de abril de 1858, falecido em Roma em 8 de novembro de 1941, aos oitenta e três anos. Foi professor de “História das Doutrinas Políticas” na Universidade de Roma e Docente Livre em Direito Constitucional na Universidade de Palermo. Ensinou, também, na Universidade de Turim, Deputado, Senador do Reino, Subsecretário das Colônias, e colaborador do Corriere della Sera e La Tribuna. Em 19 de dezembro de 1923 se retirou da vida política ativa e se dedicou exclusivamente a seus estudos, em particular no campo da história das doutrinas políticas.

Ler, com especial atenção, um capítulo denominado “Origens da doutrina da classe política e causas que obstaculizaram sua difusão”, no qual Mosca credita o pouco conhecimento da “teoria da elite política” à hegemonia do pensamento de Montesquieu e Rousseau. Hegemonia essa, ouso dizer, que serve como uma luva feita à mão na estratégia adaptativa de aquisição e manutenção do poder empreendida pelas elites dirigentes após a Revolução Francesa de 1789. E que culminou, no campo do Direito, na inserção, em Constituições Federais, de princípios jurídicos difusos que se prestam a serem interpretados de acordo com as conveniências de quem os interpreta.

Curioso é que muito embora eu, finalmente, tenha conseguido pôr minhas mãos nessa obra, ela ainda não me veio por inteiro. Trata-se, no caso, de uma seleção de textos feita por Bobbio. Tanto que, no final, há um capítulo no qual se apresenta o resumo dos capítulos omitidos. Nestes, há uma refutação das doutrinas do materialismo histórico e da concepção segundo a qual deveriam chegar ao governo os melhores, tema retomado por Karl Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, onde critica Karl Marx e Platão.

Ou seja, a busca continua.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

"NO REMANSO DA PIRACEMA", DE FRANÇOIS SILVESTRE

* Honório de Medeiros

Frederico de Deus Perdoe está incorporado, definitivamente, ao acervo que obras literárias marcantes constroem lentamente, ao sabor do tempo, dos lugares, e das circunstâncias, no imaginário das pessoas, por que é ele um observador engajado de si, dos outros, e das coisas, que vão ressurgindo – seja no viés alegre que a primeira leitura dos seus relatos exponha; seja no viés melancólico que surge quando mergulhamos em uma releitura – via articulados engastes frasísticos, esteticamente surpreendentes, expressos em sínteses vestidas de paradoxos estilísticos.

Não somente por isso; não somente pela forma. É ele, Frederico, o fio condutor enquanto narrador de uma estória na qual a humanidade se apresenta por inteiro em seus detalhes, pois em cada um deles está o todo: não importa quando, não importa como, não importa por que, se eu descrevo minha aldeia, ou minha saga, descrevo a terra inteira. Se eu disser um homem, digo toda a humanidade.

Frederico vive episódios que a crônica oral ou escrita do homem comum condenaria ao esquecimento. Entretanto não ocorre assim quando ele os conta. Se a morte de Dr. Antônio, vítima de ciúme atroz, se torna único pela forma como é contada, levando-nos à sofreguidão pela busca do desfecho; se não é diferente quanto à história da traição da qual é vítima o narrador quando, pela primeira vez surge, em seu bolso, muito dinheiro; se ocorre o mesmo na metamorfose de Nogueira, há muito mais além do relato que uma primeira leitura apresenta.

Basta que aprofundemos nossa leitura, por exemplo, nas memórias da tia do narrador. Quanta identidade entre a solidão à qual foi condenada a tia de Frederico pela época, lugar onde viveu, e a de tantos outros. Seria essa solidão algo desconhecido dos homens ao longo de suas histórias? Não. Ao contrário. A solidão de sua tia é a solidão de cada um de nós, fruto do destino comum. Somos todos, cada um e o todo, órfãos de um sentir que a razão não explica, mas o coração sente e o corpo padece. Abandonados à própria sorte, nossa vida não é saga, é fado, por mais que lutemos. Assim, a bela narração de Frederico cativa e magoa, aproxima e transtorna, alegra e entristece por que, em uma justa medida, expressa a dimensão da tragédia de um sentimento individual originado de uma herança comum. Através de Frederico somos mesquinhos e altruístas, santos e demônios, céu mirífico e lama infinda.

É preciso ler “No Remanso da Piracema”, a estória de Frederico de Deus Perdoe, seja para o deleite do sentir, seja para o deleite da razão. Mas é preciso ler.

terça-feira, 9 de junho de 2015

"A CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO", MÁRIO VARGAS LLOSA

 * Honório de Medeiros

Fecho o livro de Llosa, Mário Vargas Llosa, “A Civilização do Espetáculo”, cujo título foi calcado no “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, um dos mais originais pensadores do século, e me percebo confortável por ter encontrado um texto, da melhor qualidade, que desse corpo a essa sensação permanente de estranhamento e solidão vivenciada por mim e alguns poucos, originada pelo descompasso entre a “cultura” na qual fomos criados e a realidade que encontramos nos dias de hoje.

Não é, portanto, “saudosismo”, o que sentimos. Há, de fato, um progressivo, solerte e profundo processo de banalização dos valores fundantes da cultura, entendida esta como o pressuposto da construção do processo civilizatório. Cultura como a pensou, por exemplo, T. S. Elliot, citado por Llosa, em “Notas para uma definição de cultura”, de 1948, tão atual, posto que, por exemplo, lá para as tantas, expõe: “E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura.”

É bem verdade que em ensaios tais como “A civilização do espetáculo”, e “Breve discurso sobre a cultura”, Llosa não nos aponta as causas do surgimento desse epifenômeno muito embora aluda, de forma enfática, à “necessidade de satisfação das necessidades materiais e animada pelo espírito de lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade”, como a força que está por trás das rédeas que conduzem o processo de destruição da cultura tradicional. Não nos é oferecido, de sua lavra, uma macroteoria, que nos explique tudo.

Para Llosa, por exemplo, civilização do espetáculo é "a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal."

Como não lembrar do personagem de "O lobo da estepe", de Hesse, em seu permanente solilóquio: "O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?"

Entendo, embora possa estar enganado, que mesmo Zygmunt Bauman e sua obra acerca da “vida líquida”, “modernidade líquida”, na qual mergulhei durante algum tempo, também não o conseguiu. Sua preocupação é, também, descrever um fato, ou melhor, um epifenômeno social, o processo civilizatório por nós vividos hoje, um degrau acima, em termos de tempo, com alguns instrumentos intelectuais diferenciados, como tentado pelo excepcional Norbert Elias.

Para Bauman, "a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante"; nas quais "as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades."

Eu me pergunto, em relação a Bauman: não há um padrão, uma lei geral que origine esse processo? Não seria essa "vida precária" em "condições de incerteza constante" uma face avançada do processo evolucionário de Darwin?

Aliás, ainda hoje somos devedores, nesse aspecto, dos titãs do século XX, quais sejam Freud, Marx e Darwin, por assim dizer. Mas não é o caso de abordar esse tópico por aqui. O caso aqui é apenas registrar o alívio ao constatar que não estamos errados nós que sentimos que somos, cada vez mais, órfãos de uma cultura que desde os meados do século XX, vem sendo deixada, cada dia mais velozmente, e de forma mais radical, para trás.

Que o digam, como pálido exemplo, a música, o teatro e a literatura contemporânea.

É a banalização da cultura...

terça-feira, 2 de junho de 2015

"PADRE CÍCERO", DE LIRA NETO

* Honório de Medeiros


Concluída a leitura de “Padre Cícero”, do escritor cearense Lira Neto, cujo subtítulo é “Poder, Fé e Guerra no Sertão”, Companhia das Letras - “um tijolo” - como diz Aluísio Lacerda, passo a recomendá-lo vivamente aos amigos leitores do blog.

Lira Neto foi, para mim, uma grande e agradável surpresa. Nascido em Fortaleza, Ceará, 1963, já abocanhou o Jabuti em 2007, na categoria “melhor biografia” por “O Inimigo do Rei: Uma Biografia de José de Alencar”. Também escreveu “Maysa: Só Numa Multidão de Amores”, e “Castello: A Marcha para a Ditadura”. Não os li, mas que prometem, prometem. E, claro, escreveu a excepcional biografia de Getúlio Vargas, mas essa é outra história.

Duvido que os outros sejam tão bons quanto “Padre Cícero”. Tão bons quanto, assinalo.

Primeiro por que é muito bem escrito: a leitura é muito agradável, flui fácil, o texto é envolvente; segundo por que a reconstituição histórica, inclusive em termos fotográficos, é primorosa; e terceiro, mas, não, por fim, é impressionante a dimensão do personagem principal e daqueles “secundários”, como é o caso do Dr. Floro Bartolomeu, baiano, médico, garimpeiro, político, ferrabrás, a “alma negra” do Padre Cícero, ou mesmo da Beata Maria de Araújo, negra, analfabeta, protagonista do “milagre do Juazeiro”, que consistiu em cuspir hóstias transformadas em sangue, quando da Comunhão.

A Beata, que até palmatoradas tomou do Vigário do Crato, e foi exilada durante anos de sua Juazeiro natal por ordem da Igreja, também entrava em êxtase e apresentava os estigmas de Cristo, ao mesmo tempo em que se banhava de sangue para logo depois “acordar” limpa e sem qualquer marca no corpo – fenômenos constatados por padres e médicos.

Mas há outros personagens menores sumamente interessantes: o que dizer do Conde Adolphe Achille van den Brule, ex-camareiro do Papa Leão XIII, companheiro e sócio de Floro Bartolomeu, que se apaixonou por uma Juazeirense e, mesmo sendo casado na Europa e lá tendo deixado dois filhos, casou-se novamente no Cariri, nele fincou raízes e nunca mais voltou?

Além dos personagens, alguns fatos históricos relatados na obra chamam a atenção, como a tomada do poder central, em Fortaleza, pelos coronéis do Cariri tendo, à frente, Floro Bartolomeu e um exército de cangaceiros, jagunços, romeiros e devotos de Padre Cícero, todos pelo “padim” abençoados? Revolta que derrubou, na ponta do fuzil, o Governador Franco Rabelo, amado pelos fortalezenses, e, de permeio, matou o nosso Capitão José da Penha, que com ele se solidarizara?

O livro deixa algumas interrogações no ar: qual o passado de Floro Bartolomeu e o fim do Conde van den Brule? Por outro lado demonstra, à exaustão, como a incompetência da Igreja Oficial, externada, principalmente, dentre outros, por intermédio do Segundo Bispo do Ceará Dom Joaquim José Vieira. Preconceito, racismo, intransigência, autoritarismo, alheamento, burrice, tudo isso serviu como combustível de primeira grandeza para alimentar o incêndio fanático no qual se transformou Padre Cícero.

E o quê dizer de Padre Cícero? Nada. É preciso ler o livro. Entretanto é possível ter uma noção de sua sabedoria tomando conhecimento de seu catecismo ecológico, vazado lá pelos idos da virada do século XIX para o XX, e distribuído com os agricultores:

“Não toquem fogo no roçado nem na caatinga; não cacem mais e deixem os bichos viverem; não criem o boi nem o bode soltos; façam cercados e deixem o pasto descansar para se refazer; não plantem em serra acima, nem façam roçado em ladeira muito em pé: deixem o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza; façam uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva; represem os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta; plantem cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o Sertão todo seja uma mata só; aprendam a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar vocês a conviverem com a seca. Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer; mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o Sertão vai virar um deserto só.”

Enfim, uma grande obra. Para ser lida ou para ser estudada. Ou ambas, nada impede.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

"O ANDAR DO BÊBADO", LEONARD MLODINOW

* Honório de Medeiros
Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema:

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.”

“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.”

“Em sua estação vocês têm a possibilidade de conduzir a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.
“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos.
“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. E sabem que na linha B cinco homens lá trabalham fazendo o mesmo.”

“Qual a decisão de vocês?”

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar por que faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo submeter a linha na qual estavam menos homens à possibilidade do choque.

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês e um irmão, seu auxiliar”?

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder a questão. Um ou outro, muito pouco, tendia para um lado ou para o outro.

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo.

É nesse nicho que transita Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas”.

Mlodinow é doutor em física e ensina no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica.

Em “Subliminar” Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, apresenta hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo:

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão a qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo.
Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia.
(...)
Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.”

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais, etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões.

A Retórica é exatamente isso, enquanto técnica.

A pergunta seguinte: a partir de quê os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”:

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.”

“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.”

“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.”

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)”

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada...

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, os anarquistas e marxistas: a "visão de classe" contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.

Isso quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente".

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que crêem ser o Direito uma ciência...

domingo, 24 de maio de 2015

LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO NO ENSINO DA FILOSOFIA

* Honório de Medeiros

Trata-se dos anais do colóquio internacional acontecido em Coimbra, promovido pela Faculdade de Letras de sua Universidade, em 4 a 5 de dezembro de 2009, do qual participaram professores e estudiosos de Portugal, Espanha, França e Canadá.

Relaciono, abaixo, os temas debatidos:

"L'étude de la première opération de l'intelligence: au coeur de la formation intellectuelle au niveau pré-universitaire"; "Mejorar em pensamento crítico contribuye al desarrollo personal de los jóvenes?"; "Es posible avaluar la capacidade de pensar criticamente em la vida cotidiana?"; "Argumentação e cuidado de si"; "O ensino da lógica no ensino liceal e secundário"; "Lógica formal no ensino secundário: o que estudar?"; "A lógica e o lugar crítico da razão"; "Do primado de uma LOGICA UTENS sobre uma LOGICA DOCENS no ensino da filosofia na educação secundária"; "La place de la logique et de l'argumentation dans l'enseignement secondaire de philophie em France"; "O lugar da lógica e da argumentação: do ensino superior ao ensino secundário em Portugal".

Henrique Jales Ribeiro é Professor Associado com agregação do grupo de Filosofia da Faculdade de Letras de Coimbra, onde atualmente rege as unidades curriculares sobre lógica e argumentação. É coordenador do Grupo de Investigação "Ensino de lógica e argumentação" da Unidade "Linguagem, Interpretação e Filosofia" que pertence à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Recentemente publicou, em nome do grupo que coordena, "Rethoric and Argumentation in the Beginning of the XXIst Century" (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009). 

No prefácio ao livro o professor Henrique Jales Ribeiro observa o seguinte:

"A lógica e a argumentação são áreas filosóficas fundamentais e transversais em relação ao conhecimento humano de maneira geral (e não apenas às chamadas 'ciências sociais e humans'), e absolutamente nucleares para a formação de um espirito crítico, dialógico e construtivo dos nossos jovens (e quiça filhos e/ou familiares) e futuros concidadão. São-nos de uma forma incomparavelmente bem mais marcante do que aquelas com que a matemática e as disciplinas tecnológicas, para as quais está virada hoje em dia a atenção da media e de alguns sectores de relevo na nossa sociedade, contribuem para o efeito."

O livro é de uma densidade à toda prova. Deu-me muita satisfação intelectual lê-lo.

Recomendo-o vivamente.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

BERTRAND RUSSEL E A CAUSA DA EXISTÊNCIA DO PODER

Bertrand Russel

* Honório de Medeiros

Em “Power: A New Social Analysis”, Sir Bertrand Russel expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da idéia de Poder[1]. Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político[2], mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.

A causa da existência do Poder é a ânsia infinita de glória[3], inerente a todos os seres humanos. Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder. Infinita posto que o desejo humano não conhece limites. Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual. Como isso não é possível, surgem a instabilidade e a violência.

Essa ânsia de glória, cuja manifestação objetiva é o exercício do Poder, pode ser encontrada em qualquer ser humano: explicitamente nos guerreiros, santos, ou políticos, e implicitamente nos seus seguidores: Xerxes não precisava de alimentos, roupas ou mulheres quando invadiu Atenas; Newton não precisava lutar pela sobrevivência quando empreendeu escrever seus “Principia”; São Francisco de Assis e Santo Inácio de Loyola não precisavam criar ordens religiosas para difundir a palavra de Cristo. Somente o amor ao Poder explicaria realizações tão singulares.

Portanto, para Russel, a força propulsora das transformações sociais se resume no amor ao Poder glorioso, que é inerente a qualquer ser humano.

Cabe agora indagar: o que leva o homem a ansiar por glória, e em ansiando, lutar pelo Poder, posto que este é o instrumento, segundo se depreende da leitura de Russel, por meio do qual se obtém aquela?

[1] Poder, segundo Bobbio, em Teoria Geral da Política, no início do capítulo acerca de Política e Direito, diz que Poder deve ser entendido como a capacidade de influenciar, condicionar, determinar a conduta de alguém.

[2] Bobbio, em Teoria Geral da Política, abre o capítulo alusivo a Política e Direito expondo que o termo “Política” diz respeito às ações por meio das quais se conquista, mantém e exerce o Poder último ou soberano, tal e qual o dos governantes sobre os governados.

[3] Em Darwin a obtenção da“glória” é um dos meios por intermédio dos quais o homem amplia as possibilidades de sobrevivência dos seus gens.

terça-feira, 21 de abril de 2015

"COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA", DE ROMAN KRZNARIC

* Honório de Medeiros
Ao longo de minha vida enquanto professor encontrei muitos casos de alunos que claramente não queriam se bacharelar em Direito. Estavam ali, no curso, cumprindo uma trajetória que não era de seu agrado. Prefeririam se dedicar à música, à história, a escrever, à arquitetura, jornalismo...

Quando eu percebia procurava conversar. Às vezes, em alguns casos, sequer o aluno tinha percebido que sua praia não era aquela. Seduzido por ideais que lhe eram impostos pela sociedade, como status e dinheiro, ou, pior, por ideais que seus pais cultivavam, ali ficava ele, nas salas de aula, a passar horas e horas tomando contato direto com uma realidade, no seu caso, no mínimo entediante.

Mesmo aqueles que sabiam exatamente o que queriam como fazer um concurso, se tranquilizar quanto ao futuro, e, então, se dedicar a alguma atividade que lhe desse prazer, como literatura, era fácil perceber uma dúvida latente e perturbadora a pairar sobre nossos diálogos enquanto conversávamos: “será que vale a pena todo esse tempo perdido? A vida é tão curta...”

Pois bem, se é assim, ou mesmo que seja apenas para lhe assegurar a certeza de sua escolha, na medida em que isso é possível, ou por pura curiosidade, vale a pena ler esse livro que eu vou lhes indicar.

Trata-se de “COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA”, de Roman Krznaric, editora Objetiva.

Desde já advirto: não se trata propriamente de livro de autoajuda. O livro é sério, bem escrito, bem fundamentado, e faz parte de uma coleção “tocada” pelo filósofo Alain de Botton, autor de “Religião para Ateus” e “Como Proust pode Mudar sua Vida”. Eu mesmo somente me interessei quando li uma citação de Richard Sennet, pensador de meu agrado, no livro.

Quanto a Roman, é membro fundador da The School of Life, e foi nomeado pelo jornal Observer um dos mais importantes pensadores sobre estilo de vida do Reino Unido, além de ser conselheiro de organizações tais quais a Oxfam e Nações Unidas.

Então, se for o caso, mãos à obra. Ah! Última observação: não estou ganhando dinheiro com essa indicação! Mas estou ganhando capital simbólico...

quarta-feira, 15 de abril de 2015

"ANTÔNIO SILVINO", DE SÉRGIO DANTAS


Honório de Medeiros

Em narrativa linear, atenta à lógica dos fatos históricos, Sérgio Augusto de Souza Dantas nos reapresenta a um Antônio Silvino cru, recortado do contexto mítico e inserido em sua dimensão humana, sem que restasse perdido tudo quanto o tornou um dos mais interessantes personagens da trindade básica que forjou a alma sertaneja – o cangaço, o misticismo, o coronelismo.

Louve-se a felicidade na escolha do “nome” de cada capítulo bem como o excerto que o acompanha, próprio para chamar a atenção do comprador desatento, em uma homenagem ao estilo jornalístico de outrora, e a indicar um texto enxuto, leve, de parágrafos curtos e bem encadeados. Chamam a atenção episódios trazidos a lume que por si só têm dimensão histórica, como a convivência entre Antônio Silvino e Gregório Bezerra, lendário líder comunista pernambucano, sua entrevista com Graciliano Ramos, e o assalto à Usina Santa Filonila na qual morreu Feliciana na flor da idade – crime do qual o cangaceiro jamais deixou de se arrepender. Aliás, qual teria sido o desfecho do embate entre Antônio dos Santos Dias e José Tavares de Melo, este, genro, aquele, pai de Teresa Tavares de Melo, pivô da questão? Qual teria sido o fim de cada um deles?

O Antônio Silvino que emerge do ótimo texto de Sérgio Dantas é um personagem emblemático: é o retrato nítido de uma saga que nos permite identificar e compreender os nexos causais que originam certa circunstância histórica – o período do cangaço – e até mesmo ir além, na medida em que também permite identificar o viés comum a entrelaçá-los, ou seja, a questão do Poder. Basta colocar esses retratos sobre a mesa e examiná-los com olhar crítico: Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião; Coronel Zé Pereira, Coronel Isaías Arruda, Coronel Floro Bartolomeu; Pe. Cícero, Beato Zé Lourenço, Antônio Conselheiro... Tomando distância de qualquer tentativa de apreender o fenômeno a partir de uma explicação oriunda exclusivamente de fatos alusivos à posse da terra.

É possível conjecturar se Sérgio Dantas vai aventurar-se em novos resgates ou cuidará de desbravar outras fronteiras. Sua obra tem sido, até agora, a fronteira entre um ciclo e outro no que diz respeito à literatura do cangaço. Esse ciclo por ele estudado até o momento está chegando ao fim. Já não é mais possível, até onde sabemos, ressalvada a possibilidade de documentos desconhecidos surgirem inesperadamente, prosseguir com a literatura elaborada a partir de relatos, fotos, testemunhos ou escritos, ou seja, fontes primárias. São poucos os sobreviventes e deles já se extraiu mais do que tudo. Os papéis estão virando pó, vítimas da ação inclemente do tempo e da incúria das nossas elites. Um outro ciclo está surgindo: a interpretação de todos esses dados, ou seja, uma literatura de tese, algo timidamente iniciado por Frederico Pernambucano de Mello com “Guerreiros do Sol”, através da criação do conceito de “escudo ético”.

A não ser que – e talento não lhe falta – resolva mergulhar com sua característica obstinação no jornalismo literário brindando-nos com alguma pesquisa onde sobrem indícios, mas, faltem provas – como de fato acontece nessa espécie literária - e, no entanto, seja possível povoar um texto com interrogações perturbadoras tais quais, por exemplo, as razões do estranho silêncio do Juiz e do Promotor de Mossoró em relação aos fatos que lá aconteceram em junho de 1927.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

"A ELEGÂNCIA DO OURIÇO", DE MURIEL BARBERY

Insanidade

De como aquilo que você vê pode não ser o que você pensa

* Honório de Medeiros

Divirti-me muito lendo “A Elegância do Ouriço”, um romance de Muriel Barbery. Recomendo.

Vou, aqui, editar um trecho do livro que fala acerca da fenomenologia de Husserl. “O quê”, vocês devem ter se perguntado. "Fenomenologia? Em um romance?”

É. Em um romance. E esse trecho prova, para mim, por a + b, que somente a literatura salva a filosofia da chatice dos filósofos. Leiam:

“Então, a segunda pergunta: que conhecemos do mundo? A essa pergunta os idealistas como Kant respondem. Que respondem? Respondem: pouca coisa.
(...)
Conhecemos do mundo o que nossa consciência pode dizer dele porque isso aparece assim – e não mais.
Vejamos um exemplo, ao acaso, um simpático gato chamado Leon. (...) E pergunto a vocês: como podem ter certeza de que se trata de verdade de um gato, e até mesmo saber que é um gato? (...) Mas a resposta idealista consiste em demonstrar a impossibilidade de saber se o que percebemos e concebemos do gato, se o que aparece como gato na nossa consciência é de fato conforme ao que é o gato em sua intimidade profunda.
(...)
Eis o idealismo kantiano. Só conhecemos do mundo a IDEIA que dele forma a nossa consciência.”

Agora vem a parte que eu considero hilariante:

“Mas existe uma teoria mais deprimente que essa (...) Existe o idealismo de Edmund Husserl (...)
Nessa última teoria só existe a apreensão do gato. E o gato? Pois é, o dispensamos. Nenhuma necessidade do gato. Para fazer o quê, com ele? Que gato? (...) O mundo é uma realidade inacessível que seria inútil tentar conhecer. Que conhecemos do mundo? Nada. Como todo conhecimento é apenas a autoexploração da consciência reflexiva por si mesma, pode-se, portanto, mandar o mundo para os quintos dos infernos.
É isso a fenomenologia: a CIÊNCIA DO QUE APARECE À CONSCIÊNCIA. Como se passa o dia de um fenomenologista? Ele se levanta, tem consciência de ensaboar no chuveiro um corpo cuja existência é sem fundamento, de engolir o pão com manteiga inexistente, de enfiar roupas que são como parênteses vazios, ir para o escritório e pegar um gato.
Pouco se lhe dá que esse gato exista ou não exista, e o que ele seja na própria essência. O que é indecidível não lhe interessa. Em compensação, é inegável que na sua consciência aparece um gato, e é esse aparecer que preocupa o nosso homem.”

Aí está. Por isso digo para meus alunos que o idealismo radical é a loucura da razão. Fica mais fácil para eles entenderem o grande mistificador que foi Platão. Entender que não existe algo Justo-Em-Si-Mesmo. Entender o uso manipulativo, retórico, das teorias filosóficas. E entender por qual razão os professores de Direito, com algumas exceções, são como os gatos existencialistas...

* Arte de Claude Verlinde

quarta-feira, 1 de abril de 2015

"O JULGAMENTO DE SÓCRATES", POR I. F. STONE

Stone

* Honório de Medeiros

I. F. Stone, “Izzy”, tinha 45 anos quando deu o passo mais arriscado de sua vida, conta-nos Sérgio Augusto em “Uma pedra no caminhos dos poderosos”, apresentação da obra “O Julgamento de Sócrates”, escrita aos 77 anos pelo ícone do jornalismo, depois de aposentado e após uma jornada intelectual que o levou, na investigação acerca da liberdade de pensamento, a pesquisar as duas grandes revoluções inglesas do século XVII, a Reforma Protestante, os pensadores ousados da Idade Média, a redescoberta de Aristóteles, a Atenas da Antiguidade, e aprender o Grego Antigo.

Em 1952, Stone viu-se desempregado depois de ter granjeado fama nos Estados Unidos e Europa de "mucraking", jornalista especializado em revolver casos de corrupção e abuso de autoridade trabalhando às margens das redações e desconfiando que qualquer governo tudo faz para esconder verdades incômodas, após trabalhar em vários jornais do eixo Nova Jersey – Filadélfia – Nova York, inclusive o Daily Compass e o New York Post.

Com a indenização do Daily Compass criou uma "newsletter" sem nada semelhante na imprensa do mundo. Conta-nos Sérgio Augusto: “Dispondo da lista de assinantes de três publicações para as quais havia trabalhado, assegurou de saída 5.300 leitores. O primeiro número do I. F. Stone’s "Weekly" chegou aos seus assinantes no dia 17 de janeiro de 1953. Pouco antes de virar quinzenal, em 1968, o alternativo mais bem informado do planeta ultrapassou a barreira dos 40 mil leitores”.

Qual não seria a influência de Izzy hoje, em tempos de aldeia global!

“Os primeiros anos foram solitários”, Stone recordaria na última edição do jornal, em dezembro de 1971. “Meus leitores me sustentaram” – dentre eles Bertrand Russel, Albert Einstein e Eleanor Roosevelt. O I. F. Stone’s "Weekly" fechou porque Izzy não tinha mais forças, vitimado por uma angina de peito. Seu artigo de despedida foi comovente: “Tenho podido viver de acordo com minhas convicções. Politicamente, acredito que não pode existir uma sociedade decente sem liberdade de crítica: a grande tarefa do nosso tempo é uma síntese de socialismo e liberdade. Filosoficamente, creio que a vida do homem se reduz, em última análise, a uma fé – cujos fundamentos estão além de qualquer prova – e que esta fé é uma questão estética, um sentimento de harmonia e beleza. Acho que todo homem é o verdadeiro Pigmalião de si próprio. E em recriando a si próprio, bem ou mal ele recria a raça humana e o futuro”. 

“O Julgamento de Sócrates” tornou-se uma obra de referência, apesar do nariz torcido de alguns membros da comunidade acadêmica. Stone fez com Sócrates o que Karl Raymund Popper fez com Platão em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”: demoliu sua imagem oficial. Ao longo das páginas do seu ensaio esmaece o Sócrates “santificado” por Platão e Xenofonte a partir de um julgamento que o condenou à morte, e qual aquelas pinturas ocultas pela poeira do tempo, surge, aos poucos, um legado: todos seus seguidores concordavam em uma questão - tratavam a democracia com condescendência ou desprezo. 

Como disse o próprio Stone: “Nas Memoráveis, Sócrates afirma que seu princípio básico de governo é que ‘cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer’. O que exigia não era o consentimento dos governados, mas sua submissão. Trata-se, certamente, de um princípio autoritário, rejeitado pela maioria dos gregos, e em particular pelos atenienses”.

Em um governo assim, não há espaço para a liberdade de expressão. Esta questão é o fio condutor da obra: Sócrates não quis calcar sua defesa no conceito de liberdade de expressão, tão caro aos gregos do seu tempo – está em Ésquilo, Sófocles, e, principalmente em Eurípedes, para não comprometer seu visceral e antigo desdém com a democracia, escolhendo conscientemente a imortalidade que seu martírio iria originar.

Stone: “Xenofonte afirma que Sócrates queria ser condenado, e fez o que pode no sentido de hostilizar o júri”.

Quando faleceu, em junho de 1989, I. F. Stone, “Izzy”, era uma lenda viva. Mesmo assim continuava sarcástico: “Não consigo me acostumar com o lado dos vencedores”. Seu radicalismo, seu espírito outsider ainda inspiram muitos. Sua postura firme contra a intolerância o torna um ícone para os libertários de todos os credos. E sua história de vida o credencia a tornar-se um exemplo a ser usado pelos que ainda acreditam na espécie humana.

* Republicação.

quarta-feira, 25 de março de 2015

"LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE", POR SÉRGIO DANTAS

* Honório de Medeiros

“Lampião e o Rio Grande do Norte”, cujo subtítulo é “A história da grande jornada”, de Sérgio Augusto de Souza Dantas, Gráfica Editora, é uma obra seminal. Não é possível mais, a partir do lançamento, tratar do Cangaço, seja no Rio Grande do Norte, seja de uma forma geral, sem uma consulta à obra.

Mossoró é assunto importante, no livro. Não pode ser diferente. Mesmo tratando da incursão do bando de Lampião ao Rio Grande do Norte, desde sua entrada pela Tromba do Elefante, margeando Luis Gomes, até sua saída, no rumo de Limoeiro do Norte, Ceará, a ida a Mossoró é onipresente, por que o quixó preparado por Massilon e o Cel. Izaias Arruda, de Aurora, Ceará, no qual Virgolino – assim mesmo, com “o”, como nos previne o Autor – é parte fundamental do trabalho.

As informações colhidas durante quatro anos de pesquisa, perambulações, visitas, entrevistas, cruzamento de informações, consulta à literatura hoje vastíssima sobre o cangaço estabelece um contraponto interessante com o estilo do Autor. Para coroar, um valioso acervo fotográfico é colocado à disposição de quem adquiriu o livro.

Em relação a Massilon, acerca do qual mantenho permanente interesse, Sérgio Dantas, jovem juiz norteriograndense agrega informações valiosíssimas, dentre elas o “raid” que esse personagem singular empreendeu nos costados do Jaguaribe e Cariri logo após o episódio de Mossoró. Isso significa dizer que a lenda segundo a qual Massilon, mesmo antes da célebre foto de Limoeiro, Ceará, já se separara de Lampião e teria ido embora para o Norte, não é verdadeira. Alguns, inclusive, diziam que o cangaceiro que aparece na foto tirada em Limoeiro não seria, na realidade, Massilon.

Detalhada, a história da marcha espanta pela riqueza de detalhes. Assim, ficamos sabendo da passagem de Lampião por todo o território do Rio Grande do Norte cidade por cidade, povoado por povoado, sítio por sítio, fazenda por fazenda. Os acontecidos nas cercanias de Martins e Umarizal, antiga “Gavião”, são relatados com precisão. E tudo quanto aconteceu em Apodi, antes da chegada de Lampião, protagonizado por Massilon, recebe tratamento de pesquisador sério e interessado.

A descrição geográfica e sociológica dos lugares pelos quais passou o bando de cangaceiros merece respeito. Através dela é possível perceber o dia-a-dia daquelas comunidades existentes no início do século XX. E a descrição dos mal-tratos, arruaças, bebedeiras, torturas físicas e psicológicas comove e revela a sensibilidade do Autor.

Agora resta esperar que a obra semeie críticas e informações outras, alguma correção de rumo – se for o caso – para retornar ainda mais rica para o acervo dos historiadores e sociólogos do Brasil. É assim que ocorre quando uma obra deixa de pertencer ao Autor, por sua importância, e passa a fazer parte do referencial bibliográfico ao qual pertence.

* Republicação

quarta-feira, 18 de março de 2015

"É PRECISO DUVIDAR DE TUDO", KIERKEGAARD

Kierkegaard

* Honório de Medeiros

“Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio”.

Assim começa “Johannes Climacus”, ou “É preciso duvidar de tudo”, delicioso texto do escritor – meio esquecido – Soren Kierkegaard, nascido em 1813, e morto quarenta e dois anos depois, em 1855, um típico excêntrico pensador do século XIX.

O pequeno livro que tenho em mãos é da Martins Fontes, Coleção “Breves Encontros”, que vem publicando opúsculos de autores variados, como Schopenhauer, Cícero, Sêneca, Schelle, dentre outros menos conhecidos, como o Abade Dinouart e Tullia D’Aragona.

O prefácio e notas, cuidadoso no que diz respeito ao levantamento da história da produção do texto e a um leve perfil do autor, está assinado por Jacques Lafarge – me é desconhecido – e a tradução por Sílvia Saviano Sampaio professora da PUC/SP, doutora em filosofia pela USP com a tese “A subjetividade existencial em Kierkegaard”, e membro da AMPOF – Associação Nacional de Pós-graduandos em Filosofia.

“É preciso duvidar de tudo” é dividido em três partes: "Introdução", "Pars Prima" e "Pars Secunda". A parte primeira contém três capítulos e o primeiro é uma afirmação: “A filosofia moderna começa pela dúvida”. A segunda parte, contendo somente um capítulo, Kierkegaard lhe nomina interrogando: “O que é duvidar?”

A mim, particularmente, interessou a seguinte proposição: “a filosofia começa pela dúvida”, que é o Capítulo II, da "Pars Prima". A conclusão de Kierkegaard, falando por intermédio de Climacus, é de que essa proposição se situava fora da filosofia e a ela era uma preparação. Perfeito.

No próprio texto Kierkegaard alude ao fato de os gregos ensinarem, aludindo a Platão, no "Teeteto", que a filosofia começa com o espanto. Eu traduziria espanto por perplexidade, mas talvez haja diferenças sutis entre os dois termos que não valem a pena serem esmiuçadas.

Muito mais recentemente Karl Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começasse por problemas. Esses problemas surgiriam a partir do conhecimento antigo, ou seja, da expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem, inclusive em relação a nós mesmos. Ao nos depararmos com algo que o nosso conhecimento antigo não explica, há uma fragmentação nas nossas expectativas e surge, então, o problema a ser solucionado. Elaboramos uma nova teoria que explique esse "algo" e, assim, surge o conhecimento novo.

Bachelard diz tudo isso de forma profunda e elegante: "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão".

Observe-se que tal teoria pressupõe a existência do conhecimento inato adquirido geneticamente, no que é referendada pela teoria da seleção natural de Darwin. Pressupõe, ainda, dando-se razão a Kant, que o Conhecimento, em última instância, antecede a Realidade.

Em certo sentido estão certos não somente os gregos, como Kiekergaard, Bachelard e Popper. Resta saber se, no início, há o espanto com a dúvida, ou a dúvida com o espanto.

Cabe também observar que Johannes Climacus é um típico caso de personagem acometido da Síndrome de Bartleby, algo que, com certeza, interessaria bastante à Enrique Vila-Matas, referência contemporânea do romance-ensaio.

 * Republicação

terça-feira, 10 de março de 2015

"DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA", LA BOÉTIE

La Boétie


* Honório de Medeiros


Leiam isso: “Aqueles a quem o povo deu o poder deveriam ser mais suportáveis; e sê-lo-iam, a meu ver, se, desde o momento em se vêem colocados em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza, não decidissem ocupa-lo para todo o sempre. O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu. Ora, tão depressa tomam essa decisão, por estranho que pareçam, ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos; para conservarem a nova tirania, não acham melhor meio que aumentar a servidão, afastando tanto dos súditos a idéia de liberdade que estes, tendo embora a memória fresca, começam a esquecer-se dela”.

E isso: “Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, (...) as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engôdos da servidão, o preço da liberdade que perdiam, as ferramentas da tirania”.

Parece recente? Não o é. Trata-se, tanto um quanto o outro, de excertos da excepcional obra “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”, de La Boétie, escrita entre 1546-1548. Esse francês, nascido em 1º de novembro de 1530, no condado de Périgord, França, e morto em 1563, perto de Bordéus, aos trinta e três anos, foi o maior dos amigos de Montaigne, que lhe era mais novo dois anos. Dessa amizade o próprio Montaigne deixou registro emocionante: “Vindo a durar tão pouco e tendo começado tão tarde, pois éramos ambos homens feitos e ele mais velho do que eu alguns anos, não tínhamos tempo a perder, nem tivemos de nos ater aos modelos de amizade moles e regulares que necessitam de precauções e conversações prévias”.

Quanto à genialidade de "La Boétie" é bastante o depoimento do seu tradutor, o português Manuel João Gomes na edição Antígona, de Lisboa, Portugal, 1997: “Para La Boétie é ilegítimo o poder que um só homem exerce sobre os outros; (...) "O Discurso afirma a liberdade e a igualdade absolutas de todos os homens; Indo mais longe do que Maquiavel (o primeiro que reconheceu o poder efetivo das massas), La Boétie incita os povos a desobedecerem aos príncipes (governantes) e, com uma clareza até então nunca vista, põe em evidência a força da opinião pública”. Tudo isso aos dezoito anos de idade!

Ler "La Boétie" é, principalmente, perceber quão antiga permanece a luta do homem para não ser completamente subjugado pelo Estado. Ela começou na longínqua Idade Antiga, quando os maravilhosos gregos inventaram a Democracia. Prossegue até hoje, apesar dos percalços. Mas está cada dia mais difícil: no Oriente Médio disputa-se o poder à custa do sangue de inocentes. Israel, secundado pelos Estados Unidos e sua doutrina da “guerra preventiva”, mata, como os nazistas faziam aos serem atacados pela resistência, a dez por um. E assim vamos marchando rumo à barbárie, inexoravelmente, e à tirania, sob o pretexto de combater o terrorismo, como quem está com um encontro marcado com o final de tudo.

* Republicação