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domingo, 2 de junho de 2013

CRIE JUÍZO, MULHER!


                                                  - Vai dar certo. Mas só três vezes.
                                   - Três?
                                   - Não se lembra? Eu lhe disse. Mais que três fica perigoso. Uma já é perigoso. Três é bom, se tudo der certo: a primeira para experimentar; a segunda para se saciar; a terceira para se despedir.
                                   - Você é muito esquisito.
                                   - Vai ver que é por isso que você me quer. Ou será que é porque eu sou inteligente, lindo, elegante, charmoso, cheiroso?
                                   - Bicho besta...
                                   - Então, topa? E feche essa porta, mulher, você sabe como são as pessoas neste escritório, basta um nada para fazerem um tudo.
                                   - Topo. E vou logo lhe dizendo: topo mundo pensa que você me come, que come a estagiária.
                                   - Isso aí não tem como evitar, mas tem como manipular.
                                   - Lá vem você.
                                   - Não esqueça tudo que conversamos, viu? Depois das três é cada qual pra seu canto, somente fica a amizade...
                                   - Não precisa ficar dizendo isso o tempo todo.
                                   - É só para deixar bem claro. Você sabe, eu não sou muito de acreditar que uma menina nova e bonita como você queira ir pra cama comigo, um cinqüentão, só porque tem tesão em mim. Se fosse mais velha, eu não dizia nada, mas é muito nova. Será que é froidiano, seu caso?
                                   - Que porra é isso?
                                   - Deixa pra lá.
                                   (...)
                                   - Por que você não atende minhas ligações?
                                   - Não estou atendendo?
                                    - Sim, mas faz muito tempo que estou tentando. E eu que não queria acreditar que você só ia sair mesmo três vezes comigo...
                                   - Eu lhe disse! A gente conversou, tá lembrada?
                                   - Você pode ter comido muitas mulheres, mas não entende nada de coração feminino. Não se mancou que eu estava mesmo afim de você?
                                   - Eu lhe disse que não acreditava nessa história.
                                   - Você não queria acreditar, só queria me comer. Quer dizer que não quer mesmo mais saber de mim?
                                   - Eu lhe expliquei mil vezes. Não dá certo. Eu não vou acabar meu casamento e arranjar inimizade com meus filhos por conta de um caso. Eu lhe disse: não é bom para mim nem para você.
                                   - O que é bom para mim só eu sei. Egoísta!
                                   - Não é isso, eu bem que não queria essa história, você que insistiu, insistiu...
                                   - Quer dizer que não tem jeito?
                                   - Você sabe que não.
                                   - Isso não vai ficar assim!
                                   (...)
                                   - O que é que você tem?
                                   - Nada não, só estou meio chateado, meu amor.
                                   - Com quê?
                                   - A liberdade que uma estagiária lá no escritório vem tomando comigo.
                                   - Como é que é? E porque não botam ela pra fora?
                                   - Ela é muito competente e é quem faz o trabalho todo do sócio novo. Fica chato eu persegui-la. E perigoso. Vão pensar que eu quis dar em cima dela e ela não me deu bola. Você sabe como é escritório que tem estagiárias bonitas. Semana passada o pessoal estava falando em câncer de pele e eu disse que tinha muito medo desse negócio, e que tinha um sinal do tamanho de um feijão do lado esquerdo do pênis, vivia mostrando à dermatologista. Sabe o que ela me disse depois, no corredor?
                                   - O quê?
                                   - Então, doutor, muita mulher já viu esse feijão, não foi?
                                   - E você?
                                   - Dei-lhe um carão grande. Não gostei da intimidade. Por azar algumas colegas dela escutaram. E não gostei de como ela me olhou...
                                   - Deixe isso prá lá. Mas cuidado, eu estou de olho...
                                   - Não brinque com isso não.
                                   (...)                            
                                   - Pois é, você pode até não acreditar no que eu estou dizendo, mas eu tive mesmo um caso com seu marido e tudo só acabou porque ele me enganou, prometeu que ia lhe deixar e ia viver comigo, e o tempo foi passando e nada.
                                   - Olhe, não acredito em nada disso que você está me dizendo, e até em respeito a ele eu vou desligar. Você procure tratamento especializado, seu problema é psicológico, talvez psiquiátrico.
                                   - Vc está dizendo que eu sou doida, é? Pois eu vou lhe provar, p-o-pro-provar, que não estou mentindo. Você conhece bem os atributos do seu marido, não é? Pois eu vou lhe provar: ele tem um sinal, mais ou menos do tamanho de um feijão, do lado do pau. Agora me diga, tive ou não um caso com ele?
                                   - Desista, querida. Ele me disse, um dia desses, duas coisas: que estava muito chateado com uma estagiária que estava se botando para cima dele, faltando com o respeito, e que descobrira isso quando contou, no escritório, que tinha muito medo de sinais, de câncer de pele, e que tinha um do tamanho de um caroço de feijão perto do pau, como diz você. Eu chequei a história. Me disseram que o sócio dele e a estagiária estavam na hora. Confirmei tudo. Você saiu do escritório porque é oferecida demais. Vive se oferecendo pra tudo quanto é homem que tenha dinheiro. Vá com Deus e mude de vida.
                                   - E você acreditou nesse teatro? Não percebe que ele planejou tudo? Tem nada não: nada melhor que um dia após o outro com uma noite pelo meio. Acorde logo. Se demorar, você vai se lascar.
                                   (...)
                                   - Sabe de uma coisa?
                                   - O quê?
                                   - Eu acho que você comeu a estagiária.
                                   - Você é doida, é?
                                   - Intuição, meu filho, intuição! Mas como eu não posso provar nada...
                                   - Se fosse verdade, o que você faria?
                                   - Ah! Essa vai ser sua angústia. Agora eu lhe digo: você iria chorar lágrimas muito amargas...
                                   - Crie juízo, mulher!

domingo, 15 de abril de 2012

HISTÓRIA DA VIDA REAL



image-at-its-best.com


Por Honório de Medeiros


Nas Seleções do Reader Digest que meu pai colecionava na década de 40 eu lia, entre menino e adolescente, uma seção cujo título era “Histórias da Vida Real”.

Não me lembro mais de qualquer das “histórias”, exceto uma: durante a Segunda Guerra Mundial, as moças americanas eram incentivadas a participarem do esforço comum americano escrevendo para seus compatriotas combatentes mundo afora. Um deles começou a se corresponder com uma garota do interior de um daqueles estados americanos do Oeste. Passaram-se os anos e as cartas, que começaram cordiais mas distantes, assumiram um teor cada vez íntimo, com troca de confidências, sonhos, planos e tudo quanto diz respeito a, finalmente, uma correspondência amorosa.

                        Tudo correu perfeitamente bem exceto pela recusa obstinada da moça em enviar, para seu correspondente, uma fotografia e o nome da cidadezinha na qual morava. Todas suas cartas eram enviadas da Estação Central de Trem da capital do seu Estado. Ele argumentava dizendo que gostaria de ter, perto de si, não apenas suas cartas e tudo quanto de bom elas lhe traziam, mas, também, uma imagem sua para a qual pudesse olhar naqueles momentos terríveis pelo qual estava passando. Ela lhe respondia, justificando-se, que o amor, entre eles, começara pelo espírito, e assim deveria continuar até o momento em que, finalmente, pudessem se encontrar frente a frente, e uma fotografia poderia lhe dar uma falsa impressão que a realidade viria desmascarar.

                        Finalmente a guerra terminou. Ele lhe escreveu para combinar o encontro e ela lhe pediu que estivesse no dia e hora marcados, na Estação Central de Trem da capital do seu Estado, quando seria reconhecida por trazer, nas mãos, um ramo de rosas vermelhas. Esta seria a única forma de reconhecê-la que ele dispunha: não sabia como era ela, em qual cidade vivia, e, mesmo, se seu nome era real ou fictício.

                        Meio-dia em ponto, conforme combinado. O trem para. Ele salta e olha, ansioso, para todos os lados. Há poucos transeuntes na Estação. Ninguém que aparente ser uma moça desacompanhada portando um ramo de rosas vermelhas nas mãos. Começa sua frustração. Será que foi enganado ao longo de todos os anos? Será que tudo quanto ela lhe dizia por carta, o amor que nascera, os planos construídos, eram mentiras? Parado, a maleta aos pés, a expressão ansiosa, ele olhava em todas as direções tentando encontrar uma explicação para um possível atraso, como um acontecimento de última hora, um obstáculo inesperado...

                        O tempo passou. Uma hora depois, convicto que tinha sido iludido, ele começou a se dirigir para o guichê de vendas de passagens. Pretendia ir embora o mais rápido possível. Quando se aproximou do guichê viu, sentada, próxima ao local, uma senhora de aproximadamente sessenta anos trazendo, em suas mãos, um buquê de flores vermelhas. “Então é isso?”, se perguntou. “Ela é esta senhora, e por essa razão não teve coragem de me enviar uma fotografia sua?”
Parado, perplexo, pensou em se esconder – não era possível aceitar que aquela senhora fosse sua amada! “E agora?” disse a si mesmo, “deveria honrar o amor espiritual com o qual se comprometera e que independia de idade ou poderia justificar sua fuga alegando ter sido manipulado?”

                        Não resistiu. Aproximou-se. “Senhora, seu nome é Lucy?”, indagou usando o nome usado por ela nas cartas.

 “Não, ela me pediu para ficar aqui algum tempo, com essas rosas na mão, aguardando que alguém viesse a sua procura; ela está ali”, e apontou. Um pouco além, vindo em sua direção, com outro buquê de rosas vermelhas nas mãos, uma belíssima mulher lhe sorria, enquanto acenava discretamente. 

sexta-feira, 22 de julho de 2011

DA ARTE DE ROMPER UM GRANDE AMOR



Honório de Medeiros

Muito tempo depois a encontrei em um café, contemplando o mundo lá fora com aqueles seus olhos azuis maravilhosos através das volutas da fumaça do cigarro.

Após os cumprimentos de praxe, não resisti e lhe perguntei como sobrevivera ao fim do seu casamento, tão minuciosamente condenado ao fracasso, segundo sua própria avaliação, quando nos vimos pela última vez.

Ela sorriu, se espreguiçou como uma gata, tomou lentamente um gole de café e me perguntou se eu queria saber a história toda ou somente o desfecho, com algumas pinceladas óbvias como arremate.

Antes de lhe dizer que não dispensava os detalhes me lembrei que parte do seu fascínio era a administração do silêncio, e este nos induzia a supor regiões misteriosas do seu pensamento onde a fantasia bordava, junto com a realidade, situações fascinantes para quem soubesse ousar e tivesse coragem de receber.

Já naquele tempo ela reinava impune, a tripudiar das vãs tentativas dos conquistadores ávidos e tímidos admiradores, sem que as recusas constantes diminuíssem a admiração que granjeava.

Nela, nada se eximia de seduzir, mas mesmo assim um dia sucumbira a uma paixão inesperada e violenta, que a retirara do circuito das festas e badalações.

Desde o começo nós, seus amigos, percebêramos que não daria certo. Sutilmente sua liberdade fora sendo restringida – logo a dela, tão essencial a si.

Aos poucos, milímetro por milímetro, fora cedendo sem notar, encantada por uma proposta enleadora de construção do futuro a dois, mão a mão, através da imagem de uma ponte afetiva que terminaria no infinito.

Embora apaixonada foi através da persuasiva magia da visualização da fantasia de um amor único, daqueles que nutrem uma alma só em dois corpos distintos, que ocorrera a derrubada das suas últimas resistências.

Finalmente despertou e a ânsia de viver livre, solta, cobrou sua fatura.

Passou a sentir-se sufocada e a perceber as invisíveis amarras que lhe prendiam o vôo.

Queria ir embora, queria sumir, queria desaparecer, mas havia um obstáculo, um sério senão a impedir sua liberdade: o orgulho desmedido, o egocentrismo concentrado, a incontida auto-imagem que seu companheiro fazia de si mesmo. Não era possível que o relacionamento fosse desfeito sem que a explicação a ser dada para isso preservasse sua posição social e o alto conceito que fazia de sua própria imagem.

“Eu não podia dizer-lhe que ia embora por que o amor acabara; seu orgulho não aceitaria ser trocado por nada, por coisa alguma."

"Ele não admitiria nunca que não fora capaz de segurar-me e apaixonada, que eu nada mais sentia exceto um afeto meio dependente do alívio do afastamento definitivo."

"Tive, então, que criar uma paixão inexistente por outro e, pior, por alguém abaixo da escala de valores que ele prezava."

"Assim, me libertei, e ele pode dizer por aí, quando questionado, que eu havia sido uma aposta perdida porque mal avaliada; que eu fora incapaz de perceber a qualidade do sentimento que despertara; que eu fora levada a um nível incompatível com minha ausência de sofisticação; e, assim, depois, com o tempo, retornara, através de um "qualquer", ao mundo ao qual realmente pertencia”.

Disse isso e sorriu como se buscasse um cúmplice, algo para o qual eu já me destinara muito antes.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

HISTÓRIA DA VIDA REAL

image-at-its-best.com
Honório de Medeiros

Nas Seleções do Reader Digest que meu pai colecionara na década de 40 eu lia, entre menino e adolescente, uma seção cujo título era “Histórias da Vida Real”.

Uma história eu nunca esqueci: durante a Segunda Guerra Mundial, as moças americanas eram incentivadas a participarem do esforço comum escrevendo para seus compatriotas combatentes mundo afora.

Um desses rapazes começou a se corresponder com uma jovem do interior remoto do Oeste americano.

Passaram-se os anos e as cartas, que começaram cordiais, mas distantes, assumiram um teor cada vez íntimo, com troca de confidências, sonhos, planos e tudo quanto diz respeito a uma correspondência amorosa.

Tudo corria perfeitamente exceto pela recusa obstinada da moça em enviar, para seu correspondente, uma fotografia e o nome da cidadezinha na qual morava. Todas suas cartas eram enviadas da Estação Central de Trem da capital do seu Estado.

Ele argumentava dizendo que gostaria de ter, perto de si, não apenas suas cartas e tudo quanto de bom elas lhe transmitiam, mas, também, uma imagem para a qual pudesse olhar naqueles momentos terríveis pelo qual estava passando.

Ela lhe respondia, se justificando, que o amor entre eles começara pelo espírito, e assim deveria continuar até o momento em que, finalmente, pudessem se encontrar frente a frente, e uma fotografia poderia lhe dar uma falsa impressão que a realidade viria a desmascarar.

Finalmente a guerra terminou. Ele lhe escreveu para combinar o encontro e ela lhe pediu que estivesse no dia e hora marcados, na Estação Central de Trem da capital do seu Estado, quando seria reconhecida por trazer, nas mãos, um ramo de rosas vermelhas.

Esta era a única forma de reconhecê-la que ele dispunha: não sabia como ela era e em qual cidade vivia, e, muito menos, se seu nome era real ou fictício.

Meio-dia em ponto. Exatamente na hora marcada. O trem para. Ele salta e olha ansioso no seu entorno. Há poucos transeuntes na Estação. Ninguém que aparente ser uma moça desacompanhada portando um ramo de rosas vermelhas nas mãos.

Começa a frustração. Será que foi enganado, pergunta-se, ao longo de todos os anos? Tudo quanto ela lhe dissera carta após carta, o amor que entre eles nascera, os planos construídos, seria mentira?

Parado, a maleta aos pés, a expressão ansiosa, ele olhava em todas as direções tentando justificar um possível atraso, se dizendo que talvez algum acontecimento de última hora, um obstáculo inesperado a tivesse retido...

O tempo passou.

Uma hora depois, convicto que tinha sido iludido, ele começou a se dirigir para o guichê de vendas de passagens. Pretendia ir embora o mais rápido possível.

Quando se aproximou do guichê viu, sentada, próxima ao local, uma senhora de aproximadamente cinqüenta anos trazendo, em suas mãos, um buquê de flores vermelhas. “Então é ela?”, se perguntou. “Ela é esta senhora, e por essa razão não teve coragem de me enviar uma fotografia sua?”

Parado, perplexo, pensou em se esconder – não era possível que aquela senhora de meia-idade fosse sua amada. E agora, pensou, deveria honrar o amor espiritual com o qual se comprometera e que independia de idade ou poderia justificar a si mesmo sua fuga alegando ter sido manipulado?

Passaram-se alguns minutos. Cada carta que ele recebera veio a sua memória. Não resistiu. Aproximou-se.

“Senhora, boa tarde, seu nome é Lucy?”

“Não, ela me pediu para ficar aqui algum tempo, com essas rosas na mão, aguardando que alguém viesse a sua procura. Ela está ali”, e apontou.

Um pouco além, vindo em sua direção, com outro buquê de rosas vermelhas nas mãos, uma belíssima mulher, muito além do que ousara imaginar, lhe sorria discretamente.

sábado, 9 de julho de 2011

QUEM ERA O HOMEM DE OLHOS ACESOS?

adonisk.blogspot.com

Honório de Medeiros

O pai de minha sogra tinha mais de noventa e seis anos quando ocorreu esta história.

Andar curvado, pele curtida, mãos nodosas, cabelos finos e totalmente brancos, de uma magreza ascética. Homem de poucas palavras, que um começo de senilidade acentuou ao longo dos últimos anos, embora não lhe tenha feito perder totalmente o senso.

Tipicamente rural, daquela estirpe de nordestinos como já não há mais, cuja palavra empenhada vale mais que qualquer cheque em branco, seu código de honra era imutável; uma vez tomada uma posição qualquer, não havia possibilidade de mudança; seus valores eram "preto no branco": tradição herdade dos avós que os tinham iguais, bem como os pais, e deveria ser assim por que assim o era e deveria ser desde que o mundo é mundo.

Sucede que um dos seus muitos filhos, o primeiro, por sinal, suscetível, em termos de honra, tanto quanto o pai, depois de uma desavença qualquer onde não faltaram palavras ásperas de lado-a-lado, foi-se embora jurando nunca mais voltar.

Ele sentiu o golpe, mas não o acusou. Ano após ano, mesmo as lágrimas de mãe que sua esposa derramava escondido e ele pressentia não lhe fez sequer murmurar o nome daquele que ousara levantar a voz e desrespeitar sua autoridade paterna.

Era como se o filho não existisse, e as notícias esparsas, trazidas pelos outros até o seio da família não lhe eram comunicadas, circulando sem o seu conhecimento por entre mãe, irmãos e sobrinhos.

Dias antes de uma eleição municipal a ligação da desconhecida esposa do filho ausente comunicou sua doença: entubado, inconsciente, comatoso, jazia na unidade de tratamento intensivo de um grande hospital em uma cidade distante, no norte do País.

Criou-se uma sincronia macabra entre a expectativa do dia da eleição e o de sua morte, nesta altura, já esperada.

Enquanto isso, embora todos, em casa, soubessem da situação, e poupassem o pai por temor de um agravamento da sua fragilidade de idoso, a ansiedade pelo desfecho, tanto da eleição, quanto da morte, esta agravada pela dificuldade de se obter informações, aumentava cada vez mais.

No dia anterior ao da eleição, às oito horas da manhã, uma das suas filhas, como de costume, foi acordá-lo para o café da manhã e o encontrou falando como se estivesse se dirigindo a alguém. Perguntou-lhe: “com quem está falando, papai?” “Com esse homem de olhos acesos que não para de me olhar.” “Quem, papai, aqui não tem ninguém.” “Você pensa que eu sou doido; o que ele queria aqui no meu quarto?” A filha teve imediatamente um palpite, e, angustiada, se sentou lentamente na cama. “Papai, esse homem era novo ou velho?” “Era novo, ainda.”

Nesse instante, o telefone toca estridentemente lá fora. Ela corre para atender. Do outro lado da linha, a informação agora confirmada: “seu irmão acabou de falecer.”

Malgrado tudo isso, ainda não acabara o inexplicável. À noite, enquanto era acomodado em sua cama, véspera tumultuada de eleição, o pai se virou para a filha e resmungou. Atenta, ela lhe indaga: “o que é papai?” “Essas almas”, responde, “hoje está cheio delas aqui.”

domingo, 12 de junho de 2011

O VELHO TINHA RAZÃO

cantodecontarcontos.blogspot.com


Honório de Medeiros


                        Numa roda em que se discutia o pouco respeito que nós, contemporâneos, tínhamos pelos mais velhos, alguém contou uma história acontecida alguns anos atrás, para ressaltar a importância que eles têm como memória viva de uma comunidade.

 A história aconteceu em uma cidade do Sertão aqui próxima, aquela mesma que você, caro leitor, está pensando.

                        “Disseram-me”, disse ele, “que o homicida se aproximara por trás da vítima, na esquina das “Quatro-Bocas” com o Açougue Público, no pino do meio-dia e lhe chamara pelo nome. Ao engatar seus olhos nos olhos do outro deixou cair o pano grosseiro que encobria a lambedeira de doze polegadas e lhe dera um golpe rápido e certeiro na boca do estômago, logo seguido de outro que foi meio que aparado com as mãos, e um último – esse fatal – no pescoço, mesmo na jugular, de onde o sangue jorrou aos borbotões. Tudo isso aconteceu quando o movimento era o maior possível por causa da feira do Sábado.

 Quem me contou, por exemplo, estava a poucos passos do acontecido e viu tudo, tim-tim por tim-tim. Percebeu, inclusive, que todo mundo ficou meio como que congelado no tempo e no espaço enquanto o agressor, calmamente, pegou o pano que escondera a faca-peixeira, limpou o sangue do braço, e deixou ambos largados por sobre o corpo do já defunto e se esgueirou multidão a dentro.

                        Mesmo assim, me disseram, não demorou a ser pego. Aliás, até parece que quando saiu do local do crime apenas estava querendo tomar distância. Não era uma fuga. Tanto que seus passos, ao sair, não eram rápidos, eram enérgicos. E não houve resistência à voz de prisão. Ao contrário. Parecia até que, com a polícia, tinha um encontro marcado para o qual compareceu, como esperado, embora silencioso, e assim se manteve mesmo quando lhe perguntavam com ares ameaçadores seu nome, de onde era, e o motivo daquilo tudo.

 Não houve como fazê-lo falar. Bem que o Delegado pensou em lhe dar umas bolachas destravadoras de língua, mas esbarrou na sua aversão a esses métodos e no medo ao juiz novo, que tinha fama de exigente. Sendo assim, apenas o trancafiou e determinou que começassem os procedimentos de praxe.

                        Na cidade, o zum-zum era grande. Quem seria aquele homem que surgira do nada e matara a vítima? As especulações eram de todo o tipo e as mais fantasiosas, começando com intrigas amorosas e terminando em questiúnculas políticas. A polícia não informava nada. Limitava-se a dizer que o homem tinha uns quarenta anos, vestia-se como qualquer um, sem nada que chamasse a atenção para si.

 Era, o tal, enfim, alguém inexpressivo, que passaria totalmente despercebido no local onde cometera o crime.

 Quando o falatório, qual o vento Nordeste, começou a açoitar as casas do arrebalde, trazido pelos que voltavam da feira, encontraram Mestre Zé Vidal sentado em sua cadeira de balanço, na sombra da oiticica que praticamente escondia a frente de sua casa. A cadeira ficava em um lugar estratégico: quem passava tirava dois dedos de prosa e abastecia a reserva de Mestre Zé Vidal contra o tédio de uma aposentadoria compulsória que o afastara da escrivania do Cartório Criminal da cidade.

 Ele ficava ali, gordo, uma perna sobre o braço da cadeira, sandália de rabicho, calça de mescla, camisa de manga curta de algodão fechada até o pescoço, respondendo pilhérias, tirando outras, puxando assunto com quem passava. Alguém lhe levou a notícia. Aliás, vários.

Formou-se uma roda no seu entorno. Ele escutou, escutou, até que se levantou e olhando para todos e nenhum em particular lembrou que há uns tantos anos atrás, quase quarenta, mais ou menos, a vítima tinha uma tenda na feira para vender frutas. Em um Sábado, um menino pelos seus dez anos se aproximou trazendo uma lata mais ou menos do tamanho da metade de uma de querosene e mandou encher de cajarana.

Ato feito olhou para a vítima e lhe disse, apontando para trás dele, que tinha alguém o chamando. A vítima se voltou para trás. O menino desandou a correr. Mas não teve sorte. Tropeçou e caiu. A vítima lhe agarrou pelo cabelo e pegando uma corda lhe deu uma surra tremenda. O menino não chorou nada. Cada vez que tentava se levantar, levava um empurrão. Apanhou calado. Quando a vítima cansou o menino se levantou, arrumou os farrapos de sua dignidade, olhou fixamente para a vítima e lhe disse que quando crescesse iria matá-lo. E foi embora.

                        Podem ir atrás. O homicida é o menino.” 


sexta-feira, 25 de março de 2011

A MOÇA DA ROSA

amemdesejoamem.blogspot.com

Honório de Medeiros


“Você vai viver muito”. Eu fora ali para escutar aquilo? Procurara na árida cidade sertaneja uma rosa para ver aquela mulher miúda, morena, ainda jovem, envelhecida por muitos partos desfolhá-la, jogando as pétalas uma a uma no chão, enquanto em tom monocórdio, os olhos vazios, insondáveis, aparentemente, só aparentemente pousados na atividade mecânica que as mãos executavam, recitava aquela ladainha própria dos adivinhos?

Olhei para ela e tive vontade de lhe dizer que já conhecia sua técnica imemorial, igual à de tantos outros espertalhões que trabalham com a fronteira do provável: “você vai viver muito; existe um parente seu que está muito adoentado; há um amigo seu que lhe inveja e torce contra você...” Algo, entretanto, me mantinha calado, talvez o constrangimento de ter caído naquela armadilha.

 Era um final de tarde modorrento e quente. Eu, pensei, poderia estar no ar condicionado lendo, esperando o frescor da noite para ir à caça. Poderia estar fazendo a ronda do final de expediente nas cercanias da praça principal. Poderia estar jogando conversa fora em qualquer calçada. Mas não, estava ali, em plena zona rural, em um Sítio qualquer, de uma cidadezinha ainda menor e qualquer, numa casa pequena e humilde e qualquer, em um quarto no qual somente existiam duas cadeiras e uma mesa redonda de plástico, um crucifixo de madeira e metal no qual um Jesus Cristo de contornos indefinidos parecia abstraído, na sua dor, do que ali se passava, um calendário antigo, de muitos anos atrás, com estampa de Nossa Senhora, e pétalas e mais pétalas de rosa a fazerem um contraste interessante contra o chão cinza de cimento batido.

Lá fora outros aguardavam. Todos unidos pela esperança de conhecer o futuro. Eles tinham fé, eu não. A adivinha prosseguia com sua litania: “você tem que ir embora para seu valor ser reconhecido; aqui é muito pequeno; não se envolva em questões de terra...” Claro, pensei imediatamente, numa realidade como esta, pleno Sertão, questões envolvendo terra é sempre lugar comum problemático. E saber disso e usar o que se sabe é apenas a esperteza típica desse povo que vive de enganar os bestas como eu.

 Imprequei contra o amigo que me trouxera e prometera atendimento imediato, graças a seu parentesco com a adivinha, a despeito da quantidade de pessoas vindas de todos os lugares, que aguardavam atendimento. Maldisse o calor, a poeira, as moscas, a pobreza aviltante do lugarejo. Desculpei a mim mesmo alegando que a curiosidade vencera a razão. Lembrei-me que aquela mulher nada cobrava por suas consultas – deixava a cargo de cada um dar ou não alguma coisa. O que eu daria? Dinheiro?

Então terminou. Ergui-me sem saber o que dizer. Estirei-lhe a mão que ela recebeu com outra flácida e fria. Enquanto me virava pude perceber seu olhar voltado para o meu. Já não estava mais vazio de expressão, parecia conter uma curiosidade definida. Ao tocar na tranca da porta escutei: “Doutor?” “Sim”, respondi voltando. “Não vá ao encontro daquela moça que está lhe esperando.” “Como?”, perguntei estupefato. Ela não respondeu. Saí. Recebi o olhar de todos. Queriam ver, na minha face, os vestígios de quem soubera seu futuro. Encontraram mais que isso: o abalo de quem teve um segredo sensível descoberto de forma totalmente inesperada.

sábado, 24 de outubro de 2009

O PASTOR E A FIEL

O Pastor escuta atentamente a candidata a Fiel. As queixas são muitas: o marido bebe; o marido a trai; o dinheiro está mais curto que nunca – é preciso fazer milagres para alimentar todos – e a conta está alta no açougue, na padaria, no mercadinho; ela precisa fazer uma cirurgia “de mulher”, mas o médico do SUS quer um “por fora”; os tênis dos meninos estão pedindo lixeira...



O Pastor não somente escuta atentamente como está conectado com a Fiel através dos olhos que nada perdem da expressão do seu rosto. É olho no olho. Mas não é um olhar intimidante, ao contrário, é acalentador, confortante. E já registrou todos os detalhes possíveis, desde os restos de beleza que o tempo corroia lentamente, até os adereços que ela trazia consigo, como a fina corrente de ouro no pescoço do qual pendia um camafeu e o relógio antigo e de boa marca – relíquia dos bons tempos de outrora – a lhe contornar o pulso. O corpo do Pastor está postado exatamente em frente ao da Fiel e espelha o dela: mãos no regaço, torcendo uma à outra, pernas juntas, corpo acomodado no espaldar das cadeiras idênticas. Para aquela Fiel ele dispensara o paletó, tirara a gravata e arregaçara as mangas da camisa branca que contrastava fortemente com o preto do restante do terno e gravata e acentuava a cor parda de sua pele jovem.



Quando a Fiel está devidamente relaxada – e para isso foi encaminhada através de interjeições cuidadosamente escolhidas e que pontuavam as pequenas pausas do seu relato, este interveio:


- Irmã sua situação, embora dolorosa e complicada, não é diferente de outras que no nosso Templo tivemos conhecimento e através do nosso trabalho e intercessão Jesus quis resolver. Jesus tudo pode, você sabe. Nossa missão, a missão de nossa Congregação, é trazer amparo através de Jesus aos nossos fiéis. Nós somos pastores, orientamos e conduzimos o rebanho de Jesus para onde Ele quiser, sob sua orientação.



A Fiel escuta atentamente. Quer entender e, mais que isso, muito mais que isso quer, como todo coração, acreditar: basta entregar-se a tudo aquilo que o Pastor, com sua voz pausada, envolvente, grave, lhe diz. Haverá alguém que cuide de si. Haverá alguém com quem ela poderá contar para resolver seus problemas, por menores que sejam, por que somente sofre quem Dele se afasta.



- Claro que para superarmos todas essas adversidades colocadas por Jesus em nosso caminho para nos testar, temos que fazer algum sacrifício. É como se precisássemos purgar nossos deslizes, nossos pecados, nossa falta de fé, através de algum gesto, de alguma atitude, de alguma ação, para então ficarmos preparados e recebe-Lo em nossos corações e pudermos superar todas essas adversidades que nos incomodam.



Silencio hipnotizante. O Pastor levanta-se e contorna o birô parando atrás da Fiel. Sua mão direita, agora, repousa completamente sobre a cabeça dela. Agora ambos estão conectados fisicamente, mas ele está acima, alto, fala-lhe como se sua voz viesse de longe – de alguma região para além do mundo visível.

- A irmã tem algum inimigo, alguém que lhe fez mal, da qual tem rancor, ressentimento, ódio?

- A namorada do meu marido.

- Ela sabe que você sabe?

- Não somente sabe como esfrega na minha cara sempre que pode.

- A irmã vai procura-la e lhe dizer que a perdoa de todo coração, sentindo mesmo esse desejo de perdoar. Não se incomode com a reação dela. A tudo que ela disser responda dizendo que a perdoa de todo coração. É essa a prova que Jesus, por nosso intermédio, exige de você. Você é capaz de fazer?

- Acho que sim.

- Agora irmã para que você possa se apresentar a essa criatura que lhe fez mal de coração limpo, deve estar preparada espiritualmente. Você não pode, por exemplo, ocupar-se com pensamentos impuros nem coisas supérfluas. Nada, em você, pode demonstrar a vaidade que Jesus condena. Você deve estar limpa de corpo e alma, entende?

- Entendo.

- Há alguma coisa com você ou em você que seja vaidade, essa vaidade que Jesus, o mais simples dos homens, condena por que nos tira a pureza?

- Somente esta corrente e o relógio. Ah!, e a aliança.

- Doe esses objetos impuros que nada significam para Jesus ao Templo para que sejam convertidos em obras de semeadura da palavra do Senhor. Agora pode ir. Tenha fé, não se esqueça de ter fé, que seus problemas serão superados.

- Pastor e se eu fizer tudo que você recomendou e nada se resolver?

- A sua fé terá sido pouca, irmã. Somente isso. Agora vá.