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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JUSTIÇA E DIREITO: JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.” 

“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.” 

“Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.” 

“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas”. 

“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens.” 

“Qual a decisão de vocês?” 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em Subliminar, Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.” 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de Retórica, aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em A Nova Retórica. 

A partir do que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela Sociologia e Antropologia a partir da Teoria da Seleção Natural: 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.” 

“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.” 

“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.” 

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, a "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, autor de The Ruling Class, a Teoria da Classe Política, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

MERITOCRACIA E PACTO SOCIAL: QUANDO TUDO VALE, NADA VALE.

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

O combate à meritocracia é uma das pontas-de-lança do relativismo moral.

O relativismo moral apregoa que os valores são relativos, ou seja, o que é certo para mim, pode não ser certo para você, o que é justo para você, pode não o ser para mim, e não há nada, absolutamente nada, que a ciência possa dizer quanto a isso que possa erradicar nossas diferenças.

Tirando a ciência, que descreve o que algo é, e quando o faz, revela algo que é uma verdade em si mesma, independe da opinião de cada um, tal como a lei da gravidade, ou a lei da entropia, sobra a religião, ou até mesmo a arte, e assim segue, quanto a tentativas de explicar a realidade que nos envolve. 

Mas, quanto ao que não é ciência, cada um tem a sua explicação, e acredita, é uma questão de crença, no que lhe der na telha, portanto a conclusão possível, segundo tais parâmetros, é que a moral é relativa, e, se assim o é, não existiriam valores aos quais devamos reverências definitivas. 

Se não existem valores, então não podemos falar em mérito, pois este pressupõe que sejamos capazes de avaliar os outros e reconhecer, neles, qualidades que mereçam respeito, elogio, e, claro, confiança, para lhes entregar, por exemplo, responsabilidades que não estão ao alcance dos que não foram avaliados com o mesmo reconhecimento. 

Se não é possível reconhecer o mérito, então todos estamos no mesmo barco, ninguém pode avaliar quem quer que seja, e, dessa forma, a conclusão óbvia é que desapareceria a civilização como a conhecemos. 

Uma outra possibilidade é a de que os valores existem sim, e estão por aí, no espaço e no tempo, e o certo, o errado, o bem, o mal, o justo, e o injusto, existem por si mesmos, como entidades fora-de-nós, bastando que as encontremos onde estiverem e os colhamos, qual frutas maduras, e os utilizemos. 

É essa hipótese derivada da filosofia de Platão, melhor dizendo, de sua “Teoria das Formas e das Ideias”, que os relativistas morais criticam, de forma oblíqua, e com razão, a grande maioria das vezes sem conhecerem seu fundamento, seus pressupostos teóricos. 

Isso porque os valores, tais quais imaginados por Platão, não são essências aguardando algum iluminado que os apreenda e os coloque a serviço da humanidade, a despeito de todos quantos se julgaram intermediários entre o céu e a terra. 

Não por outra razão Jesus calou quando Pilatos lhe perguntou: "o que é a verdade?". Pilatos lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, quanto à moral, somente acreditava no Poder pelo Poder. Se sua pergunta dissesse respeito à fé, Jesus teria lhe respondido: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", e o seu silêncio não perturbaria tanto os filósofos através do tempo. 

Se, entretanto, compreendermos que os valores são construções do homem ao longo do seu processo civilizatório, estratagemas adaptativos, estratégias de sobrevivência, a questão muda completamente de perspectiva. 

E a ciência nos dá razão por que, aqui, vamos estudar não o valor em si mesmo, mas as condutas que os criaram, sua finalidade, sua natureza. É o mundo da Sociologia, da Antropologia, uma ciência.

É científico conceber que em algum momento da história o Homem, a nossa espécie, teve um "insight" que lhe permitiu dar um passo à frente no processo evolutivo: descobriu a cooperação. Percebeu que podia até mesmo enfrentar seus predadores naturais, e os vencer, caso cooperassem entre si. Percebeu, trocando em miúdos, que a união faz a força. Naquele momento nasceu o que hoje chamamos de ““pacto social””. 

O “pacto social” constrói e impõe direitos e deveres, ou seja, valores, para que o grupo social, a Sociedade, possa sobreviver, avançar. Tal ideia foi um "meme", uma invenção do processo evolutivo, ou seja, uma construção humana, uma elaboração social, claro que sempre dependente de sua circunstância histórica.

Muito embora possamos rastrear a ideia de “pacto social” até Protágoras de Abdera, bastando, para tanto, ler o diálogo platônico homônimo, é de se considerar que sua melhor descrição, de forma alegórica, está em Leviatã, de Hobbes. 

“Homo homini lupus”, escreveu Thomas Hobbes, o primeiro dos grandes contratualistas. O homem é o lobo do homem, frase de Plauto, em Asinaria, textualmente: “Lupus est homo homini non homo”, que expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo “pacto social”. Em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie. 

Caso não aconteça o “pacto social”, “bellum omnium contra omnes”, guerra de todos contra todos, até a auto aniquilação no “Estado de Natureza”, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, disse-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de “contrato social” exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão. 

Essa noção, de “pacto” ou “contrato social”, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na Política, de Aristóteles (cap. III): “De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, ‘uma garantia mútua de direitos’, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer. 

E muito embora um estudioso “outsider” do legado grego, tal qual I. F. Stone, defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas, relatada no Críton, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker. 

Tudo isso significa que o conteúdo dos direitos e deveres pode variar no tempo e espaço, mas a noção da "forma", do "ambiente", do “continente” que os contém, não. Ou seja, a ideia de “pacto social” é onipresente, muito embora seu conteúdo possa mudar ao sabor das circunstâncias históricas.

É por essa razão que certas condutas anteriores ao tempo atual eram consideradas erradas, e hoje já não o são. Quanto à regulação, à existência de normas, do ambiente que as contém, de tal não se cogita: sempre existiram normas que regulassem a conduta humana. Repetindo: mudou o conteúdo, mas não mudou a forma.

Ainda: o que é certo e errado pode mudar no tempo e no espaço, ao sabor da volubilidade humana, mas a compreensão de que deve existir um conjunto de regras, que mesmo de forma difusa, que diga o que é certo e errado, em cada época, isso nunca mudou, por uma razão muito simples, tão bem apontada por Hobbes, qual seja a de que sem esse conjunto de regras, a civilização deixa de existir. 

Quando não temos um "norte" moral, jurídico, tudo vale, e se tudo vale, nada vale. 

Então, embora seja relativo o conteúdo da norma moral, a necessidade da existência de regras de conduta e jurídicas é uma verdade científica, um fenômeno sociológico, pelo menos no que diz respeito à realidade social conforme a conhecemos. 

É preciso que entendamos que a construção do conteúdo da norma moral é sempre resultante do entrechoque de ideias, interesses, crenças, poder etc., entre aqueles que integram a Sociedade. Mas ao contrário do que se supõe, o conflito social é fundamental para a elaboração da "Constituição" à qual nos apegamos para podermos sobreviver em Sociedade. 

Por fim, o discurso do relativismo moral é sabidamente ilógico. Argumentar contra os valores também é uma postura moral. Não há alternativa à existência dos valores. O que há, é a possibilidade de aperfeiçoamento desse instrumento social. É isso que estamos tentando fazer desde aquele remoto momento no qual o Homem se deu conta de que a cooperação permite sua sobrevivência. 

No final das contas, ninguém foge dos valores, seja contra ou a favor. Quem os critica, duvidando de sua existência, questionando sua eficácia, quer apenas mudar as regras do jogo para se beneficiar, ou favorecer aquilo que defende. 

Nada mais. 

domingo, 10 de novembro de 2019

ENSINO JURÍDICO: AS ARMADILHAS DA OMISSÃO.

* Honório de Medeiros

Uma das armadilhas que os tempos atuais impõem ao ensino jurídico, é o conforto da aula técnica, exclusivamente voltada para a interna realidade do ordenamento jurídico, onde o que importa é a argumentação dirigida para a norma jurídica e suas conexões com outras regras do sistema, quando muito se permitindo, o professor, um arremedo de independência dessa camisa-de-força ao tratar de de princípios jurídicos de conteúdo indeterminado, fluídico, sem consistência.

Tais princípios esbarram, entretanto, nos sólidos limites da vontade política, e eles nada mais são que barreiras levantadas pelo Estado e sua lógica de Poder, verdadeiros grilhões a serviço dos interesses de quem pode produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.

Ao se alienar consciente ou inconscientemente ao ocultar essa prática as questões subjacentes, essenciais, e que dizem respeito à própria estrutura do Direito, tal qual sua legitimidade, sua relação com o Poder, sua relação com o Justo, seu status obediente ao meramente técnico, seja por ignorância, seja por comodismo, seja por cinismo, os professores cumprem um papel pouco digno de reproduzir o modelo de exploração próprio da lógica dos que determinam as regras do jogo.

Em o fazendo, não questionando, não criticando, cravam, com o martelo da omissão, os pregos da submissão e alienação nas mentes dos futuros profissionais do Direito, ajudando, assim, a construir uma civilização doentia como essa que estamos deixando enquanto legado para nossos filhos.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

STF E BIRUTAS DE AEROPORTO, O

* Honório de Medeiros


Ontem, em julgamento acerca da possibilidade de prisão após decisão na segunda instância, que por sinal vai ficar na história, o STF ministrou algumas lições ao mundo.

Primeiro, provou por a+b que o Direito não é uma ciência, pois se seis ministros são a favor, e cinco contra, todos sabem tudo, e ninguém sabe de nada. Fico imaginando um convescote científico no qual resolvessem discutir a validade da Lei de Newton, quão saboroso seria.

Segundo, que o Direito nada tem com Justiça: algo não é Justo, ou deixa de sê-lo, se um Tribunal cinde ao meio acerca de um Valor.

Terceiro, que o Direito é aquilo que os que detêm a capacidade de produzir, aplicar e interpretar a norma jurídica querem que ele seja, tudo ao sabor das circunstâncias políticas.

Aliás, as decisões do STF são iguais às birutas de aeroporto ao sabor do vento: mudam de acordo com as circunstâncias políticas. O outro nome para "circunstâncias políticas" é PODER POLÍTICO, a capacidade que alguns têm de impor, aos outros, sua vontade, seja por manipulação, seja pela força.



O povo, com sua imensa sabedoria, sabe disso há muito tempo: "manda quem pode, obedece que tem juízo".




Enfim, com essa decisão, o STF alcança um patamar expressivo, em relação ao estudo do Direito: prova que ele nada tem de Ciência; nada tem de Justo; e que, na verdade, é (apenas), aquilo que o PODER POLÍTICO quer que ele seja.

sábado, 27 de abril de 2019

LEGALISMO, GARANTISMO, LEGITIMISMO, COISA E TAL

* Honório de Medeiros

Os juízes e promotores brasileiros são, em sua grande maioria, tendo em vista as poucas e honrosas exceções, metamorfos jurídicos(1) garantistas (2), quando julgam os outros, e legalistas (3) quando se trata de defender benefícios para eles mesmos.

(1) Metamorfoses ambulantes, à  Raul Seixas; 

(2) Garantismo: confusa teoria jurídica que entende a norma jurídica como uma casca ou invólucro cujo recheio, ao interpretá-la, será composto a partir da noção individual ou particular específica acerca do que seja "O Justo", "O Certo", "O Bem Social", etc., para cada juiz; solipsismo jurídico; crença na onisciência do juiz enquanto alguém capaz de saber, mais que a própria Sociedade, o que é bom ou ruim, justo ou injusto, certo ou errado, para cada um dos outros, ou para todos de uma só vez; desapreço ou descrença oblíqua na capacidade da Sociedade de regular seu próprio Destino.

(3) Legalista: teoria jurídica que prega a interpretação fria ("ipsis litteris") da norma jurídica positiva, ou seja, aquela constante dos códigos e legislações; para o legalista, pau é pau, e pedra é pedra, e não existe nada entre uma coisa e outra; às vezes são denominados, pelos apedeutas, de positivistas, demonstrando, assim, que a estratégia de desconstrução do óbvio, por parte de quem o deseje, não pertence apenas à Política e sua incrível capacidade de demonizar reputações; idolatram Heráclito de Éfeso, um pré-socrático, por ter afirmado que "o povo deve lutar por suas leis como pelas muralhas de sua cidade".

O "garantismo", ou seja, a "interpretação constitucional da legislação", no Brasil, que é a face exposta e retórica do ativismo judicial, nada mais é que a vitória do STF em sua queda de braço com o Poder Executivo e a Sociedade, no sentido de estabelecer quem, de fato, exerce o Poder Político no País.

Por intermédio da interpretação constitucional o STF (seus ministros), esgrimindo difusos e confusos princípios constitucionais que externam seus difusos e confusos juízos de valor (aureolados por uma retórica de "cientificidade"), e atropelando o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, governa, de fato, o Brasil.

A tradicional ojeriza do Homem em assumir a responsabilidade pelos seus atos o levou a construir um "escudo ético" para ocultar-se quando interpreta, constrói e/ou aplica a norma jurídica: atribui seus atos à "ciência", quando nada mais são que juízos de valor investidos de Poder.

Houve uma melhora, ao longo do tempo: antigamente atribuíam-se esses atos à vontade de Deus, dos quais alguns homens seriam seus intérpretes.

sábado, 23 de março de 2019

DE UMA LONGA E ÁSPERA CAMINHADA

* Honório de Medeiros



Nos anos 90 dediquei-me a estudar Hegel.

Peguei meu exemplar do Princípios da Filosofia do Direito, cuja primeira edição é de 1918, e me lancei na empreitada, mesmo a contragosto, ante a dificuldade de compreender o pensamento do autor, que se expressava em uma linguagem abstrusa, própria de sua época.

Fichte, a quem se atribui ter sido a ponte entre Kant e Hegel, era ainda pior, mas eu acreditava que era uma espécie de dever moral um estudante de Direito e do marxismo conhecer sua obra.

A duros custos cheguei lá. Não pelas dificuldades que o texto, em si, e que são grandes, propunham, e do qual o parágrafo abaixo é um bom exemplo:

"O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo".

É que eu não conseguia esquecer, em cada momento da leitura, a opinião que de Hegel tinha Schopenhauer, por quem nutro grande admiração.

Para se ter uma ideia Schopenhauer disse, citando Shakespeare (Cimbelina, ato V, cena 4), em sua Vontade da Natureza, que a filosofia de Hegel era "uma conversa de loucos, vinda da língua e não do cérebro". E em O Mundo Como Vontade e Representação, não deixou por menos:

"Hegel, imposto de cima pelos poderes vigentes, como o Grande Filósofo oficializado, era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e fornicar as mais malucas e mistificantes tolices. Essas tolices foram barulhentamente proclamadas como uma sabedoria imortal, por seguidores mercenários, e prontamente aceitas como tal por todos os tolos, que assim se juntaram num coro perfeito de admiração, como nunca antes se ouvira."

Tem muito mais de Schopenhauer em relação a Hegel, mas é o suficiente. Além dele, na mesma época há, por exemplo, Kiekergaard, autor de O livro do Juiz e crítico severo de seu historicismo, e citado por Sir Karl Raymund Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos:

"Houve - escreve Kierkegaard - filósofos que tentaram, antes de Hegel ... explicar a história. E a Providência só podia sorrir ao ver tais tentativas. Mas a Providência não se ria às escâncaras, pois havia neles sinceridade e honestidade humanas. Mas Hegel!... Aqui preciso da linguagem de Homero. Como os deuses gargalharam trovejantemente! Esse pequenino e horrendo professor compreendeu simplesmente a necessidade de cada uma e de todas as coisas que existem, e agora executa em seu harmoniozinho toda a peça: 'Escutai, deuses do Olimpo!'"

Karl Popper comenta a citação dizendo que as expressões de Kierkegaard são quase tão fortes quanto as de Schopenhauer, quando afirma, um pouco depois, que o hegelianismo, "esse brilhante espírito de podridão, é a mais repugnante das formas de licenciosidade", "mofo de pompa", e possui um "infame esplendor de corrupção".

Em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper, lá para as tantas, se pergunta a razão pela qual ainda precisamos nos incomodar com Hegel:

"A resposta é que a influência de Hegel permaneceu como força poderosíssima, apesar do fato de que os cientistas nunca o levaram a sério (...) A influência de Hegel e especialmente a do seu jargão, é ainda muito forte em sua filosofia moral, e social, como nas ciências sociais e políticas (com a única exceção da economia). Especialmente os filósofos da história, da política e da educação, ainda estão sob seu império, em ampla extensão. Em política isso é mais amplamente mostrado de que tanto a ala extrema marxista, assim como o centro conservador e a extrema direita fascista baseiam suas filosofias políticas em Hegel; a ala esquerda substitui a guerra de nações que aparece no esquema historicista de Hegel pela guerra de classes; a extrema direita substitui-a pela guerra de raças; mas ambos o seguem mais ou menos conscientemente (o centro conservador é, em regra, menos consciente do que deve a Hegel)".

Mesmo assim li Hegel. Conclui minha tarefa auto-imposta. Ter continuado a estuda-lo me permitiu, algum tempo depois, procurar entender a ligação entre a dialética de Heráclito de Éfeso, a de Hegel e sua Filosofia da Identidade, e a de Marx.

Fez-me capaz de, certo ou errado, conectar esse entendimento com a Teoria da Evolução, por intermédio da Teoria do Meme, exposta por Sir Richard Dawkins em O Gene Egoísta.

Permitiu-me, por fim, compreender que sem a ciência qualquer teoria acerca de fatos históricos é mera especulação.

Quanto à Filosofia, pura metafísica, delírio da Razão.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

DE LEGALIDADE


* Honório de Medeiros

O povo deve bater-se em defesa da lei, como se bate em defesa das muralhas” Heráclito de Éfeso (sécs. VI-V a.c. – fragmento 44). 
Nestes dias o Supremo Tribunal Federal se debruça sobre a questão da criminalização da homofobia e transfobia.
O primeiro voto, a favor, foi do Decano da instituição, que em sua opinião, por não ter o Congresso legislado sobre o tema, por "evidente inércia e omissão", algo que a Câmara e o Senado negam, existe, portanto, uma lacuna legal e axiológica no ordenamento jurídico brasileiro, e caberia ao STF, por intermédio da analogia, suplementá-lo.
Mello propôs que não seja fixado um prazo para que o Congresso edite uma lei sobre o tema, como pedem as ações para isso intentadas, mas que, enquanto os parlamentares não se manifestam, a homofobia e a transfobia sejam enquadradas na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989).

Entretanto é de sabença geral que os meios de preenchimento de lacunas, no ordenamento jurídico, por ele mesmo devem ser indicados, para evitar a incerteza do Direito e o subjetivismo anárquico judicial.

Fique claro que a questão não é a criminalização ou não. É a forma como está sendo feita.

Ora, a analogia, em matéria penal, é algo estritamente proibido pela Constituição Federal em suas cláusulas pétreas, qual seja o artigo 5º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
E o que leva o Ministro a crer que mesmo assim o STF pode ir além da própria Constituição Federal?
A crença de que o STF tudo pode e pode tudo. Que compete a eles, ministros, dizer o que seja o melhor para a Sociedade, como se lê do que segue:

Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.” (Ministro Teori Zavaski; AI nos EREsp 644.736/PE, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170).

Esse é o cerne da doutrina do realismo jurídico, sinteticamente expresso na afirmação de Oliver Wendell Holmes, Jr., antigo ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos: “o Direito é o que os tribunais dizem que ele é” (“the law is what the courts say it is”), visceralmente contrário à tradição jurídica nacional e ao que o povo brasileiro, por intermédio de seus constituintes, em 1988, na Assembleia Nacional Constituinte, escolheu para si, e o expressou no Princípio da Legalidade, inciso II, do artigo 5º, enquanto Cláusula Pétrea: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Cujo desdobramento, em matéria penal, está no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Outra cláusula pétrea.

Mais claro é impossível.

O próprio Celso de Mello já se referiu ao princípio da legalidade como um dos princípios mais importantes no Direito Constitucional; o principio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, e que este é a essência do Estado de Direito, pois lhe dá identidade própria.”

Mas como se nada disso significasse coisa alguma, os ministros do STF enveredam pela doutrina do Realismo Jurídico, em sua versão tupiniquim, esgrimida enquanto arma de Poder, para conter o alvoroço investigatório do Senado e Receita Federal e manda um aviso claro ao Congresso e ao Poder Executivo: “mandamos nós; obedece quem tem juízo”.

O que existirá além para além aquelas paredes luxuosas que o Poder Legislativo e Executivo não possam investigar?

Pior: ao fazê-lo, ferem, mortalmente, o princípio da soberania da vontade popular, tão importante que se encontra no artigo no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

É óbvio, posto assim, que se o Congresso, até hoje, não quis regulamentar a questão dos crimes de homofobia e transfobia, isso significa que sua vontade, a vontade do Povo é essa. No tempo certo, em seu tempo, , no tempo dos legisladores, isso será feito.

O STF não pode dizer nem quando, nem o quê, pode e deve ser tratado pelo Legislativo.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

"Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral"; (...)

E ponto final.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

QUANTO AO ATIVISMO JUDICIAL

* Honório de Medeiros                                                                

Um dos mitos fundantes da nossa concepção de Estado é a do contrato social. Por este, nós cedemos nossa liberdade para que o Estado nos impeça de nos destruirmos uns aos outros. Tal noção, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III):

"De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, 'uma garantia mútua de direitos', incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer".

E muito embora um estudioso "outsider" do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

"Bellum omnium contra omnes", guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorre se impera a liberdade absoluta, diz-nos Hobbes no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social - e não houver a criação de um artefato – o Estado –, assegurando-se, assim, a sobrevivência dos homens quando estiverem em contato uns com os outros, pois haverá a submissão da vontade de todos à vontade de um só ou de um grupo, e esta atuará em tudo quanto for necessário para a manutenção da paz comum.

Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após John Locke, que se firma o mito fundante do contrato social, influenciando diretamente a Revolução Americana e Francesa, bem como a ideia de Estado conforme a concebemos ainda hoje. Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual surge o Estado, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato social detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se mais uma vez, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

"Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral"; (...)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo 1º:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Há algo de estranho, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal Federal. 

Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo, na sua função de reelaborar e reinterpretar continuamente a Constituição, conforme pregação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, e a atividade judicante de meramente preencher uma “possível” lacuna legal ou mudar o sentido de uma norma infraconstitucional já existente por meio de uma sentença, baseando-se em princípios difusos e indeterminados da Constituição Federal, estratégia empregada na Itália, Alemanha e pelo próprio STF.

“Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos”, diz, arrogantemente, o Ministro do STF Gilmar Mendes.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração a doutrina exposta acima, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional? Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

Em que se basearia, qual seria o fulcro dessa atividade de invasão da competência do legislativo ao se criar normas jurídicas através de sentenças, ou modificar o sentido de outras por meio de interpretações? Seria, como deixa transparecer o presidente do STF em suas entrevistas, por que a Constituição Federal tem um “espírito” e somente os integrantes daquela Casa, em última instância, conseguem enxergá-lo em sua essência última?

Que espírito é esse? O mesmo ao qual se refere São Paulo: “a letra mata, o espírito vivifica”?

Autoritário, tal argumento. Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do mito platônico das formas e ideias cuja contemplação é privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder. Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia a serviço de uma estratégia de Poder, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no comando, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o certo e o errado, o bom e o mal, o justo e o injusto.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia.

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos ativistas judiciais.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

STF, O DESGOVERNO

Conrado Hübner Mendes

"A síntese do desgoverno procedimental do STF está em duas regras não escritas: quando um não quer, 11 não decidem; quando um quer, decide sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu juízo de oportunidade. Praticam obstrução passiva no primeiro caso, e obstrução ativa no segundo".

Por Conrado Hübner Mendes, na Folha/Ilustríssima


O Supremo Tribunal Federal é protagonista de uma democracia em desencanto. Os lances mais sintomáticos da recente degeneração da política brasileira passam por ali. A corte está em dívida com muitas perguntas, novas e velhas, e vale lembrar algumas delas antes que os tribunais voltem do descanso anual nos próximos dias.

Se Delcídio do Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso?

Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido o mesmo na conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em ministro?

Se o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância, por que ministros continuam a conceder habeas corpus contra a orientação do plenário, como se o precedente não existisse?

Se a restrição ao foro privilegiado já tem oito votos favoráveis, pode um ministro pedir vista sob alegação de que o Congresso se manifestará a respeito? Pode ignorar o prazo para devolução do processo?

Se lá chegam tantos casos centrais da agenda do país, como pode um magistrado, sozinho, manipular a pauta pública ao seu sabor (por meio de pedidos de vista, de liminares engavetadas etc.)?

Se o auxílio-moradia para juízes, criado em 2014, custa ao país mais de R$ 1 bilhão por ano, como pôde um ministro impedir que o plenário se manifestasse até aqui? Se a criminalização do porte de drogas responde por grande parte do encarceramento em massa brasileiro, como pode um pedido de vista interromper, por anos, um caso que atenuaria o colapso humanitário das prisões?

Se um ministro afirma que Ricardo Lewandowski “não passa na prova dos 9 do jardim de infância do direito constitucional”, que Luís Roberto Barroso tem moral “muito baixinha”, que Marco Aurélio é “velhaco”, que Luiz Fux inventou o “AI-5 do Judiciário”, que Rodrigo Janot é “delinquente” e que Deltan Dallagnol é “cretino absoluto”, e além disso tem amigos espalhados entre o empresariado e a classe política julgados pelo STF, como expressará isenção nesses casos?

Se a Lei Orgânica da Magistratura proíbe juízes de se manifestarem sobre casos da pauta, como podem ministros antecipar posições a todo momento nos jornais?

A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas e autointeresse.

O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia.

CHOQUE DE REALIDADE

A separação de Poderes conferiu lugar peculiar ao Supremo. O Parlamento é eleito, o STF não. O parlamentar pode ser cobrado e punido por seus eleitores, os ministros do STF não. O presidente da República é eleito e costuma ser o primeiro alvo das ruas, os membros do STF estão longe disso. A corte suprema tem o poder de revogar decisões de representantes eleitos.

É um tribunal que se autorregula e não responde a ninguém. O que justifica tanto poder e a imunização contra canais democráticos de controle?

Há boas respostas teóricas para esse arranjo. Para alguns, a integridade constitucional depende de um órgão capaz de pairar acima dos conflitos partidários, praticar a imparcialidade e assumir o papel de poder moderador. Para outros, mais do que apenas moderar, caberia ao tribunal inspirar respeito por seus argumentos jurídicos, que tecem padrões decisórios e constroem jurisprudência.

A autoimagem construída pelo STF foi ainda mais longe. Apresentou-se como a última trincheira dos cidadãos, incumbido da missão de salvar a democracia de si mesma, domesticar maiorias, amparar e incluir minorias.

No ápice da automistificação, o ministro Barroso imaginou a corte como “vanguarda iluminista que empurre a história” na direção do progresso moral e civilizatório (Vinicius Mota descreveu a ideia no dia 14/1).

A crise política e a erosão de direitos dos últimos anos trouxe ao Supremo a oportunidade (e o ônus) de atender a suas promessas. A resposta, porém, foi um choque de realidade.

O desarranjo procedimental cobrou seu preço. Despreparado para a magnitude do desafio, o tribunal reagiu da forma lotérica e volátil de sempre. A prática do STF ridiculariza aquele autorretrato heroico, frustra as mais modestas expectativas e corrói sua pretensão de legitimidade.

Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal tornou-se partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante do direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos. Desse caminho é difícil voltar.

Atado a uma espiral de autodegradação, o poder moderador converteu-se em poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. O ator que deveria apagar incêndios fez-se incendiário. Não foi vítima da conjuntura, mas da própria inépcia. A vanguarda iluminista na aspiração descobriu-se vanguarda ilusionista na ação (e na inação).

A síntese do desgoverno procedimental do STF está em duas regras não escritas: quando um não quer, 11 não decidem; quando um quer, decide sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu juízo de oportunidade. Praticam obstrução passiva no primeiro caso, e obstrução ativa no segundo.

ILUSIONISMO

Como opera esse poder tensionador? Para decifrar a vanguarda ilusionista, precisamos olhar para além do resultado de cada decisão (se prende ou solta, se anula ou valida). Deve-se prestar mais atenção ao procedimento que gerou tal resultado e ao argumento que o justifica. É no procedimento e no argumento que mora o ilusionismo.

A síntese do desgoverno procedimental do STF está em duas regras não escritas: quando um não quer, 11 não decidem; quando um quer, decide sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu juízo de oportunidade. Praticam obstrução passiva no primeiro caso, e obstrução ativa no segundo.

A contradição entre as duas regras é só aparente, pois a arte do ilusionismo permite sua coexistência. Manda a lógica do “cada um por si”, nas palavras de editorial da Folha (24/12).

O argumento constitucional do Supremo já não vale o quanto pesa e tornou-se embrulho opaco para escolhas de ocasião. Basta olhar com lupa as incoerências na fundamentação de casos juridicamente semelhantes que recebem decisão diversa.

A expressão “jurisprudência do STF” sobrevive como licença poética, pois perdeu capacidade de descrever ou nortear a prática decisória do tribunal. Perdeu dignidade conceitual e até mesmo retórica.

No âmbito da esfera pública, o ilusionismo serve para desviar a atenção, responder o que não se perguntou, jogar fumaça na controvérsia e confundir o interlocutor.

O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, é praticante rotineiro dessa técnica. Publicou nesta Folha (17/1) artigo em defesa do habeas corpus (HC). Invoca o direito abstrato à liberdade, do qual ninguém discordará, e se desvia das críticas contra suas decisões recentes.

As críticas às quais Mendes reage nunca miraram o HC em si, mas as evidências de suspeição para julgar, de forma monocrática, pessoas do seu círculo pessoal e político. O ministro se apresenta como defensor da liberdade, mas suas decisões passam a impressão de ser defensor dos amigos. Para dissipar essa impressão, basta que se declare suspeito —o que se recusa a fazer.

Manha ilusionista: discursar sobre o ideal revolucionário da liberdade e silenciar sobre a liberdade concedida a amigos indiciados.

O ilusionismo, nas suas faces procedimental e argumentativa, retira das decisões do STF o selo de integridade institucional.

Por essa razão, tem sido pouco útil aos advogados e analistas da corte perguntar se o texto da Constituição é lido de modo apropriado, se nossas categorias de análise dão conta da tarefa interpretativa e se o tribunal pratica ativismo ou deferência —questões nobres do debate constitucional.

Mais importante é conhecer a biografia do ministro e sua capacidade de atender a ética da imparcialidade, da responsabilidade e da colegialidade.

A ambição do Estado de Direito é produzir um “governo das leis, não dos homens”. Soa como slogan a serviço da distorção ideológica, mas o sentido da expressão não tem nada de esotérico.

A mensagem é mais modesta: não quer dizer que o aparato institucional de interpretação e aplicação das leis deva ser composto por sujeitos sobre-humanos, imunes a afetos e interesses, mas apenas que esses sujeitos devem ter compromisso ético para decidir com maior isenção e ponderação analítica, além de gozar de garantias contra a pressão da barganha política. Não requer muito mais que isso.

A prática do STF pede adaptação daquela máxima: a interpretação constitucional deve estar submetida ao “governo do Supremo, não dos ministros”. O tribunal, porém, tem sido governado pelo voluntarismo incontinente de seus membros. É muito poder individual de fato (e de legalidade duvidosa) para ser usado com tanta extravagância.

Como disse José Sarney, anos atrás, “um dos maiores desserviços ao país é desprestigiar o Supremo Tribunal Federal”. Esse desserviço ao STF vem sendo prestado pelos seus próprios membros. Isso traz consequências.

ARBÍTRIO

O tempo do STF é místico. A corte pode tomar uma decisão em 20 horas ou em 20 anos (como publicou Ivar Hartmann, neste mesmo caderno, em 28/5 de 2017). A duração de um caso não guarda nenhuma relação com sua complexidade jurídica, sua importância política ou o excesso de trabalho do tribunal —alegações usuais de ministros.

É fruto, sim, da idiossincrasia e do instinto de cada julgador. E, às vezes, de negociações nos bastidores palacianos e corporativos.

Ninguém melhor que o ex-deputado Eduardo Cunha para iluminar o problema. Quando afastado de seu mandato pelo STF em 2016, ironizou com a pergunta cínica que muitos se fizeram: “Se havia urgência, por que levou seis meses?” Em outras palavras: por que agora?

Uma ótima questão, que poderia ser aplicada a muitos casos (por exemplo, o pacote natalino de liminares, todas monocráticas e abruptas, tomadas no apagar das luzes de 2017, antes de o Judiciário sair de férias).

Lewandowski, presidente da corte em 2016, desconversou: “O tempo do Judiciário não é o tempo da política e nem é o tempo da mídia. Temos ritos, procedimentos e prazos que devemos observar”.

A resposta é mais um artefato ilusionista. Quando diz que o tempo do Judiciário não é o tempo da política nem o da mídia, recorre a um árido lugar-comum para se esquivar do que se queria saber. A resposta também ignora a inteligência empírica que vem sendo construída ao longo dos último anos sobre o STF por um crescente grupo de estudiosos da corte.

A definição arbitrária do seu tempo decisório é mais uma faculdade que o Supremo conferiu a si mesmo e não explicou a ninguém, um dos poderes mais antidemocráticos que um tribunal pode ter.

INSEGURANÇA

Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das decisões passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no futuro.

Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações interpretativas genuínas.

Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da segurança jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo razoável ou sabido. Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.

O STF, no entanto, não só tirou a credibilidade da noção de jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber quando uma decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros sequer de que haverá decisão, qualquer que ela seja.

Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente, “ritos, procedimentos e prazos”, como quis Lewandowski, já seria um gesto quase revolucionário.

Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos, prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um espaço em que debates democráticos possam se desenvolver, que atores interessados possam mobilizar energia e recursos para participar. Esperam apenas que seus argumentos sejam respondidos e uma decisão seja tomada em tempo publicamente justificado.

Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a comparação tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o tempo não é exclusividade do Supremo.

Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul. Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos difícil.

Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou argentina, indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se consegue encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de ministros.

Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo.

PERDA DO RESPEITO

Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que “cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem”. Pelo menos parte do tempo.

Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia. A crônica constitucional só perde a inocência quando está apta a detectar a dissonância entre as palavras e os atos de instituição ainda tão obscura quanto o Judiciário.

Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo.

Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder para, sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos irreversíveis. A crônica constitucional brasileira vem captando essa lição à medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais, mais palpáveis.

O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte.

Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem, sozinhos ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de jornalistas.

Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco contestados (um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma honraria oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação com voto de colega etc.).

Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de autoridade) e deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a capacidade de ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido sem custos.

Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo.

Maquiavel sugeriu, em “O Príncipe”, que um governante não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for respeitado, que ao menos não seja desprezado, sentimento político mais nocivo. Um governante torna-se desprezível quando é “inconstante, leviano, irresoluto”.

O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.

Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do que pode, disfarça o tanto quanto consegue.

Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.

E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem na forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional.

Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo status se evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais avançada que já tivemos.

(*) CONRADO HÜBNER MENDES, 40, doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP, é professor de direito constitucional da USP e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

O JUIZ ENQUANTO INTÉRPRETE DA NORMA JURÍDICA

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Há cinco tipos básicos de juízes-intérpretes da norma jurídica: o onisciente, o populista, o técnico, o cortesão, e o camaleão.


O onisciente se pretende intermediário entre uma verdade absoluta - o Justo, o Certo, o Bom, etc. - e os reles mortais, que a ela não têm acesso. São como os cardeais da Igreja Católica. Ou líderes religiosos. 

Deles lemos e escutamos afirmações explícitas tais quais: a norma jurídica (a Constituição Federal) é isso ou aquilo. E implicitamente: é o que nós dissermos que ela é.

O populista se pretende intermediário entre os anseios da Sociedade e os reles mortais. Somente eles sabem o que o povo quer. E somente eles sabem usar a norma para fazer o que eles acham que o povo quer.

Deles escutamos afirmações tais quais: a norma jurídica (o Direito, a Constituição Federal) deve, concretamente, ser instrumento de transformação social e refletir os anseios da Sociedade.

O técnico se pretende cientista do Direito. Nada mais. É o sacerdote da verdade da norma jurídica, e o único que consegue apreendê-la a partir de universo finito no qual ela existe, algo muito além da capacidade dos reles mortais.

É o rei da subsunção, da filigrana jurídica.

Supõe que somente é possível o todo pelo conhecimento minucioso de cada parte. Desconhece que esse todo é algo além da soma das partes. 

Deles escutamos afirmações tais quais: uma coisa é minha vontade, outra é a disposição da norma jurídica.

O cortesão é discretamente, o mais da vezes, mas nem sempre, o intermediário entre a vontade da elite governante e os reles mortais.

É o rei do sofisma, da omissão consciente, da deturpação, da manipulação dos fatos e normas jurídicas.

Deles escutamos afirmações tais quais: a interpretação da norma jurídica deve levar em consideração os princípios mais profundos do Direito e da Democracia. Princípios cuja interpretação somente eles sabem fazer. 

O camaleão pretende. Não se pretende. Busca, sempre, a zona de maior conforto. Adéqua-se à circunstância. 

Cambiante, pode encarnar qualquer dos tipos acima, dependendo da necessidade.

Deles escutamos afirmações tais quais: as circunstâncias exigem de nós, intérpretes da norma jurídica, que...

É claro que podem existir outros tipos. Toda classificação é cavilosa. Não se esgota em si mesma.

Sofre sempre nas mãos da realidade, que vive destroçando sua arrogância.

E, claro, existe o bom juiz...