sexta-feira, 9 de junho de 2023

A GAROA BANHAVA AS PLANTAS...

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Acordei à meia-noite com um galo cantando desesperado em alguma quebrada próxima. Uma suindara gritou. Na mesma hora Tupã danou-se a latir. Olhei pela réstia da janela e uma claridade opaca, difusa, sobrenatural, tinha tomado conta da Serra. Deitei-me e adormeci novamente. Quando a madrugada chegou, peguei o cajado e saí para caminhar. Era o meu último dia em Vai-Não-Vem. A garoa banhava as plantas, o chão, os bichos, a mata, e as poucas pessoas que eu encontrava. Tudo jururu. Fiz meu percurso respirando água, embriagado de neblina, vendo a passarinhada passar em voo rasante. Não fui no rumo das Quatro-Bocas. Subi até a Pedra da Lua, onde, por vários minutos, me entreguei à liberdade e comunhão com tudo quanto há de mais elementar e profundo se a alma está leve e aberta: a terra, o ar, as pedras, as plantas, a água, a luz solar, os viventes...
Serra de São Bento, 22 de fevereiro de 2023.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

SOMOS ESTILHAÇOS

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


A realidade pessoal fragmentada: somos estilhaços. Cada estilhaço tem vida própria e conduta errática. Nós somos a soma de todos esses estilhaços, um sentido que emana da ausência de sentido. Paradoxo do mentiroso. Somos a água da correnteza de um rio descendo em enxurrada, na busca do oceano. O rio é a vida, o oceano, o destino final, a integração com o Um. Somos folhas rodopiantes, alucinadas, em dias de ventos traquinas. Abismos no tempo, fendas nas essências das coisas, fluímos vertiginosos. Um grito solitário no silêncio sepulcral do universo, quase. Pontes, caminhos para um infinito desconhecido. Pó das estrelas.

Cerro Corá, fevereiro de 2023.

terça-feira, 6 de junho de 2023

ENQUANTO ME DESPEDAÇO

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Saia sem dizer até logo: é um adeus. Não olhe para trás. Não leve nada agora, tudo será seu. Pegue sua bolsa, alise as pregas do vestido, tire um ou outro fiapo imaginário do tecido, deixe as chaves na mesa, siga em frente. Raspe a parede das qual se despede com a ponta das unhas, delicadamente. Esconda as lágrimas teimosas. Não volte, por favor, não se volte. Lá fora, ainda há estrelas, mas logo chega a manhã. É madrugada alta. Tentamos, não deu. A ponte está fechada. Respire fundo enquanto caminha. Lembre-se daquela nossa velha canção. Eu, cá, digo adeus qual murmúrio, enquanto me despedaço. 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

AS HORAS DESLIZAM MACIAS...

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Da casa onde estou, na Vila dos Pescadores, em Piranhas, Alagoas, não são mais que vinte passos até essa linda capela devotada a Santo Antônio, centro do local onde a cidade começou. São quase seis da manhã. Se olho para a frente, a partir do terraço da casa, tenho a Vila, ao longo; à minha direita, uma estreita estradinha de paralelepípedos e, depois dela, o rio São Francisco, lindo, maravilhoso; à esquerda, a capelinha. Mangueiras, no entorno, fazem a festa da passarada. Assim, as horas deslizam macias, tranquilas, como o bom dia sorridente que eu recebi da senhorinha que passava, enquanto fazia sua caminhada matinal...

domingo, 4 de junho de 2023

E A VIDA CONTINUA

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Na Vila dos Pescadores, à margem do São Francisco, entre serrotes e o rio, em Piranhas, Alagoas, todos se conhecem há muito tempo. Enquanto a vida flui caótica, lá fora, esse pequeno enclave obedece a leis imemoriais que privilegiam amparo mútuo e destino comum. Há exceções, claro, como a dos que se vão e voltam em outro patamar, seja mais baixo ou mais alto. Não importa: a Vila os recebe serena, e a vida continua. Problemas, há, como em todos os lugares; a diferença é que, aqui, a dor, e a alegria, são compartilhadas...