terça-feira, 17 de março de 2020

VIAJANDO O MEU APARTAMENTO

Xavier de Maistre   


Em luta sem quartel contra esse inimigo oriundo do coração da China, e que se vale de seu tamanho microscópico para fugir do combate direto, olho no olho, resolvi, levando em consideração certas medidas ditadas não pela covardia, mas pela astúcia, e tendo em vista minha condição de sexagenário, levantar a ponte levadiça do meu castelo e ataca-lo com táticas de guerrilha, ou seja, fugir do contato pessoal, como os russos fizeram contra Napoleão e Hitler, enquanto ele esmorece, fica fragilizado, alvo fácil para um contra-ataque. 

Lembrei-me, então, de Xavier de Maistre, e levando em consideração que ele, embora francês, sentou praça no exército russo e chegou a general, o que vem ao encontro do meu ânimo belicoso contra o inimigo, mas muito melhor que isso, escreveu uma obra notável que o lançou definitivamente na imortalidade, denominada Viagem em Volta do Meu Quarto, escrita em 1794, na qual relata o que lhe aconteceu nos quarenta e dois dias em que passou confinado no seu quarto, resolvi seguir seu exemplo, apenas ampliando um pouco mais o espaço no qual pretendo circular, para abranger todo o meu apartamento.

Assim como Xavier (já o considero íntimo), pretendo escrever um diário acerca do meu confinamento.

Isso, desde já, me coloca como sério candidato a escritor mundialmente desconhecido, para utilizar o bordão predileto de um amigo idoso ao qual não nomino em respeito a sua luta desesperada para não se dar por vencido ante os achaques da idade.

Passarei, portanto, quarenta e dois dias confinados em meu apartamento. Ou mais.

A introdução do meu livro de Xavier de Maistre - eu o li em fevereiro de 2011, é assinada por Sandra M. Stopparo, que também o organizou e traduziu, a quem rendo minhas homenagens. 

É uma publicação da editora Hedra, São Paulo, em 2009. Gostei, de cara, de uma afirmação que ela fez no seu texto, louvando a literatura do século XVIII. Não sei se está certa ou errada. Sei que como pretendo me valer desse auto confinamento belicoso para imitar Xavier de Maistre, seu pensamento me valeu como uma luva. 

Diz Stopparo: "Toda a força argumentativa do século XVIII se coloca aqui a serviço da literatura. Laurence Sterne é o principal parâmetro literário, assim como todos os escritores moralistas do período: fazer de qualquer tema, motivo, dúvida ou certeza uma razão para longas elucubrações é o método preferido da época, que vai do salão ao texto filosófico e às melhores páginas literárias." 

Ou seja, pelo que eu entendi, tanto faz um vírus como uma revolução, qualquer tema é bem-vindo, e o importante é argumentar. 

Talvez possamos entender esse dito de Stopparo (é de 2009) como uma verdadeira antecipação do facebook ou twitter, hoje espaços virtuais repletos de doutores em física quântica, economia marginalista; matemática tensorial, ciência política; filosofia pré e pós-moderna e outros assuntos ditos menores.

Quase nada acerca de quase tudo. 

Explanado tudo isso, e louvado no incentivo de Stopparo, bem como amparado por Xavier de Maistre, aqui vou eu.