* Honório de Medeiros
Para Elza Sena, onde ela estiver.
Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o
texto.
Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos. Um adjetivo é um
instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta.
Texto somente
com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo,
um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.
Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar;
meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas.
Completavam-se.
Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre si falando.
Tinham longas conversas em silêncio.
Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já
maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se
brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o
gelo”, dizia ela.
Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração;
ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer
algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, era
minha mãe.
Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando
os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.
Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo
contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.
Demonstravam afeto de formas bastante diferentes: mamãe
abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos,
perguntando, dando conselho, participando diretamente.
Papai somente me beijou
uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em
busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos.
Fiquei abismado. Engoli meu choro.
Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora
certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.
Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma
muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada
por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São
Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos
meandros da fé.
Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de
minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e
os santos de sua estima.
Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o
fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da
pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma
empresa familiar de beneficiamento de algodão.
No final, dois aposentados,
contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas
contas bancárias no final de cada mês.
Mas nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa,
a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios. Tinham, até mesmo, um
fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do fgts da aposentadoria de
meu pai. Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e
morrer.
Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o
momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu
pai.
Terá sido ele feliz? Acho que ter se afastado da sua viola amada, por
injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da
empresa onde era empregado acentuou sua melancolia de nascença.
Entretanto
tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, esquivos, brilhavam quando
chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso
rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.
Desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual
minha mãe acredito e pronto. Ponto final. Penso como Pascal: em crer, mal não
há.
Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha
crença: a de que, em morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro
de lavanda de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço
enquanto dedilha a viola.