sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

DA RETÓRICA EM SI MESMA

Honório de Medeiros 
                  
O corpo quer; a razão rechaça; a vontade, árbitro, cede.

Na verdade a Retórica é uma técnica de obtenção e manutenção do Poder. Muito além de uma técnica de persuasão, como propõem alguns teóricos. A persuasão é, apenas, um dos instrumentos da Retórica, tal como a manipulação ou a sedução.

Muito embora se costume dizer que a Retórica seja uma técnica de persuasão, de convencimento, ela é muito mais que isso. Pressupõe a existência, em polos distintos, de alguém a almejar que o Outro faça ou deixe de fazer algo, e a existência desse Outro.

Há uma tentativa de circunscrever a Retórica ao espaço da persuasão, quando a vontade do Outro cede, de motu próprio, posto que convencido, à vontade do persuasor.

Nada menos verdadeiro: na tentativa de persuasão do Outro, por mais ética que tenha sido, uma vez que ocorra, significa que a vontade do persuasor se impôs à do persuadido alterando sua percepção das coisas e dos fenômenos.

Como a ninguém é dada a primazia de saber o que é certo ou errado, se o Outro é persuadido sem que sua percepção das coisas ou fenômenos tenha ocorrido por si mesma, sem interferência externa, então temos, mesmo se inconsciente, uma imposição de vontade.

Evidente que no mundo das verdades da ciência não se há de falar em persuasão: aqui a demonstração lógica se impõe por si mesma.

Nessa perspectiva da persuasão a ocultação inconsciente da intenção da imposição da vontade do persuasor pressupõe, na maioria das vezes, uma crença, a fé nos próprios desígnios de quem persuade. Mas nem sempre é assim. Aquele que tenta persuadir não raro o faz deliberadamente, querendo influenciar o Outro a modificar sua vontade, mesmo respeitando regras éticas no que diz respeito ao seu procedimento, tentando evitar a manipulação. O persuasor pensa: “quero persuadir, não manipular”.

Em tese, seria esse um dos alicerces da Democracia.

A manipulação, por sua vez, é la bête noire da Retórica. Aqui não há limite ético quanto á intenção da alteração da vontade do Outro.

Assim ocorre, também, no que diz respeito à sedução.

Qual a diferença entre manipulação e sedução? Sutil. Somente pode ser percebida por intermédio da introdução da noção de “vontade”.

Essa noção, segundo Hannah Arendt[1], foi introduzida na discussão filosófica por intermédio de São Paulo, em sua famosa Carta aos Romanos. E, através dela, podemos entender que o “eu quero” nem sempre corresponde ao “eu posso”.

Ou seja, minha vontade pode determinar claramente o rumo a ser seguido, entretanto não consigo me colocar em movimento.

Na manipulação[2], mesmo que enganado, vez que manipulado, a vontade do Outro adere à vontade do persuasor; na sedução, a vontade do Outro é contra, mas cede por não ter forças para a recusa.

Na sedução o Outro não é enganado e não muda sua percepção das coisas ou fenômenos, entretanto não é possível resistir ao sedutor.

Seja persuasão, seja manipulação, seja sedução, todas são instrumentos da Retórica, que é uma técnica de Poder, e têm, como objetivo, fazer com que a vontade de quem a utiliza influencie, no sentido de alterá-la, as ações do Outro.


[1] Responsabilidade e Julgamento; ARENDT, Hanna.

[2] Justiça versus Segurança Jurídica e Outros Fragmentos; de MEDEIROS FILHO, Francisco Honório.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A RETÓRICA DOS OBJETOS

Honório de Medeiros


“Ser é perceber” (George Berkeley, 1685-1753).

Os objetos falam.

Existe uma diferença entre “ver” e “enxergar”, sabemos disso[1]. Quando “vemos”, percebemos.

Os objetos, se percebidos, dizem-nos muito.

Imagine que você seja um advogado que foi introduzido na biblioteca de um potencial cliente para discutir com ele acerca de um futuro contrato de honorários. Você não se preparou para o encontro, seja porque não teve tempo, seja porque confia em sua capacidade de persuasão.

Ao aguardar a chegada do seu possível futuro cliente em sua (dele) biblioteca se admira com a organização reinante: livros limpos, organizados por tema e, nesses nichos, os autores postados em ordem alfabética.

A biblioteca condiz com o ambiente no qual ela repousa. Os outros objetos do espaço circundante também prima pela limpeza e organização: não há nada fora do lugar.

Esses objetos dizem que seu dono é alguém, portanto, organizado, até mesmo meticuloso.

Qual a probabilidade de você convencê-lo nesse encontro para o qual não está devidamente preparado com dados, documentos, legislação, jurisprudência e, até mesmo, doutrina?

Quase nenhuma.

Existe uma retórica dos objetos, chamemo-la assim, na falta de uma denominação melhor. O que se quer dizer é que “os objetos dizem, expressam algo”. E é fundamental conhecê-la para quem se interessa em “decifrar” o meio com o qual interagimos.

Ramo da Retórica dos Objetos é a publicidade. Usa a técnica da Retórica dos Objetos para induzir associações de idéias que promovam o consumo.

Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento” que decodificamos os objetos.

E o que seria o “estranhamento”? É algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual uma arte marcial, tornar-se hábil em captar essa desarmonia demanda contínuo exercitar-se até o limite do possível.

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber, a organização limpa e meticulosa da biblioteca do cliente chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “ver” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer alguma inferência, ou elaborar alguma hipótese, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. Mas como essa câmera filmava através do espelho? Patrick sabia que os ilusionistas usam muito um tipo de espelho que permite a quem está por trás visualizar através dele. A noção de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, ali, essa sensação de estranhamento.

Um exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." (O TANGO DA VELHA GUARDA; Arturo Pérez-Reverte). 





[1] http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/ver-e-enxergar-acionam-regioes-diferentes-do-cerebro-diz-estudo.html

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A RETÓRICA DO CORPO



Honório de Medeiros                                                       

O corpo fala. E o que ele diz é o objeto de estudo da Retórica do Corpo. 

É técnica complexa, essa de entender o que o corpo fala. Em a dominando, o especialista “percebe”, ao invés de apenas “ver”, as mensagens que as pessoas enviam por intermédio dos muitos e complexos sinais emitidos por seu corpo durante a interação social ou mesmo isoladamente. 

Claro que em um nível muito básico todos somos capazes de distinguir o óbvio, em se tratando de retórica do corpo: se alguém, na nossa frente, cruza e descruza os braços repetidamente, e muda as posições dos pés com insistência, é muito provável que esteja imersa em ansiedade. 

Em outros níveis a tarefa de decodificar a linguagem do corpo se torna bem mais complexa, e envolve fisiologia, psicologia, capacidade de inferência e análise, princípios de estratégia e tática, e assim por diante. 

Na imagem vista acima, a linguagem do corpo dos dois protagonistas é quase exposta aos berros. Ou seja, é fácil perceber o que se passa internamente em cada um deles, a partir do que seus corpos expressam. 

Por exemplo, Roseana Sarney: 

Consideramos, “a priori”, que o corpo humano se expressa fundamentalmente via abdômem, tórax e cabeça. O restante do corpo corrobora a mensagem enviada por essas suas três partes. 

O abdômen diz a vida instintiva, o tórax a vida emocional, e, a cabeça, a vida mental. 

Observemos Roseana Sarney no momento em que se manifesta publicamente acerca do horror vivido recentemente no setor penitenciário maranhense, e que foi fartamente veiculado pela mídia nacional e internacional. 

Sua postura geral é de recuo, como se estivesse sendo atacada. É a mesma postura de alguém que foge de um golpe inesperado. Essa postura de recuo reflete a linguagem do abdômen (instinto) e tórax (emoção): “defenda-se ou fuja”. 

Ela, a Governadora, escolheu defender-se, contra-atacando. Não tinha outra opção. É o que se percebe da posição dos seus braços, extensão do tórax, que apontam, como lanças, para aqueles que a atacam com questões “impertinentes”, enquanto os dedos, apontando para cima, ou seja, para a cabeça, tentam impor aquilo que ela diz, seu discurso: "prestem atenção no que eu digo". 

O olhar esbugalhado e a testa franzida demonstram a ira em ter sua posição de “dona do pedaço” sobre ataque, acusando o golpe mal assimilado, porque em desconformidade com o que ela deseja e espera. A cabeça recuada, e o queixo erguido, nos induz a leitura de uma postura arrogante, tipo “com quem você pensa que está falando? Quem determina aqui as regras do jogo sou eu!”. 

Trocando em miúdos: posição de defesa, e contra-ataque arrogante, típica de um “coronel de saias”. 

Olhando atentamente para a cena, o Ministro da Justiça é a própria expressão da contrariedade com tudo que está acontecendo. Ele está contrariado por estar ali, por estar vendo o que está vendo, por estar escutando o que está escutando. 

Seu corpo diz isso. 

Observe-se o braço cruzado por sobre o abdômen e o tórax. É como se ele estivesse reprimindo sua raiva, contendo suas emoções. O outro braço, conectado ao primeiro, obstrui a boca, como se a reprimisse de dizer aquilo que deseja. A boca é, na cabeça, como que uma extensão do abdômen: por seu intermédio, comemos; e o abdômen, como dito acima, representa o instinto básico do ser humano. 

A cabeça do Ministro, ou seja, a razão, também está contida pela mão. Sua postura, reprimida em todos os três quadrantes fundamentais do corpo, é de absoluto incômodo com a situação pela qual está passando e é corroborada pela expressão da região dos olhos, onde despontam as sobrancelhas erguidas e as pálpebras baixadas, típicas de desaprovação e desprezo. 

A Retórica do Corpo, quando em consonância com a Retórica da Expressão Oral e Textual, assim como com a Retórica das Coisas, proporciona uma interessante possibilidade de percepção da realidade e, até mesmo, de interferência na realidade. 

A questão que remanesce diz respeito ao uso ético dessa técnica.

domingo, 12 de janeiro de 2014

CARTA PARA OTHONIEL NO AZUL




Laélio Ferreira

“Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades
...............................................................
...............................................................
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá
Preta”
(“Meu Caro Amigo”, de Chico Buarque de Holanda)

"Seu" Othoniel, me abençoe.

Aqui está a sua Obra Reunida.

Compromisso cumprido, comigo mesmo.

Fiz o que pude, meu velho. Foram madrugadas sofridas, adiamentos, angústias, muita saudade. Relendo tudo o que escreveu, revisando e redigindo as notas – vão me chamar de prolixo, aposto! –, avivaram-se na cachola setentona as lembranças de tudo quanto sofreu: as perseguições que lhe fizeram; a sua pobreza digna, altiva e ao mesmo tempo resignada; a doença, o auto-exílio, a saudade de Natal, a perda de Maria.

Nas notas que redigi, as amargas, sobre indivíduos, pessoas, segui conselho do velho Balzac ("Pode perdoar-se, mas esquecer, isso é impossível"). Aos que lhe fizeram mal, perdoei alguns, poucos.

Dos outros, não esqueci nenhum: os nominei e sobre eles fiz registro merecido.

Há poucos dias, completei setenta e uma safras de caju, aqui mesmo, na ocara grande do mestre-de-campo Filipe Camarão. Há quarenta, logo depois de Mamãe, o senhor, saudoso da terra, exilado e esquecido no Rio de Janeiro, partiu para o Azul.

Diz o povo – aqui, neste planeta amalucado – que a vida é
frágil, que passa. Ficaram, porém, para mim, intangíveis, as suas obras, as lembranças, as saudades – repito. Permanecem, como impressões que o tempo atenua, mas não apaga. A eternidade tem a duração da memória de quem nos ama. Passamos pela vida dos outros deixando nossa imagem numa frase, num verso, no rosto de um descendente.

E quanto lhe tenho vislumbrado por cá, meu velho! Nos meus filhos, nuanças das coisas que eram tão suas: sorrisos desconfiados, recolhimentos, alegrias. Neles, vejo, sempre comovido, tudo isso e até mais nos gestos, modos de andar, alguns tiques, nas vozes, nos olhos deles todos – filhos e netos. Noto-me, ainda, muito parecido com o senhor, "incompreendido e incompreendendo" quanta coisa deste mundão cá de baixo, com a mesmíssima larga aversão à mediocridade provinciana. Já houve quem nos chamasse, aos dois, pai e filho, de "irritadiços". Valeria, pois, para ambos, aquele contundente e velho conselho sertanejo de que "não se pode discutir com um burro sem ter um pedaço de pau na mão?"

Vosmecê, meu pai, bem sabe que deixei os versos comportados muito cedo por muitas razões, limitando-me, nas horas vagas, às glosas sacanas, fesceninas, quase sempre de crítica e desabafo, metendo a catana numa pá de gente – às vezes, até, me arrependendo por algumas grosserias: a velha história de "não perder o mote".

Poesia e cultura –"agricultura insana da cabeça" – nunca rimaram com felicidade material, fortuna. O senhor mesmo dizia a Esmeraldo Siqueira, naquelas cavaqueiras das "hemiplégicas poltronas" lá de casa, que o único poeta que tinha dado certo, naquela sua época, era o Augusto Frederico Schimidt – milionário amigo e ghostwriter de Juscelino, embaixador e dono de supermercados.

Fui à vida, à liça, muito cedo, sem nunca sonhar em vir a ser
um daqueles "intelectuais conterrâneos" que por cá saltitam e pululam. Fui, sim, catar o pão de cada dia em atividade profissional sem nenhuma poesia, Brasil afora, vasculhando – a bem da verdade, com pouquíssimo sucesso na hora dos julgamentos pelas cortes – o lixo da corrupção fantástica de muitos comedores de verbas federais, lestos e mitrados rabos-de-couro, políticos viciados ou afilhados desta brava e malina gente.

Até hoje, nessa banda escura, nada mudou no Pindorama. Acho eu que a coisa só fez piorar, desde os tempos da carta de Caminha.

Aqui, na nossa não muito gentil Jerimunlândia – canguleiro eu, xaria o senhor –, há poucos dias, um estentóreo historiador nativo, freguês juramentado de caderneta do Instituto Histórico, deu-me, solene, de pé e com vasto calhamaço agasalhado no sovaco, mesta e acachapante notícia sobre uma grossa estripulia do João Rodrigues Colaço, Capitão-Mor da Fortaleza e, dizem alguns, fundador
da Cidade. Pois não é que o nosso contraparente, marido
empistolado da fidalga e distante "prima", Dona Beatriz de
Menezes, está sendo acusado – veja só, o Senhor, pode rir! –, séculos depois da tal tribuzana, de "doar a si próprio uma sesmaria na Redinha". O que mal começa, segue mal a vida toda. "A gente vai vivendo e esperando que alguma coisa divina aconteça..." (Borges).


Laélio Ferreira