Laélio Ferreira
“Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades
...............................................................
...............................................................
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá
Preta”
(“Meu Caro Amigo”, de Chico Buarque de Holanda)
"Seu" Othoniel, me abençoe.
Aqui está a sua Obra Reunida.
Compromisso cumprido, comigo mesmo.
Fiz o que pude, meu velho. Foram madrugadas sofridas,
adiamentos, angústias, muita saudade. Relendo tudo o que escreveu, revisando e redigindo as notas – vão me chamar de prolixo,
aposto! –, avivaram-se na cachola setentona as lembranças de tudo quanto sofreu: as perseguições que lhe fizeram; a sua
pobreza digna, altiva e ao mesmo tempo resignada; a doença, o auto-exílio,
a saudade de Natal, a perda de Maria.
Nas notas que redigi, as amargas, sobre indivíduos, pessoas, segui conselho do velho Balzac ("Pode perdoar-se, mas
esquecer, isso é impossível"). Aos que lhe fizeram mal, perdoei
alguns, poucos.
Dos outros, não esqueci nenhum: os nominei e sobre eles fiz registro merecido.
Há poucos dias, completei setenta e uma safras de caju, aqui mesmo, na ocara grande do mestre-de-campo Filipe Camarão. Há quarenta, logo depois de Mamãe, o senhor, saudoso da terra,
exilado e esquecido no Rio de Janeiro, partiu para o Azul.
Diz o povo – aqui, neste planeta amalucado – que a vida é
frágil, que passa. Ficaram, porém, para mim, intangíveis, as
suas obras, as lembranças, as saudades – repito. Permanecem, como impressões que o tempo atenua, mas não apaga. A eternidade
tem a duração da memória de quem nos ama. Passamos pela vida dos outros deixando nossa imagem numa frase, num verso, no rosto de um descendente.
E quanto lhe tenho vislumbrado por cá, meu velho! Nos meus filhos, nuanças das coisas que eram tão suas: sorrisos
desconfiados, recolhimentos, alegrias. Neles, vejo, sempre comovido, tudo
isso e até mais nos gestos, modos de andar, alguns tiques, nas
vozes, nos olhos deles todos – filhos e netos. Noto-me, ainda,
muito parecido com o senhor, "incompreendido e incompreendendo" quanta coisa deste mundão cá de baixo, com a mesmíssima
larga aversão à mediocridade provinciana. Já houve quem nos
chamasse, aos dois, pai e filho, de "irritadiços". Valeria,
pois, para ambos, aquele contundente e velho conselho sertanejo de que
"não se pode discutir com um burro sem ter um pedaço de pau na
mão?"
Vosmecê, meu pai, bem sabe que deixei os versos comportados muito cedo por muitas razões, limitando-me, nas horas vagas, às glosas sacanas, fesceninas, quase sempre de crítica e
desabafo, metendo a catana numa pá de gente – às vezes, até, me
arrependendo por algumas grosserias: a velha história de "não perder
o mote".
Poesia e cultura –"agricultura insana da cabeça" –
nunca rimaram com felicidade material, fortuna. O senhor mesmo dizia a Esmeraldo Siqueira, naquelas cavaqueiras das
"hemiplégicas poltronas" lá de casa, que o único poeta que tinha dado certo, naquela sua época, era o Augusto Frederico Schimidt – milionário amigo e ghostwriter de Juscelino, embaixador e dono de
supermercados.
Fui à vida, à liça, muito cedo, sem nunca sonhar em vir a
ser
um daqueles "intelectuais conterrâneos" que por cá
saltitam e pululam. Fui, sim, catar o pão de cada dia em atividade
profissional sem nenhuma poesia, Brasil afora, vasculhando – a bem da verdade, com pouquíssimo sucesso na hora dos julgamentos
pelas cortes – o lixo da corrupção fantástica de muitos comedores
de verbas federais, lestos e mitrados rabos-de-couro, políticos
viciados ou afilhados desta brava e malina gente.
Até hoje, nessa banda escura, nada mudou no Pindorama. Acho eu que a coisa só fez piorar, desde os tempos da carta de
Caminha.
Aqui, na nossa não muito gentil Jerimunlândia – canguleiro
eu, xaria o senhor –, há poucos dias, um estentóreo historiador
nativo, freguês juramentado de caderneta do Instituto Histórico,
deu-me, solene, de pé e com vasto calhamaço agasalhado no sovaco, mesta e acachapante notícia sobre uma grossa estripulia do
João Rodrigues Colaço, Capitão-Mor da Fortaleza e, dizem alguns,
fundador
da Cidade. Pois não é que o nosso contraparente, marido
empistolado da fidalga e distante "prima", Dona
Beatriz de
Menezes, está sendo acusado – veja só, o Senhor, pode rir!
–, séculos depois da tal tribuzana, de "doar a si próprio
uma sesmaria na Redinha". O que mal começa, segue mal a vida toda.
"A gente vai vivendo e esperando que alguma coisa divina
aconteça..." (Borges).
Laélio Ferreira
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