quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

MANOELITO E A ARTE DE APRISIONAR O INSTANTE

Honório de Medeiros

Algum tempo atrás o Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito. Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes. E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor diziam de sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos como o querem os filósofos ditam a forma - jamais vice-versa.

Embora seja compreensivo a causa do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros das antigas famílias da cidade para o vernissage, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias que ele compôs.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas fotos expostas. Um fato no mínimo curioso para um evento aberto ao público para homenagear a arte - não a memória por ele construída - de um artista finalmente justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor do acontecimento foi ter sido chamado a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado pela família de Manoelito ao município de Mossoró. Não é à-toa a importância que estudiosos das grandes universidades do sul lhe dão. Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que já se perdeu em decorrência da incúria dos órgãos públicos.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico. Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinqüenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva científica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do cientista, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos. Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, os estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida. E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era exigido o aprisionamento daquele instante específico através de uma fotografia.

Mas ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em delírios de arte. Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde nela está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento. Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - na qual somente os artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O DIREITO ENQUANTO INSTÂNCIA DO PODER POLÍTICO

linde69.blogspot.com

Honório de Medeiros
É possível discernir na literatura acerca do campo jurídico a presença de dois paradigmas interrelacionados que cumprem um papel ideológica de ocultamento: o primeiro diz respeito à suposta autonomia do Direito enquanto Objeto Cognoscível; o segundo afirma a existência de uma ciência peculiar para apreendê-lo, qual seja a ciência jurídica, ambos em contraponto a uma perspectiva externa ao epifenômeno, com caráter sociológico, fulcrada nas regras do método científico e atenta aos postulados básicos de Émile Durkheim.

A presença desses dois paradigmas e o papel ideológica que lhes são próprios se desdobram em complexas estratégias adaptativas próprias de relações de domínio que pretendem se manter ocultas: a aparente autonomia do campo jurídico é “justificada” através de uma experiência específica dos operadores do campo jurídico; a suposta cientificidade do Direito e da ação dos seus cientistas é defendida via enunciados lógicos inferidos a partir de postulados de caráter metafísico que são apresentados como verdades auto-evidentes.

Essas estratégias adaptativas são instrumentais embora teóricas e obedecem à lógica do Poder Político que as engendra ou cria condições para que sejam engendradas e buscam afastar a possibilidade de trazer, à tona, o caráter autoritário da fonte hegemônica de produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.

Nesse sentido uma teoria sociológico-política do campo jurídico que pretenda demonstrar ser o Direito uma instância do Poder Político necessita estabelecer com precisão através de quais percursos teóricos isso é possível.

É necessário, também, demonstrar a inexistência de sua autonomia científica.

É preciso, ainda, estabelecer o Objeto da Sociologia Jurídica, subsumi-lo na Sociologia Política e, por fim, integrá-los na Sociologia Geral, para então, fazendo o percurso inverso, esclarecer qual o aparato teórico apropriado e como dever ser manejado, quando do estudo do campo jurídico, para poder apreendê-lo, como é preciso demonstrar segundo critérios da teoria do metido científico a fragilidade da pesquisa que se pretende própria de uma Ciência do Direito vazada nos moldes da Dogmática Jurídica ou Teoria Geral do Direito.

Por fim, estabelecidas as premissas, produzidas as conclusões, demonstrar o papel que o Poder Político reserva ao Direito: o de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica de acordo com uma oculta estratégia própria de obtenção e manutenção de uma configuração de relações de domínio.

domingo, 16 de janeiro de 2011

COMADRE

cidoportugues.blogspot.com

Honório de Medeiros

O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto. Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar. Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos a fio de sabão e água. Por fim sua vestimenta: um vestido, cor clara, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – que ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco de margens largas, propositadamente feitas para receber e acomodar o saco de roupas.

Pois Comadre, como se pode perceber era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E estava sempre feliz. Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos nervosos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa na hora do almoço.

Lá em casa, mais aos sábados do em qualquer outro dia por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha. Era o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos. Todos embalados por uma xícara de café e pão com manteiga.

Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. Naquele local, sem que me desse conta naquela época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente. Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.

Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência. Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com aquela alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo e angustiado. Poderia ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.

Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntei: “Comadre, por que a senhora é tão feliz?” “Meu filho”, respondia-me com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.” “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo?” “E a violência, a fome, as doenças...?” “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.” E seguia lépida e fagueira, a chistar, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó em toda a minha metafísica.