sábado, 17 de novembro de 2012

AS ARMADILHAS DO EGOÍSMO SOCIAL

Albert Schweitzer


Honório de Medeiros
 

                                  Quando se dispôs a estudar medicina para, formado, morar na África e cuidar dos miseráveis, Albert Schweitzer já era famoso na Europa inteira como um dos maiores intérpretes de Bach. 

                                  Terminado o curso, fundou um hospital no Gabão e, durante o restante de sua vida, enfrentando toda a sorte de adversidades, se doou por inteiro a mais nobre das missões: salvar vidas humanas. Ele, mais que ninguém, tornou possível acreditarmos na espécie humana, principalmente porque suas ações não foram estimuladas por um projeto político ou vocação religiosa, mas, sim, e somente, pela nobreza de sua alma e pureza de intenções. 

                                  Longe de nós acreditarmos que temos o mesmo estofo moral de Albert Schweitzer. Quando muito, se possível, podemos apresentar a virtude de tentarmos ser honestos no dia‑a‑dia. Não é muita coisa, mas, dentro dos nossos limites, é o possível. 

                                  Entretanto, parece que até mesmo essa tentativa de honestidade está desaparecendo lentamente do nosso cotidiano. Basta fazermos um pequeno exame de consciência e a constatação salta aos olhos. Por exemplo: quantas vezes não desrespeitamos as regras do trânsito? Quantas vezes não furamos filas, desrespeitando o direito de quem nos antecedeu? Quantas vezes não aceitamos o jogo do guarda‑de‑trânsito corrupto, e lhe damos a "bola" que ele deseja? 

                                  Alguém poderia argumentar que tais infrações são muito pequenas, "o importante é ser honesto no essencial", e que tudo isso faz parte da sordidez que é, hoje, a vida em sociedade. Ledo engano. Esses exemplos são reveladores de uma doença social: vivemos hoje em uma sociedade egoísta, narcisista, fútil, enfim totalmente construída a partir de valores negativos: o honesto passa por tolo, o altruísta é visto como excêntrico e, ao contrário, aquele que leva vantagem em tudo é esperto e o mundo, por derradeiro, pertenceria aos cínicos, aos amorais. 

                                  Já não existe, por exemplo, nas Universidades, o "espírito" de grandeza que caracterizava os estudantes de antigamente. Fazia‑se direito para lutar pela justiça, e medicina para curar. Hoje, a meta é a profissionalização, no mais curto espaço de tempo e o enriquecimento imediato. Somos todos "alpinistas sociais" e nos medimos e avaliamos pelo que temos, e não pelo que somos. Esta é a realidade de uma época.

                                  O quê não dizer, por exemplo, dos nossos homens públicos? Se analisarmos os candidatos que postulam, nas eleições, esse ou aquele cargo, a qual conclusão chegaremos? 

                                  E o resultado de nossa conduta nos agride diariamente: somos vítimas de nossa omissão, colhemos aquilo que semeamos. 

                                  Quê fazer? Cruzar os braços? Fazer parte, também, da multidão de indigentes morais? Ou dar, pelo menos, na medida de nossa capacidade, pequenos passos para tentar construir um mundo melhor? 

                                  Vale salientar que essa opção apresentada diariamente a cada um de nós envolve nosso presente e o futuro de nossos filhos. Então, a título de exemplo, não deveríamos escolher nossos candidatos a partir de critérios tais como honestidade, competência, amor à coisa pública? Não deveríamos analisar, por exemplo, a conduta passada de cada um deles: se foi honesto; se prestou algum serviço relevante à comunidade e o fez sem interesse imediato; se foi coerente ideologicamente... 

                                  É evidente que, assim como Diógenes, o Cínico, que na Grécia antiga procurava nas ruas de Atenas um homem totalmente honesto, e não o encontrava, possivelmente também não acharemos algum que esteja de acordo com nossa esperança. Mas talvez encontremos um ou outro que tenha pelo menos uma qualidade essencial: não ser corrupto. Desprezemos, também, os arrivistas, os carreiristas, aqueles reconhecidamente incompetentes e, principalmente, os desonestos ‑ a eles, o ostracismo político. 

                                  Assim, valorizando nosso voto estamos, mesmo que de forma imperceptível, dando um pequeno‑grande passo para a construção de um mundo melhor. 

                                  E, mesmo que seja difícil a luta diária que travamos conosco para sermos um pouco melhor do que éramos ontem, convém ir em frente, pelo menos por dois motivos: somos nós, através de nossas ações e omissões, que construímos o futuro que nossos filhos herdarão; por outro lado, assim agindo, talvez não tenhamos tanta vergonha (para os que a sentem) de sermos tão diferentes de Albert Schweitzer.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

DAMOS NOMES A PROCESSOS, NÃO DAMOS NOMES ÀS COISAS


Ockham
 
 
Honório de Medeiros
 

O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são (quais são suas essências).

Nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos, aquilo que nossos sentidos apreendem, de forma caótica, a partir do nosso conhecimento pré-adquirido (Kant, Bachelard, Popper).

Podemos rastrear tal concepção até o relativismo sofista (Protágoras de Abdera, Antístenes versus Platão), mesmo até Parmênides.

O nominalismo também impede a fenomenologia de Bérgson e Husserl e a pretensão de uma ciência cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo. Não há essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

Thomas Nagel (“Visão a Partir de Lugar Nenhum”; Martins Fontes; SP; 2004; 1ª edição; p. 137; nota) observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as teorias empiristas do conhecimento”.

Nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas. O Justo não está fora de mim, está em mim...

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ, QUARTA E ÚLTIMA TEORIA, QUINTA PARTE


Honório de Medeiros
Quarta teoria: o ataque a Mossoró resultou de um plano político (quinta parte) 

OS CORONÉIS QUINCAS E BENEDITO SALDANHA 

Mas se realmente Massilon tinha, por trás de si, desde o episódio de Brejo do Cruz, PB, até o ataque a Apodi, RN, as figuras maquiavélicas de Quincas e Benedito Saldanha, ainda não há como ligar diretamente os Coronéis paraibanos ao ataque a Mossoró. 

Pelo menos até onde sabemos, mesmo que os coronéis ambicionassem o controle político da Região, como o demonstram suas participações na política de Caraúbas, via o Coronel Quincas Saldanha; de Apodi, por intermédio de Benedito Saldanha, Tylon Gurgel, Martiniano Porto e Luis Ferreira Leite; e, porque não dizer, influência política no Rio Grande do Norte como um todo, haja vista a participação em episódios políticos decisivos no Estado, oriunda das relações políticas com o Interventor Mário Câmara e a histórica campanha da Aliança Social versus Partido Popular, relatada acima, em meados da década de 30. 

Isso, por uma razão muito simples: não teria como haver a invasão de Mossoró sem Lampião e, conforme exposto acima, nem o Coronel Isaías Arruda, tampouco Massilon – homem dos Saldanha –, sabia que o grande cangaceiro se dirigia a Aurora no período do ataque a Apodi.
Recordemos Sérgio Dantas[1]: 

O encontro de Lampião com Massilon deu-se em dias de maio, após o assalto a Apodi. Até aí, Lampião desconhecia completamente o novel bandoleiro. O cangaceiro Mormaço, em interrogatórios consignados nos processos-crime instaurados nas Comarcas de Martins e Pau dos Ferros, ambos em 1927, deixam claro esse particular. Também, nesse sentido, depoimento prestado por Jararaca à Polícia no mesmo ano. Todos são unânimes quanto à época do encontro. 

Ainda: 

O cangaceiro “Mormaço”, em diferentes interrogatórios prestados à Polícia (Martins, Pau dos Ferros, Mossoró e Crato), deixou claro que Lampião desejava chegar ao Ceará para refugiar-se e municiar o bando. Também acrescentou, em diversas oportunidades, que Arruda intermediava, invariavelmente, tais compras de munição. 

A NÃO SER que o projeto do ataque a Mossoró, revelado por Argemiro Liberato e denunciado pela imprensa mossoroense, estivesse na fase de planejamento e, deste, fizesse parte a noção de que somente depois, em uma outra etapa, os líderes cangaceiros seriam procurados por Massilon, etapa que teria sido precipitada para aproveitar a chegada inesperada, em Aurora, de Lampião. 

Pois é fato que, até onde se sabe, nenhuma outra pessoa, fora os Coronéis Quincas e Benedito Saldanha, teriam tanto a ganhar, AO MESMO TEMPO, politicamente, com a invasão de Apodi e Mossoró, e a deposição, pela força das armas, dos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes do poder, exceto, também, o próprio Governador José Augusto Bezerra de Medeiros, e Jerônimo Rosado. 

Os Coronéis tinham um sério e quase imbatível adversário político na Região: os Fernandes, e, principalmente, o Coronel Rodolpho Fernandes. 

E dois fatos a favor, digamo-lo assim: a vontade de José Augusto Bezerra de Medeiros de destruir o crescente poderio político dos Fernandes, e a atitude destes em relegar Jerônimo Rosado, um dos dois principais aliados políticos de Francisco Pinheiro de Almeida Castro[2] - o outro era Rafael Fernandes, ao esquecimento, como veremos um pouco adiante.
 
Rafael Fernandes: até hoje quem mais tempo passou no poder, de forma ininterrupta, no Rn 

JOSÉ AUGUSTO BEZERRA DE MEDEIROS 

Façamos uma introdução à política do estado potiguar: nos anos vinte ocorreram várias mudanças significativas em termos de poder político no Rio Grande do Norte. 

José Augusto Bezerra de Medeiros, do Seridó, herdeiro político do Coronel José Bernardo de Medeiros, líder regional desde a época do Império, transferira o centro das decisões no Estado para o Sertão, correspondendo esse poderio, no que diz respeito ao econômico, à ascendência da cultura algodoeira no Estado. 

É o que lemos em Luiz Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz[3]: 

José Augusto e Juvenal Lamartine de Faria, seu sucessor e herdeiro político, com o apoio do Presidente Artur Bernardes, conseguiram impedir Joaquim Ferreira Chaves, da oligarquia Maranhão, de chegar ao poder pela terceira vez, e, assim, praticamente decretaram seu fim.
 
 
Juvenal Lamartine: teria sido por ordem sua que morreu Chico Pereira 

A linha política do governo José Augusto insere-se na conjuntura nacional, com a oligarquia local em plena harmonia com a oligarquia que detém a hegemonia nacional. Um exemplo desse entrosamento é a visita de Washington Luis, em 1926 (após ter sido eleito Presidente da República), ao Rio Grande do Norte. 

O poder de José Augusto Bezerra de Medeiros será bruscamente interrompido pela Revolução de 1930, embora esteja no cerne da vitoriosa campanha do Partido Popular contra o Interventor Mário Câmara, tão cuidadosamente retratada por Edgar Barbosa em “HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”, já aludido. 

José Augusto Bezerra de Medeiros manobrou, o quanto pode, para instituir uma nova oligarquia no Rio Grande do Norte, relata-nos Gil Soares[4]: 

José Augusto não se limitou a cuidar do seu quatriênio. Preparou sucessões de familiares seus. O “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro anunciou logo isso. Oligarquia. E na modalidade mais rudimentar, que é a do tipo familiar. 

De início julgava-se prestigiado para esse objetivo derrubando, no interior, velhos dirigentes do seu partido, para substituí-los por elementos de sua confiança pessoal. Exemplos: 

Em São José do Mipibu, Inácio Henrique por Monsenhor Antônio Paiva; em Nízia Floresta, José de Araújo por Joaquim Freire; em Goianinha, Gonzaga Barbalho por Manoel Ottoni de Araújo Lima; em Pedro Velho e Santo Antônio, Rodopiano de Azevêdo por Joaquim da Luz e Epaminondas Mendes, respectivamente; em Nova Cruz, Anísio de Carvalho por Nestor Marinho; em Taipu, Rozendo Leite por João Gomes da Costa; em Touros, Francisco Zacarias por Joel Cristino; em Macau, Feliciano Tetéo por Armando China. E assim por diante. 

Manoel Maurício Freire (Neco Freire), de Macaíba, resistiu. Mas ficou muito desprestigiado. Viu o Governador eleger deputado estadual o comerciante Antônio de Andrade Lima, seu velho adversário local. Quando lhe chegou a vez de indicar o nome do prefeito, ei-lo obrigado a aceitar o macaibense Cícero Aranha, Chefe de Serviço do Tesouro do Estado. 

Depois do Seridó, a maior força eleitoral situava-se na Zona Oeste. Liderada pela família Fernandes. Homens pacíficos, muito dedicados a atividades agropecuárias e industriais.  

O plano, aí, seria reduzir-lhe, paulatinamente, o grande prestígio político. 

Começou, pois, o Governador, atraindo para a chapa estadual o médico Antônio Soares Júnior[5], a maior figura da oposição em Mossoró[6].
 
Antônio Soares Júnior, líder da oposição radical ao Coronel Rodolpho Fernandes

Também: 

No segundo ano do governo de José Augusto, seu primo Napoleão Bezerra, meu velho e saudoso amigo currais-novense, me dizia o seguinte no Campo de Demonstração de Jundiaí, em Macaíba: “Se os Maranhões dominaram a política do estado durante trinta anos, por que não podemos fazer o mesmo?” 

E: 

Naquele ano de 1926 era voz corrente, em Natal, que o “plano político” do governo do Estado seria o seguinte:

1º O governador José Augusto teria como sucessor seu sobrinho-afim Juvenal Lamartine e seguiria, logo, para o Senado; 2º por sua vez, o sucessor de Juvenal Lamartine, em 1932, viria a ser seu sobrinho Cristóvam Dantas; 3º este ingressaria como deputado federal logo no pleito de 1930, a fim de abrir a vaga para Juvenal Lamartine retornar ao Congresso Nacional.  

José Augusto, quando achava necessário, agia com violência, como nos recorda Gil Soares, na mesma obra: 

Causando surpresa, José Augusto demitiu sumariamente o jornalista Pedro Lopes Júnior do cargo de escrivão da Delegacia Auxiliar de Polícia, por causa de comentários desfavoráveis a atos do seu governo. 

Como seria de se esperar, o Tribunal de Justiça, unânime, mandou-o retornar ao cargo. Em ambiente hostil, alta noite, elementos fazendo-se passar por policiais, bateram a sua porta. Pedro Lopes foi, pelo quintal, ocultar-se em casa de um vizinho. Preferiu deixar o Estado. 

Ainda: 

Vitoriosa a Revolução de 1930, o advogado Bruno Pereira em telegrama divulgado pela imprensa, manifestou seu “desafeto”: 

“Interventor Irineu Joffily – Natal. 

Pessoa vossa excelência felicito minha estremecida terra redimida garras mais imoral oligarquia[7] do mundo. Atenciosa saudação. Bruno Pereira”.
 
                            E, também, Spinelli[8]: 

Em 1921, Café Filho e Kerginaldo Cavalcanti apoiaram a Reação Republicana de Nilo Peçanha. Em 1928, Café Filho foi eleito vereador em Natal, mas o governo queimou as atas, procedendo a novas eleições a “bico de pena”. Nesse mesmo ano, o sindicato[9] e o jornal[10] foram invadidos e destruídos pela polícia do governador Juvenal Lamartine, e Café Filho foi obrigado a fugir do Estado, indo conspirar com os políticos e militares da Aliança Liberal na Paraíba.
 
CONTINUA...


[1] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; Cartgraf – Gráfica Editora; 2005; Natal; RN.
 
[2] Falecido em 1922.
 
[3] “HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE”; SUASSUNA, Luiz Eduardo Brandão e MARIZ, Marlene da Silva; Sebo Vermelho; 2ª. Edição; 2005; Natal, Rn.
 
[4] “O PASSADO VISTO POR GIL SOARES”; MUINIZ, Caio César (organizador); Coleção Mossoroense; Série “C”; volume 1.147; 2005; Mossoró, RN.
 
[5] Eis o líder da oposição a Rodolpho Fernandes em Mossoró, razão de suas principais divergências com José Augusto. Foi o primeiro mossoroense a se doutorar em Medicina. Filho de Antônio Soares de Góis e Josefa Soares de Góis, nasceu em 4 de maio de 1881, no lugar Barrocas, subúrbio da cidade. Formou-se na Bahia, em 1905. Prefeito de Mossoró de 21 de setembro de 1933 a 4 de novembro de 1935 (dados obtidos em (BRITO, Raimundo Soares de; “RUAS E PATRONOS DE MOSSORÓ”; Coleção Mossoroense; Série “J”; v. 01; dezembro de 2003; Mossoró. Raimundo Nonato lembra, em “MEMÓRIAS DE UM RETIRANTE” (Fundação Guimarães Duque e Fundação Vingt-un Rosado; Coleção Mossoroense; Série “C”; v. 1.235; 3ª edição; 2001; Mossoró), ao relatar um dos embates entre os Fernandes e José Augusto Bezerra de Medeiros, que “Neste particular, a situação do Dr. Soares Júnior era, realmente, privilegiada, pois comandava um forte grupo de oposição, cujo concurso o governador do Estado via com bons olhos.”
 
[6] Grifei.
 
[7] Oligarquia liderada por José Augusto.
 
[8] SPINELLI, José Antônio; “CORONÉIS E OLIGARQUIAS NO RIO GRANDE DO NORTE”; EDUFURN; 1ª edição; Natal; 2010.
 
[9] Sindicato dos Operários de Natal.
 
[10] “Jornal do Norte”.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

DA ARTE DE ROMPER UM GRANDE AMOR


 
 
Honório de Medeiros 

Muito tempo depois de sua separação eu a encontrei em um café, contemplando o mundo lá fora com aqueles olhos azuis maravilhosos através das volutas da fumaça do cigarro. 

Após os cumprimentos de praxe, não resisti e lhe perguntei como sobrevivera ao fim do seu casamento, tão minuciosamente condenado ao fracasso, segundo sua própria avaliação, quando nos vimos pela última vez. 

Ela sorriu, se espreguiçou como uma gata, tomou lentamente um gole de café, e me perguntou se eu queria saber a história toda ou somente o desfecho, com algumas pinceladas óbvias como arremate. 

                    Antes de lhe dizer que não dispensava os detalhes me lembrei de que parte do seu fascínio era a administração do silêncio, pois este nos induzia a supor regiões misteriosas do seu pensamento onde a fantasia bordava, junto com a realidade, situações fascinantes para quem soubesse ousar e tivesse coragem de receber. 

Já naquele tempo ela reinava impune, a tripudiar das vãs tentativas dos conquistadores ávidos e tímidos admiradores, sem que as recusas constantes diminuíssem a admiração que granjeava. Nela, nada se eximia de seduzir, mas mesmo assim um dia sucumbira a uma paixão inesperada e violenta, que a retirara do circuito das festas e badalações. 

                    Desde o começo nós, seus amigos, percebêramos que não daria certo aquela paixão. Sutilmente sua liberdade fora sendo restringida – logo a dela, tão essencial a si. Aos poucos, milímetro por milímetro, cedera sem notar, encantada por uma proposta enleadora de construção do futuro a dois, mão a mão, através da imagem de uma ponte afetiva que se sabia onde começava, mas que terminaria no infinito. 

Embora apaixonada foi através da persuasiva magia da visualização de um amor único, daqueles que nutrem uma alma só em dois corpos distintos, que ocorrera a derrubada das suas últimas resistências. 

                    Mas finalmente ela despertou e a ânsia de viver livre, solta, cobrou sua fatura. Passou a se sentir sufocada e a perceber as invisíveis amarras que lhe prendiam o próprio voo. Queria ir embora, queria sumir, queria desaparecer, mas havia um obstáculo, um sério senão a impedir sua liberdade: o orgulho desmedido, o egocentrismo concentrado, a incontida autoimagem que seu companheiro fazia de si mesmo; não era possível que o relacionamento fosse desfeito sem que a explicação a ser dada para isso preservasse sua posição social e o alto conceito que fazia de si mesmo. 

                    “Eu não podia lhe dizer que ia embora por que o amor acabara; seu orgulho não aceitaria ser trocado por nada, por coisa alguma. Ele não admitiria nunca que não fora capaz de me segurar apaixonada, não admitiria que eu nada mais sentisse exceto um afeto meio dependente do alívio do afastamento definitivo. Tive, então, que criar uma paixão inexistente por outro e, pior, por alguém abaixo da escala de valores que ele prezava. Fui deixando que ele imaginasse que a verdade, acerca dessa paixão, estava sendo arrancada a pedaços, tamanha era minha vergonha. 

 Assim, fui repudiada, me libertei, e ele pode dizer por aí, quando questionado, que eu havia sido uma aposta perdida por que mal avaliada, que eu fui incapaz de perceber a qualidade do sentimento que despertara, que eu fui alçada a um nível incompatível com minha ausência de sofisticação e, assim, depois, tinha sido levada de volta, como seria natural, através de um "qualquer", ao mundo ao qual realmente pertencia”. 

                    Contada a história se foi, não sem antes me endereçar um sorriso meio irônico, como se a trama que ela encetara não tivesse envolvido somente um homem, mas todos os outros tão previamente condenados a não escapar, no final das contas, da malícia de toda mulher.