sexta-feira, 26 de junho de 2015

O HOMEM É MUITOS, MESMO SENDO NENHUM

Bachelard

* Honório de Medeiros


“Iluminar a realidade”, disse-me o poeta/filósofo. Ou seria filósofo/poeta? Não importa. Ele é sobrevivente de outras eras. Um humanista. Diz-me, hoje, com os olhos voltados para ontem: "a filosofia não mais se expõe poeticamente. Traja outras vestes, sem elegância."

Dou-lhe razão. Foi-se o tempo de Heráclito de Éfeso: "não se pode entrar duas vezes no mesmo rio", célebre fragmento que tanto impressionou Wittgenstein. "Tudo flui"... Quão bela é a filosofia dos gregos arcaicos...

Quem terá sido o último dos filósofos/poetas? Talvez Gaston Bachelard: "o Conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão". Ou mesmo: " O pensamento puro deve começar por uma recusa da vida. O primeiro pensamento claro é o pensamento do nada."

Suprema gnosiologia...

Certa vez, quando exposto um senão, o horizonte foi apontado, naquela linha onde se fundem mar e céu, e a resposta enunciada pelo poeta/filósofo: "procure iluminar a realidade"; "somente então podemos enxergar."

Simples assim.

A poesia – ela transfigura e sintetiza o comum, o banal, o trivial. Muitas palavras lavradas na árida linguagem técnica diriam o mesmo, até de forma mais precisa, reconheçamos. Entretanto essa frase descerrou véus e foi possível enxergar claramente, pois há sempre uma nesga, um fragmento de realidade a ser iluminada, revelada, exposta, onde antes nada havia além de escuridão e ignorância.

O Homem é muitos, mesmo sendo nenhum.

A TRINCHEIRA DE EZEQUIEL FERNANDES QUANDO DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ

* Honório de Medeiros

Ocorreu que Raimundo Nonato Alfredo Fernandes, nascido na fazenda “Cantinho”, ali entre Pau dos Ferros e Encanto, no Alto Oeste do Rio Grande do Norte, em 2 de junho de 1910, estando na roça, no apogeu dos seus quinze anos, encostou no terreiro de sua casa um Ford 1922 com duas pessoas dentro: seu primo Elias Fernandes, irmão de Alfredo Fernandes, proprietário da empresa homônima em Mossoró, no mesmo Estado, e da residência na Avenida Getúlio Vargas vizinha a celebre casa do Coronel Rodolpho Fernandes, de quem era cunhado, que hoje é a sede da Prefeitura da Cidade, e um motorista ao volante, o depois cangaceiro que participou dos ataques a Apodi e Mossoró e que atendia, na época, pelo nome de Julio Porto.

Elias vinha convidá-lo para ir trabalhar na empresa Alfredo Fernandes, a convite do seu proprietário.

Atentemos para o detalhe: em 1922 Júlio Porto, natural de Aurora, no Ceará, já conhecia, e bem, Mossoró, onde era motorista dos Fernandes.

Elias e Alfredo Fernandes eram filhos do Coronel Adolpho Fernandes, protagonista do “Fogo de Pau dos Ferros”, quando sua família, por ele liderada, expulsou o líder político Coronel Joaquim Correia da cidade, em 1919. O Coronel Joaquim Correia jamais voltou a Pau dos Ferros. E o Coronel Adolpho Fernandes era seu Prefeito (Intendente) quando Lampião atacou Mossoró.

Passam-se cinco anos. Estamos em 1927. Junho. No dia 13, Lampião invade Mossoró. No final da Rua hoje denominada Dr. Francisco Ramalho, no sentido de quem vai para o centro da cidade, na última residência, do lado direito, reside Ezequiel Fernandes de Souza, sobrinho do Coronel Adolpho Fernandes e sócio de Alfredo Fernandes. Nela, a poucos passos da Igreja de São Vicente, montou-se uma tosca trincheira para aguardar os cangaceiros. 

Sob a liderança de Ezequiel Fernandes lá estava sua esposa Ester, que havia dado a luz, e padecia de febre puerperal, o chofer de um caminhão da Prefeitura que aguardava condições para retirá-la da cidade, mas que fugiu tão logo aconteceu os primeiros tiros, um freguês da empresa Alfredo Fernandes chamado de “Velho Chico”, um amigo da família, Maurílio, que lá estava porque tinha raptado Isabel, sobrinha de Afonso Freire e a depositado sob os cuidados dos donos da casa. Os demais, quinze pessoas, recolheram-se em um quarto no centro, no entorno da cama da doente: Ezequiel Fernandes, Pedro Ribeiro, seu primo, seus filhos Laete, Luís e Aldo, Chico Sena, seu sobrinho, Isabel, as domésticas Leonila e Esmerinda, as vizinhas Maria Leite e sua filha Laura, Julieta, filha de Delfino Fernandes, Alzenita Fernandes e Raimundo Fernandes, então com vinte anos.

Os integrantes da trincheira, que se posicionaram no telhado da residência foram o “Velho Chico” e Maurílio. 

Dessa vez Raimundo Fernandes não chegou a ver Julio Porto, mas o ex-motorista estava com os cangaceiros de Lampião e Massilon no ataque a Mossoró.

Ester Fernandes não resistiu à doença e faleceu quatorze dias depois, no dia 27 de junho, cercada pela família.

Tudo aqui contado conforme o livro “RAIMUNDO FERNANDES, ANTEPASSADOS E DESCENDENTES”, da lavra de Inês Maria Fernandes de Medeiros, ainda a ser lançado, tiragem de junho de 2015, sem outras informações acerca de sua edição, com alguns acréscimos do autor do artigo. 

domingo, 21 de junho de 2015

POUCOS SABEM VIVER A SÓS

* Honório de Medeiros

Houve um tempo no qual eu morei em uma cidade pequena. Sentia tédio, principalmente aos domingos, quando tudo parava e as pessoas se recolhiam a suas casas. Um dia me perguntaram: “como suporta viver aqui? Não há nada para se fazer.” Depois fui para a cidade grande. Às vezes também sentia tédio, principalmente aos domingos. Menos, entretanto, pois perambulava por lugares onde pessoas se encontravam, falavam, riam, cantavam, brigavam, se deslocavam em vaivém incessante. Tentando compreender eu pensava com meus botões: “deve ser porque, aqui, há movimento, pois lá também existiam coisas para se fazer, embora a sós.” “Mas não, não é o movimento, o bulício, o frenesi, uma vez que, mesmo assim, sinto tédio, embora em menor quantidade.” “Então não é algo que está fora de mim, ao contrário, está dentro.” “É minha alma inquieta, que se entorpece, em alguns momentos, com a aparência do algo-sendo-feito fora de mim.” Pois a noção de que não nos sentimos entediados em lugares onde muitos estão em atividade, de que sempre há algo para se fazer, típica da e na cidade grande, é uma ilusão, entorpece nossa alma inquieta, e nos permite sobreviver à rotina. Na verdade o tédio é uma consequência de nossa alma inquieta, viciada em não ficar a sós. Queremos movimento, cores, sons, sentir que estamos participando. Mas quem não parou em alguma festa, por um momento, e se perguntou: “o que faço eu aqui?” Como somos empurrados, algumas vezes sutilmente, outras brutalmente, para participar desse convescote que é a vida comum, somos eternos inadaptados. Poucos sabem viver a sós. Poucos têm serenidade na alma.