terça-feira, 20 de maio de 2014

DE GENTILEZA, CORTESIA, POLIDEZ E HIPOCRISIA



* Honório de Medeiros


As pessoas confundem gentileza com fragilidade. Acham, embora não externem, que quem é gentil é fraco.


Elas não expressam o que sentem, às vezes, porque não conseguem abstrair a sensação que lhes acomete. Mas agem como se o conseguissem. Origina-se, daí, a condescendência, o menoscabo.

É fácil entender essa situação. A gentileza é um degrau além da cortesia que, por sua vez, está acima da polidez. Esta pressupõe um distanciamento, um desinteresse pelo interlocutor, embora, talvez, um certo respeito cético pelas convenções humanas.

A cortesia direciona a atenção das pessoas para seus interlocutores, podendo resvalar, se não houver algum cuidado, em plena hipocrisia. Já o gentil é, em todos os aspectos, realmente interessado e respeitoso com seus interlocutores.

Poderíamos dizer que o gentil é um romântico; o cortês, bem-educado; e o polido, distante, até mesmo frio.

Tudo isso para dar razão a um amigo que cansado de ser confundido com alguém a quem se possa tratar com condescendência, anda migrando lentamente para a polidez. Embora não o faça, ainda que por um pouco de hipocrisia, em sua mente, da mão que estende aos outros somente vai a ponta dos dedos.

Indagado acerca de sua mudança por aqueles que lhe são próximos, culpa, sarcasticamente, o avassalador crescimento da hipocrisia ingênua, aquela que o vulgo batizou de falsidade, tão diferente da hipocrisia irônica, na qual quem fala sabe que quem o escuta percebe facilmente que ali somente se vive um jogo, sutil, cujo resultado é sempre uma soma zero.

Eu, pelo meu lado, penso que na verdade o que acontece é que esse meu amigo vai, a marcha batida, no rumo do ceticismo.

Nada mais que isso.

Arte em arthur.bio.br

segunda-feira, 19 de maio de 2014

DESCANSE EM PAZ, MIGUEL!




* Honório de Medeiros

Em algum lugar do céu, cheio de livros, garrafas de vinho e boa comida, você há de rir, como sempre, ao se lembrar das histórias vividas na velha casa da Alexandrino de Alencar, em Natal, ou nos veraneios em Tibau, quando éramos todos tão jovens e a vida apenas o começar da existência.
 Adeus, Miguel. Descanse em paz.

DESCONCERTAR O LEITOR SISTEMATICAMENTE

Gustave Flaubert


* Honório de Medeiros

Na apresentação feita à "Bouvard e Pécuchet", de Flaubert, aqui no Brasil publicado pela Estação Liberdade, a pesquisadora Stéphanie Dord-Crouslé, autora do estudo "Bouvard et Pécuchet: une encyclopédie en farce" (2000), ao abordar o muito interessante "Dicionário de Idéias Feitas", um dos fragmentos que iria fazer parte do segundo volume, lembra que seu objetivo é "desconcertar o leitor sistematicamente". 

E menciona um trecho de uma carta de Flaubert, datada de 4 de setembro de 1850, enviada do Oriente para seu amigo Louis Builhet: "Você faz bem em pensar no Dicionário das Idéias Feitas. O livro, completamente rematado e precedido de um bom prefácio, onde se indicaria como o texto foi criado com o propósito de vincular o público à tradição, à ordem, à convenção geral, e organizado de uma maneira que o leitor não saiba se estão ou não zombando dele, talvez fosse uma obra estranha e capaz de fazer sucesso, pois seria muito atual" (grifo meu).

Não é esse insight algo que Borges, autor do "Manual de Zoologia Fantástica", nome primitivo do "Livro dos Seres Imaginários", assinaria embaixo?

Lá no "Dicionário de Idéias Feitas" encontramos: "poesia (A). É completamente inútil. Fora de moda", seguido de "poeta. Sinônimo de sonhador e de palerma". Um pouco antes: "pensar. Algo penoso. As coisas que nos obrigam a pensar em geral são abandonadas". Um pouco depois: "xadrez (jogo). Sério demais para um jogo, fútil demais para uma ciência".

Quanto à "Bouvard e Pécuchet", Dord-Crouslé lembra que o eixo temático que norteou Flaubert sempre foi enganar o burguês, mas não somente, também castigá-lo pelos assaltos repetidos da tolice contra o espírito. Para tanto lembra uma outra correspondência de Flaubert, desta vez para sua amante Louise Colet, datada de 16 de dezembro de 1852, na qual ele diz: "Às vezes, tenho pruridos atrozes de descompor os humanos, e um dia, daqui a dez anos, vou descompô-los em algum romance longo de amplo contexto..."

Viva Flaubert!

Arte em: irancartoon.ir