quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

FELIZ NATAL, FELIZ ANO NOVO!

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Quando vi essa imagem pela primeira vez, ela tinha sido postada por minha querida amiga Camila Cascudo.

Hoje me lembrei dela e não resisti: aí está para vocês.

Na primeira vez e todas as outras que a vi, senti uma vontade muito forte de pegar essa criança no colo, abraça-la, cuidar dela, tentar manter esse sorriso lindo permanentemente em seu rosto.

É esse abraço que eu mando para todos vocês, enquanto um Feliz Natal e Ano Novo!

domingo, 20 de dezembro de 2020

CANGAÇO: UMA TRINCHEIRA EM MOSSORÓ, 1927, E O MISTERIOSO JÚLIO PORTO

 

blogdetelescope.blogspot.com
Mossoró, primeira metade do século XX

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Nos idos de 1925, o adolescente Raimundo Nonato Alfredo Fernandes, então com quinze anos, viu encostar, no terreiro da casa de seus pais, José Fernandes Chaves e Maria Adília Fernandes, um Ford 1922 com duas pessoas dentro. 

Era Elias Fernandes, que vinha convidá-lo para trabalhar com Alfredo Fernandes, proprietário da empresa do mesmo nome em Mossoró, e da lendária residência na Avenida Getúlio Vargas, vizinha, por um lado, à também lendária residência do Coronel Rodolpho Fernandes, de quem era cunhado, e que hoje é a sede da Prefeitura da Cidade de Mossoró, e, pelo outro, à também lendária Igreja de São Vicente de Paula.

Elias e Alfredo Fernandes, primos legítimos de Raimundo Nonato, eram filhos do Coronel Adolpho Fernandes, protagonista do “Fogo de Pau dos Ferros”, em 1919, quando sua família, por ele liderada, expulsou o líder político Coronel Joaquim Correia da cidade. O Coronel Joaquim Correia jamais voltou a Pau dos Ferros. E o Coronel Adolpho Fernandes era Prefeito (Intendente) da cidade quando Lampião atacou Mossoró.

A outra pessoa no carro atendia pelo nome de Júlio Porto, e era motorista da família Fernandes. Raimundo Nonato não sabia, mas viajou até Mossoró ao lado do seu primo e de um cangaceiro que teve papel importante nas articulações que suscitaram os ataques a Apodi, em 10 de maio, por Massilon e seu bando, e Mossoró, em 13 de junho de 1927, dessa vez por ninguém menos que o próprio Lampião. 

Atentemos para o detalhe: em 1922 Júlio Porto, natural de Aurora, no Ceará, já conhecia, e bem, Mossoró.

Passam-se dois anos. Estamos em 1927. Junho. No dia 13, Lampião invadiu Mossoró.

No final da Rua hoje denominada Dr. Francisco Ramalho, lateral da Igreja de São Vicente de Paula, no sentido de quem vai para o centro da cidade, do lado direito, na última residência, residia Ezequiel Fernandes de Souza, sobrinho do Coronel Adolpho Fernandes e sócio de Alfredo Fernandes. 

Nela, a poucos passos da Igreja, montou-se uma tosca trincheira para aguardar os cangaceiros.

Sob a liderança de Ezequiel Fernandes lá estavam sua esposa Ester(1), que havia dado a luz e padecia de febre puerperal; o chofer de um caminhão da Prefeitura que aguardava condições para retirá-la da cidade, mas que fugiu tão logo aconteceu os primeiros tiros; um freguês da empresa Alfredo Fernandes chamado de “Velho Chico”; e um amigo da família, Maurílio, que lá estava porque tinha raptado Isabel, sobrinha de Afonso Freire e a depositado sob os cuidados dos donos da casa.

Os demais, quinze pessoas, recolheram-se em um quarto no centro, no entorno da cama da doente: Ezequiel Fernandes; Pedro Ribeiro, seu primo; seus filhos Laete, Luís e Aldo; Francisco Fernandes de Sena (Chico Sena), seu sobrinho; Isabel; as domésticas Leonila e Esmerinda; as vizinhas Maria Leite e sua filha Laura; Julieta, filha de Delfino Fernandes; Alzenita Fernandes; e Raimundo Nonato, então com dezessete anos.

Os integrantes da trincheira, que se posicionaram no telhado da residência foram o “Velho Chico” e Maurílio(2).

Dessa vez Raimundo Nonato não chegou a ver Júlio Porto, mas o ex-motorista dos Fernandes que fora lhe buscar em Pau dos Ferros talvez tenha estado com os cangaceiros de Lampião e Massilon no ataque a Mossoró. Com certeza já estivera na invasão de Apodi, com Massilon.

Júlio Porto, o misterioso Júlio Porto, nasceu em Aurora, no Ceará, mesma cidade onde nascera e exercia enorme influência política no Cariri o Coronel Isaías Arruda. 

Em 1927 Júlio Porto tinha vinte e três anos de idade. Júlio Porto não era Porto. Seu verdadeiro nome era Júlio Sant’anna de Mello. O “Porto” viera de sua estreita ligação com Martiniano Porto, fidalgote nas terras do Apodi, e inimigo sangue-a-fogo do Coronel Francisco Pinto, líder político da cidade.

Martiniano Porto era relacionado por laços de interesse recíprocos com Tylon Gurgel e Benedito Saldanha(3) - futuro Prefeito daquela cidade -, todos ferrenhos opositores do Coronel Francisco Pinto.

Tylon Gurgel, por sua vez, era sogro de Décio Hollanda, e Benedito Saldanha, protetor de Massilon Leite no Ceará, fronteira com Apodi, o qual se considerava “afilhado” de seu irmão, o Coronel Quincas Saldanha, a quem chamava de "padrinho", desde os tempos de sua jagunçada em Brejo do Cruz, quando matou Manoel Paulino de Moraes, José Augusto Rezende (juiz da cidade), feriu Minervino de Almeida (também juiz), e Severino Elias do Amaral, a serviço de um consórcio de coronéis da região.

Júlio Porto pode ter sido um dos elos de ligação entre os inimigos políticos dos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, com o Coronel Isaías Arruda, pelo fato de ser de Aurora(4). Ele está presente em momentos cruciais ligados à invasão de Apodi e Mossoró.

Em seu depoimento à polícia Bronzeado corrobora essa versão, ao afirmar que:

“trabalhava com o senhor José Cardoso, que mora em uma fazenda do senhor Izaias Arruda chefe de Missão Velha e do qual o Cardoso é primo. Estava ali trabalhando quando chegou a ordem do senhor Izaías de seguirem para Apody, afim de fazerem o ataque já conhecido, a convite do senhor Décio Hollanda, morador em Pereiro. Ele e outros não queriam seguir, mas foram obrigados. O portador da carta de Décio fora o conhecido ‘chauffeur’ Júlio Porto, também bandido, que aqui morou”(5).

Júlio Porto conhecia Mossoró, portanto, como ninguém. Raul Fernandes nos relata o seguinte, em A MARCHA DE LAMPIÃO(6): 

"Joanna Bezerra da Silva, conhecida por Doca, deu-nos uma entrevista interessante: Morava em Mossoró. Empregada doméstica da casa de José de Oliveira Costa (Costinha Fernandes), comerciante, sócio da firma Tertuliano Fernandes & Cia. Disse que Júlio Porto fora por último chofer de caminhão da referida firma. Meses antes do assalto a Apodi, desaparecera de Mossoró. Vez por outra aparecia à noite, muito apressado. Entrava pelo portão do fundo do quintal da casa, pedia café à Doca e sumia. Aconteceu chegar vestido à moda de cangaceiros. Dizia ser o traje onde trabalhava".

Sendo de Aurora, Ceará, com certeza Júlio Porto sabia quem era José Cardoso, proprietário da Fazenda “Ipueiras”, parente e aliado do Coronel Isaías Arruda. A ele, quem sabe, apresentou Décio Hollanda, genro de Tylon Gurgel, amigo e correligionário de Martiniano Porto e Benedito Saldanha. Disse a Décio Hollanda, representante do grupo político contrário aos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, talvez, que José Cardoso era o homem certo para se chegar ao Coronel Isaías Arruda e, através dele, a cangaceiros e jagunços a serem comandados por Massilon.

É possível que Júlio Porto não tenha participado do ataque a Mossoró, embora estivesse na invasão de Apodi. Essa é a opinião de Calixto Jr, no excelente VIDA E MORTE DE ISAÍAS ARRUDA(7):

"Depois do assalto (a Apodi), tendo regressado a Aurora, Júlio Porto retorna à casa de Mundoca Macêdo no Angico, a quem vendeu por 95$000 um rifle e cinquenta balas que lhe havia sido cedido para a empreitada. Efetuada a venda, retirou-se para Juazeiro do Padre Cicero, onde viria a matrimoniar-se, ainda em 1927. Lançando mão de algum dinheiro que a esposa possuía, montou carpintaria nas proximidades da atual rua do Cruzeiro, onde trabalhou por uma temporada até ser preso".

Uma vez preso e recambiado para Apodi, como visto, e liberto por Roldão Maia, o assassino do Coronel Chico Pinto, então carcereiro ou coisa que o valha, sumiu no oco do mundo...

(1) Ester Fernandes não resistiu à doença e faleceu quatorze dias depois, no dia 27 de junho, cercada pela família.

(2) Tudo aqui é contado conforme o livro RAIMUNDO FERNANDES, ANTEPASSADOS E DESCENDENTES, da lavra de Inês Maria Fernandes de Medeiros, com alguns acréscimos.

(3) Do pesquisador Marcos Pinto, acerca de Décio Hollanda, Benedito Saldanha, e Tylon Gurgel, recebi a seguinte correspondência eletrônica, em 23 de janeiro de 2012: 

"Encontrei um fato por demais interessante no inquérito/processo que apurou o 'FOGO DE PEDRA DE ABELHAS'.

Consta por testemunha firme e valiosa que DÉCIO HOLLANDA comprou, no começo do ano de 1925, duas mil balas de rifle e mandou esconder em local que o Capitão Jacintho não conseguiu localizar. Agora, veja a coincidência: dois anos (1927) depois consta que Lampião recebeu um suprimento de duas mil balas de rifle quando se preparava para atacar Mossoró. 

Ora, se esta munição não foi gasta nem apreendida pelo Capitão Jacintho, é a mesma que Décio conduziu, em caixões muito bem disfarçados, “escanchados” em lombos de burro, segundo octogenários que ainda hoje comentam o episódio em Felipe Guerra.

Estou alinhavando um novo artigo que terá o seguinte título: “CANGAÇO NO OESTE POTIGUAR – DO FIO DA NAVALHA AO FIO DA MEADA. Vou provar por A mais B a proteção dada ao cangaceirismo por parte dos desembargadores FELIPE GUERRA e HORÁCIO BARRETO e do Juiz de Direito JOÃO FRANCISCO DANTAS SALES, que recebia abertamente, em sua casa em Apodi, Décio Holanda, Tylon Gurgel e Benedito Saldanha.

JOÃO DANTAS SALES foi transferido, “a pedido”, para Acari, em 25 de maio de 1925, por instâncias do Governador José Augusto, que convenceu o então Presidente do Superior Tribunal de Justiça Estadual, atual TJE.

Acrescente-se que HORÁCIO BARRETO era sobrinho de JUVÊNCIO BARRETO, que veio de Martins para Apodi em 1915, à convite de MARTINIANO DE QUEIRÓZ PORTO, para fixar residência e cerrar fileira na oposição à família PINTO comandada por Tylon Gurgel e seu genro Décio Hollanda. 

O Dr. José Fernandes Vieira também traficou influência em favor do seu sogro Martiniano Porto, sendo certo que, em 1925, o aconselhou a ir residir em Pau dos Ferros. 

Observo que os dois mil cartuchos que foram comprados por Décio Hollanda, o foram em Mossoró, em 1925. 

Lembrei-me de outra particularidade: o Desembargador Horácio Barrêto era sobrinho da esposa (Alexandrina Barrêto) do Governador do Rio Grande do Norte, Joaquim Ferreira Chaves, que deu apoio oficial à perseguição policial a Joaquim Correia e aos Ayres em Pau dos Ferros, em 1919. Horácio e Felipe Guerra foram indicados e nomeados desembargadores por Ferreira Chaves em 1919. 

Felipe Guerra foi candidato e eleito Deputado Estadual em 1934 na chapa dos “Pelabucho” na qual constava, ainda, Benedito Saldanha".

(4) Leiamos um auto de interrogatório de Júlio Porto no qual ele informa que é cearense e, também, que o guarda que lhe deu fuga, jagunço do Coronel Benedito Saldanha, foi o mesmo Roldão Maia que anos depois assassinaria o Coronel Chico Pinto: 

"Auto de perguntas feitas a Julio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto.

Aos vinte e dois dias do mês de maio do ano de mil novecentos e trinta e três, nesta cidade de Apodi, município do mesmo nome, Estado do Rio Grande do Norte, em o salão da cadeia pública desta cidade, aqui presente o cidadão Osório Martins de Moura Brasil, Delegado de Polícia deste município, comigo escrivão abaixo assinado, presente o preso Júlio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto, pela mesma autoridade lhe foram feitas as seguintes perguntas: Qual o seu nome, prenome, idade, estado, profissão, naturalidade, profissão, residência e se sabe ler e escrever? Respondeu chamar-se Júlio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto, com vinte e nove anos de idade, solteiro, motorista, natural do Estado do Ceará, filho de Manoel Sant’Ana de Melo e Francisca Maria da Conceição, residindo nesta cidade, sabendo apenas assinar o nome. Perguntado como fugiu da prisão, quem o auxiliou e porque voltou? Respondeu que em o dia vinte do corrente mês, cerca de dezenove horas, com um pedaço de pau, abriu a prisão em que se achava e abrindo o portão, saiu pelo interior da cadeia; que se tinha alguma praça o guardando na ocasião em que saiu da prisão, não viu; que saiu na carreira na procura de Mossoró, onde destinava-se; que chegando no lugar chamado “Mato Verde”, e depois de subir a serra, resolveu voltar, chegando hoje nesta cidade, cerca de nove horas; que não teve quem o auxiliasse a fugir da prisão, bem assim quem o aconselhasse a fugir; que saiu como um doido quando saiu, pois estava bastante ébrio; que passou em casa de Arnóbio Câmara, despediu-se da mulher deste e saiu às carreiras; que Arnóbio não estava em casa quando passou por lá; que da casa de Arnóbio saiu pela estrada afora em busca de Mossoró; passou em casa de uma mulher conhecida por Preta, despediu-se da mesma e seguiu viagem; que no Sítio ? mais ou menos, nas proximidades da casa de José Honorato de Moraes, vulgo Zeca ?, pressentiu que ia a sua procura uma força; que ocultou-se dentro do mato e viu quando a força passou, reconhecendo serem uns soldados; que na tarde do dia em que fugiu andava só uns soldados da força do Tenente Virgílio Barbalho, e chegando em casa de Amália de Tal, os mesmos soldados tomaram um pouco de aguardente e deixaram um bocado em um copo para o respondente; que tomou o aguardente e saiu logo embriagado não sabendo o que ia fazendo; que quem trancou o respondente na prisão no dia em que fugiu foi o guarda Roldão, isso por lhe terem dito. E como nada mais disse..."

(5) O CANGAÇO NA IMPRENSA MOSSOROENSE; PIMENTA, Antônio Filemon Rodrigues; Tomo II; Coleção Mossoroense; Série “C”; nº1.104; 1999; Mossoró. 

(6) 4ª. Edição; Nota 9 ao Segundo Capítulo.

(7) CALIXTO JÚNIOR, João Tavares; Fortaleza: Expressão; 2019.

sábado, 19 de dezembro de 2020

POESIA: A BALADA DO RETORNO

 

https://estudiopratyahara.com.br/2019/03/03/noite-chuvosa-1314/

* Honório de Medeiros (honóriodemedeiros@gmail.com).

Agora, retorno.
Recolho as velas da minha nau imaginária. 
Solto a âncora.
Desço ao cais.
Respiro fundo a solidão da noite.
Olho as luzes, as construções, e sigo.
Caminho lentamente.
A neblina molha as pedras, me molha. 
Chego à minha porta. 
Entro.
Enxugo o rosto molhado com o braço.
Tomo um grogue. 
Eis que chega seu sorriso luminoso,
Seu colo perfumado,
Seu olhar de madrugadas.
Nossa história comum. 
Então, primeiro há o silêncio.
Depois, vinho, cantigas e risos.
Dança-se. 
Estou em casa.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

ELEGÂNCIA: A VELHA SENHORA

 

"Portrait Maman”, de Edith Blin. 1943, desenho a carvão, em http://artenarede.com.br/blog/index.php/retratos-de-uma-velha-senhora/

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Formavam um belo casal. 

Ambos já acima dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar pausado, vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da hora do “ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles. 

Quando os vi pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas, parecendo um casal de namorados a apreciar a companhia um do outro, enquanto flanavam. 

Embora ela aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. E notava-se claramente seu cuidado para com ele. Sua mão que enlaçava era também a que conduzia, guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como irregularidades no calçamento ou cadeiras postas no meio do caminho. 

Mas não era só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e lhe fazia breves relatos - querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou chamava sua atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da criança sentada na mesa próxima a sua. 

Mesmo após vezes seguidas observando-os, ao longo dos dias, quase nunca os vi sorrir. Eram muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um carinho eventual de um para com o outro. 

Não que isso demonstrasse distanciamento, ao contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era perceptível – quanto ao trivial de gestos desnecessários, típica de um relacionamento antigo, onde o entendimento era perfeito e o silêncio comum pleno de compreensão. 

Eu e os outros conversamos vezes sem conta acerca do casal, com quem os atendia. Tinham nascido em outro lugar, disse-nos o garçom, uma cidade grande, eram aposentados e tinham optado por não terem filhos. 

Agora, no final da vida, desejando mais tranquilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos nem conhecidos. 

“Quem cuida deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do apartamento e do restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”, prosseguiu, “já têm um motorista de táxi de confiança que os leva para onde desejam ir”. “Saem?”, continuei. “Vão à missa, aos médicos...” 

Após algum tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa reserva em cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa coloquial. 

Talvez já não tivessem interesse em construir novas relações e absolutamente não se sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do tipo de paz que ela lhes proporcionava? Se não fosse assim, por qual motivo teriam saído de sua cidade e vindo para cá, um lugar desconhecido? 

No fim, tudo acabou como esperado, como sempre acaba tudo. Ele teve um infarto fulminante e ela ficou só. No início, pelos relatos, pensou em continuar no apartamento que dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi sua ausência na hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar em um local especializado em idosos. 

Antes, aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um “souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito, delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez, nem dissera para onde ia. 

Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara felicidade, e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar. 

Em mim, como vieram, foram-se. Deixaram por muito tempo uma lembrança vaga, um toque de melancolia de um matiz suave, crepuscular, como uma fotografia em sépia, algo a ficar em um nicho adormecido do meu museu de lembranças. 

Resolvi resistir proustianamente. Na medida dos meus limites, eis esse registro, enquanto homenagem à elegância, discrição, e à arte de cultivar a reserva pessoal, tão desprezada nos dias de hoje. 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

DESTINO: APENAS FAGULHAS NA NEBLINA

 

Barreira de Névoa | Ilustração: Tianhua X

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

"O mais velho estava seguindo os passos do pai, só que em outro ministério, e já se aproximava daquele estágio no serviço público em que a inércia é recompensada com a estabilidade" (A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi).

Esse pequeno trecho de uma das mais expressivas novelas do grande escritor russo nos mostra como o homem e suas relações são os mesmos, malgrado o tempo e a distância.

Aqueles momentos nos quais o homem parece romper com seu destino comum são fagulhas, e elas logo desaparecem na névoa da rotina.

Como se fôssemos livres para nadar no rio, desde que dele não saíssemos, e sempre terminássemos no mar.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JUSTIÇA E DIREITO: JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.” 

“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.” 

“Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.” 

“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas”. 

“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens.” 

“Qual a decisão de vocês?” 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em Subliminar, Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.” 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de Retórica, aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em A Nova Retórica. 

A partir do que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela Sociologia e Antropologia a partir da Teoria da Seleção Natural: 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.” 

“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.” 

“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.” 

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, a "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, autor de The Ruling Class, a Teoria da Classe Política, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

CANGAÇO: A HISTÓRIA DO CANGAÇO, SUAS VERDADES E MITOS

 


Com a mediação do Professor Gilberto Cardoso, e para minha alegria, ao lado de Epitácio de Andrade Filho e Kydelmir Dantas, o que muito me honra, estaremos debatendo, a partir das 19 horas, a história do cangaço, suas verdades e mitos, no canal facebook.com/gcarsantos.

Aguardo vocês.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

HISTÓRIA: PAU DOS FERROS ONTEM E HOJE

 

Fonte: Wikipedia

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com). Originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte de nº 97.

Quando os europeus chegaram ao Rio Grande do Norte, lá por 1500, encontraram a grande nação tupi-guarani no litoral, representada pelos Potiguares, e, no Sertão, os Cariris, que significa “os tristonhos, calados, silenciosos”[1], ramo do povo Tapuia. 

Diz uma lenda recolhida por missionários, conta-nos Tarcísio Medeiros, terem os Tapuias vindos de um lago encantado do setentrião continental, como sugeriu Capistrano de Abreu, descendo a costa e fixando-se no interior depois de acossados pelos tupis. 

Os Tapuia/Cariris estiveram em evidência durante a “guerra dos bárbaros”, iniciada com a resistência à penetração da pecuária que se adensara nas ribeiras dos rios, áreas essenciais à sobrevivência dos animais, mas também à dos índios, durou sessenta e cinco anos (1685-1750), terminando com a completa vitória do homem branco, que os extinguiu[2]

No Sertão nordestino, especificamente no Sertão potiguar, existiram vários ramos dos Cariris, dentre eles os Pacajus ou Paiacus, que habitaram Portalegre, Francisco Dantas, Viçosa, Riacho da Cruz e Encanto, assim como os Panatis, habitantes de Pau dos Ferros, Encanto, Dr. Severiano, São Miguel e Rafael Fernandes[3]

No início do século XVIII, bandeirantes paulistas, missionários, senhores de engenho de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Rio Grande, além de oficiais de alta patente que combateram os indígenas passaram a disputar as terras do Sertão norte-rio-grandense. Denise Matos Monteiro[4] nos relata uma dessas disputas entre grandes senhores de terras e escravos de Pernambuco e Bahia e colonos potiguares: 

“Dentre os sesmeiros de outras capitanias interessados nas terras do Rio Grande, estava, por exemplo, Antônio da Rocha Pita, da Bahia, que através de quarenta dos seus vaqueiros tentou expulsar da ribeira do Assú colonos que lá procuravam estabelecer fazendas de gado. Objetivando atender às reclamações desses colonos, o rei de Portugal mandou demarcar e medir as terras desses sesmeiros em 1701. Anos mais tarde, em 1733, seus descendentes receberam uma larga faixa de terra que se estendia, dessa vez, entre os atuais municípios de Pau dos Ferros e São Miguel, na ribeira do Apodi[5]”. 

É certo que a primeira sesmaria que se tem conhecimento, alusiva à região, foi requerida por Manoel Negrão em 1717, e dizia respeito ao lugar denominado “Podi dos Encantos”, presumindo-se que se trate da Data da Conceição[6]. Negrão declarava ser morador da ribeira do Apodi e ter descoberto o terreno em companhia de Domingos Borges de Abreu. 

Mas foi somente em 1733 que a Data da Sesmaria de Pau dos Ferros foi concedida a Luiz da Rocha Pita Deusdará, Francisco da Rocha Pita, Simão da Fonseca Pita, Dona Maria Joana Pita, todos filhos e herdeiros do Coronel Antônio da Rocha Pita. Como lembra Câmara Cascudo, os “Rocha Pita” eram baianos e foram grandes latifundiários no Rio Grande do Norte. 

Manoel Jácome de Lima observa: Diz Ferreira Nobre que em 1733 Francisco Marçal fundou uma fazenda de gado no local em que se achava a vila. Em 1738, afirma o Monsenhor Francisco Severiano no seu livro 'A Diocese na Paraíba', foi iniciada a construção de uma capela que em 1756 foi elevada à categoria de matriz com a criação da freguesia, a 19 de dezembro daquele ano.” Começava Pau dos Ferros. 

A paróquia de Pau dos Ferros é a mais antiga da zona Oeste do Estado e, na época, abrangia quase todo o território da atual Diocese de Mossoró. 

O nome da cidade surgiu quando do início do seu povoamento. José Edmilson de Holanda[7] assevera ter o nome da Fazenda de Francisco Marçal, fundada próxima a uma pequena lagoa, onde existia uma frondosa oiticica, passado ao povoado: 

“O nome inicial da fazenda passou ao povoado, pois desde a sua fundação era conhecida por Pau dos Ferros, em face dos vaqueiros gravarem, à ponta da faca, no tronco de frondosa oiticica existente à margem da lagoa, os ferros das reses tresmalhadas que por lá apareciam, com a finalidade de identificar o proprietário e a origem das mesmas. A oiticica servia de pouso para os comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas que por lá passavam.” 

Em 1761 o município de Portalegre foi criado englobando o povoado de Pau dos Ferros. Entretanto já no fim do século XVIII a povoação era maior que sua sede e a cidade de Apodi. 

Em julho de 1841 os pau-ferrenses fizeram uma representação à Assembleia Provincial, assinada por 492 pessoas de todas as classes sociais, pedindo a criação do município. A Comissão de Estatística e Justiça, em parecer assinado por João Valentim Dantas Pinagé e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque, foi favorável ao pleito, mas na sessão do dia 4 de novembro de 1841, o requerimento não foi aprovado. 

Em 1847 o deputado provincial João Inácio de Loiola Barros apresentou um projeto transferindo a sede da Vila de Portalegre para a povoação de Pau dos Ferros, pedido também rejeitado. 

Seis anos depois, em 12 de abril de 1853, os deputados Luiz Gonzaga de Brito Guerra, futuro Barão de Assú, e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque (novamente), apresentaram um projeto para elevar a povoação de Pau dos Ferros ao status de Vila, com a denominação de Vila Cristina, mas não lograram êxito. 

Finalmente em 23 de agosto de 1856 projeto apresentado pelo Deputado Benvenuto Vicente Fialho, criando o município de Pau dos Ferros, foi aprovado. E em 4 de setembro de 1856 o Presidente da Província, Dr. Antônio Bernardo Passos, sancionou a Lei nº 344, elevando à categoria de Vila o povoado de Pau dos Ferros, e determinando os limites do novo município. 

Hoje Pau dos Ferros, com 259,959 km², limitando-se ao Norte com São Francisco do Oeste e Francisco Dantas, ao Sul, com Rafael Fernandes e Marcelino Vieira, ao Leste, com Serrinha dos Pintos, Antônio Martins e Francisco Dantas, e ao Oeste com Encanto e Ereré (CE), é uma cidade com mais de 30.000 habitantes fixos, segundo dados do IBGE/2017, muito embora nela circulem, em decorrência de sua posição de polo regional, cerca de cinquenta mil pessoas por dia. 

Cidade pujante, centro comercial e administrativo da região, centraliza a prestação dos serviços estaduais e federais, e sedia a Escola de Enfermagem Catarina de Siena, a Faculdade do Oeste do Rio Grande do Norte, a Faculdade Evolução do Alto Oeste Potiguar, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte, a Universidade Anhanguera Educacional, a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal Rural do Semi-Árido. 

Ressalte-se, do ponto de vista cultural, a importância de sua Feira Intermunicipal de Educação, Cultura, Turismo e Negócios do Alto Oeste Potiguar (FINECAP), realizada anualmente e congregando toda a região. 

Não por outra razão, a cidade também é conhecida como “Capital do Alto Oeste” e “Princesinha do Oeste”, embora muitos a chamem de “Terra dos Vaqueiros”, ou, ainda, “Terra da Imaculada Conceição”, em homenagem a sua santa padroeira. 

Em 12 de abril de 2018.

[1] MEDEIROS, Tarcísio; “Proto-História do Rio Grande do Norte”; Rio de Janeiro: Presença Edições; Fundação José Augusto; 1985.

[2] LOPES, Fátima Martins: “Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande do Norte"; Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; 2003. 

[3] MEDEIROS FILHO, Olavo; “Índios do Açu e Seridó”; Natal: Sebo Vermelho; 2011. 

[4] MONTEIRO, Denise Mattos; “Introdução à História do Rio Grande do Norte”; Natal: Flor do Sal; 4ª edição; 2015. 

[5] Pág. 59.

[6] LIMA, Manoel Jácome de; in “Revista Comemorativa do Bicentenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros (1756-1856-1956)"; Natal: Sebo Vermelho; Edição Fac-similar; 2015. 

[7] HOLANDA, José Edmilson de; “Pau dos Ferros: Crônicas, Fatos e Pessoas”; Natal: Gráfica Vital; 2011.

domingo, 13 de dezembro de 2020

SOLIDÃO: UMA SOLIDÃO CERCADA DE AMIGOS

 

Imagem: Honório de Medeiros ("Pássaro solitário sobre o Tejo")

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Ariclê suicidou-se, tempos atrás. Mas quem foi Ariclê? 

Uma atriz global. Suave, delicada, simpática. E solitária. 

Antes de morrer estava fazendo o papel de mãe de JK, no seriado homônimo. Terminou sua participação e saltou do décimo andar do prédio onde morava, mergulhando para a morte. 

Não é somente por ter sido atriz que sua morte chamou a minha atenção. Nada disso. 

O que chamou a atenção é que todos quantos foram a seu sepultamento eram seus amigos, muito embora ela fosse uma pessoa solitária. Morava sozinha, e segundo o relato do porteiro do prédio – ah, os porteiros de nossos prédios, testemunhas silenciosas e onipresentes das nossas vidas – quase não recebia visitas. 

Todos os amigos cobriram Ariclê de elogios. Não podia ser diferente. É da nossa tradição elogiar os mortos. E todos realçavam os laços de amizade existentes entre eles e até contavam, aqui e ali, algum fato vivido juntos. 

Nada diferente de velórios em outros mundos afora. Mas não frequentavam o seu apartamento, esses amigos. Não invadiam sua cozinha, bisbilhotavam sua biblioteca, usavam seu banheiro, deitavam-se em seu sofá. 

Ali estava um ambiente íntimo cheio de ausências. 

Ariclê era uma pessoa solitária... Quase posso imaginar sua solidão tão comum em cidade grande. Conhece ela muitas pessoas, é conhecida e respeitada por muitas outras, trata-as por amigo, ou amiga, recebe o mesmo tratamento, mas com certeza não telefona para qualquer um deles para convidá-los a partilhar uma taça de vinho e um pouco de dor nas madrugadas melancólicas. 

Não é possível fazer isso porque o incômodo causado é muito grande. Transtorna a vida das pessoas. Atrapalha suas rotinas. E elas também têm lá seus problemas, não estão dispostas a emprestarem seus ouvidos para ouvirem o que não conseguem resolver em si mesmas. 

Antigamente as pessoas colocavam as cadeiras nas calçadas e contavam estórias, relatavam histórias, riam, faziam rir, e se solidarizavam umas com as outras. Mas isso faz muito tempo. Hoje não é mais possível, há a violência urbana, a televisão manieta, o celular aprisiona, as portas e janelas estão todas fechadas. 

Enclausurando-nos, estamos nos fechando para o mundo e para os outros. Nossa convivência passa a ser virtual. Podemos até almoçar juntos com um grande amigo, vez ou outra, mas quando a noite chega, no cotidiano, é cada um por si e Deus por todos. 

Não por outra razão estamos cada vez mais sozinhos. Embora possamos até mesmo estar acompanhados. Porque não nos dispomos a ser solidários, a estabelecermos pontes sólidas em direção ao outro. Pontes construídas com o cimento do sacrifício, da empatia, da história comum. 

Não por outra razão, quem sabe, Ariclê morreu. Para quem ela ligaria, no final de uma noite qualquer, de um dia qualquer, para dizer “venha, estou triste, preciso de você?”

Ariclê Perez


sábado, 12 de dezembro de 2020

MONTAIGNE E A POLÍTICA

By Gary Brown, in fineartamerica.com

* Franklin Jorge

Pensador e humanista, Michel de Montaigne escreve para o bem público. Fundador de uma tradição, concebe, exemplarmente, o ato de escrever como uma magistratura.

leitor@navegos.com.br

É possível que, quatro séculos depois, ao afirmar que um grande escritor é como um príncipe, Thomas Mann estivesse pensando no autor dos Ensaios. Levam ambos – o francês clássico e o moderno clássico de língua alemã – uma existência representativa, à maneira dos príncipes, e, como escritores, seus eventuais erros e equívocos teriam mais consequências negativas do que aqueles cometidos pelos políticos.

Poucos escritores, antes ou depois, encarnaram tão perfeitamente esse conceito manniano, que exalta e resume toda uma concepção ontológica do exercício intelectual.

Magistrado cioso do seu dever, assessor dignissumus do rei –sempre moderado e dependente da razão – alerta-o Montaigne, sem temer cair no desagrado real, quanto convém a um governante visitar e acatar os cidadãos em proveito dos negócios do Estado. É Montaigne, neste sentido, o anti-Maquiavel.

Conselheiro de Estado e, por algum tempo, prefeito de Bordeaux, a política, como um serviço prestado à Nação, mereceu dele, Montaigne, a mais alta e sensata consideração baseada no bom senso e na observação dos costumes.

Ao contrário de Maquiavel, valoriza e defende os direitos individuais, movido por uma surpreendente mistura de tato e convicção, pois crê, sobretudo, que um homem que leu e assimilou experiência e reflexão é mais capaz de grandes feitos do que os outros…

Em um ponto, porém, concorda, ao menos, com Maquiavel, ao afirmar que o interesse público, às vezes, exige do governante que traia e mate e até massacre no interesse público -frise-se- não para a satisfação do interesse individual do governante, como Maquiavel aconselharia ao Príncipe.

Precursor e patrono oficioso do Iluminismo, parece dizer-nos Montaigne que os erros dos políticos sejam frutos não dos interesses, mas das convicções.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

MERITOCRACIA E PACTO SOCIAL: QUANDO TUDO VALE, NADA VALE.

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

O combate à meritocracia é uma das pontas-de-lança do relativismo moral.

O relativismo moral apregoa que os valores são relativos, ou seja, o que é certo para mim, pode não ser certo para você, o que é justo para você, pode não o ser para mim, e não há nada, absolutamente nada, que a ciência possa dizer quanto a isso que possa erradicar nossas diferenças.

Tirando a ciência, que descreve o que algo é, e quando o faz, revela algo que é uma verdade em si mesma, independe da opinião de cada um, tal como a lei da gravidade, ou a lei da entropia, sobra a religião, ou até mesmo a arte, e assim segue, quanto a tentativas de explicar a realidade que nos envolve. 

Mas, quanto ao que não é ciência, cada um tem a sua explicação, e acredita, é uma questão de crença, no que lhe der na telha, portanto a conclusão possível, segundo tais parâmetros, é que a moral é relativa, e, se assim o é, não existiriam valores aos quais devamos reverências definitivas. 

Se não existem valores, então não podemos falar em mérito, pois este pressupõe que sejamos capazes de avaliar os outros e reconhecer, neles, qualidades que mereçam respeito, elogio, e, claro, confiança, para lhes entregar, por exemplo, responsabilidades que não estão ao alcance dos que não foram avaliados com o mesmo reconhecimento. 

Se não é possível reconhecer o mérito, então todos estamos no mesmo barco, ninguém pode avaliar quem quer que seja, e, dessa forma, a conclusão óbvia é que desapareceria a civilização como a conhecemos. 

Uma outra possibilidade é a de que os valores existem sim, e estão por aí, no espaço e no tempo, e o certo, o errado, o bem, o mal, o justo, e o injusto, existem por si mesmos, como entidades fora-de-nós, bastando que as encontremos onde estiverem e os colhamos, qual frutas maduras, e os utilizemos. 

É essa hipótese derivada da filosofia de Platão, melhor dizendo, de sua “Teoria das Formas e das Ideias”, que os relativistas morais criticam, de forma oblíqua, e com razão, a grande maioria das vezes sem conhecerem seu fundamento, seus pressupostos teóricos. 

Isso porque os valores, tais quais imaginados por Platão, não são essências aguardando algum iluminado que os apreenda e os coloque a serviço da humanidade, a despeito de todos quantos se julgaram intermediários entre o céu e a terra. 

Não por outra razão Jesus calou quando Pilatos lhe perguntou: "o que é a verdade?". Pilatos lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, quanto à moral, somente acreditava no Poder pelo Poder. Se sua pergunta dissesse respeito à fé, Jesus teria lhe respondido: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", e o seu silêncio não perturbaria tanto os filósofos através do tempo. 

Se, entretanto, compreendermos que os valores são construções do homem ao longo do seu processo civilizatório, estratagemas adaptativos, estratégias de sobrevivência, a questão muda completamente de perspectiva. 

E a ciência nos dá razão por que, aqui, vamos estudar não o valor em si mesmo, mas as condutas que os criaram, sua finalidade, sua natureza. É o mundo da Sociologia, da Antropologia, uma ciência.

É científico conceber que em algum momento da história o Homem, a nossa espécie, teve um "insight" que lhe permitiu dar um passo à frente no processo evolutivo: descobriu a cooperação. Percebeu que podia até mesmo enfrentar seus predadores naturais, e os vencer, caso cooperassem entre si. Percebeu, trocando em miúdos, que a união faz a força. Naquele momento nasceu o que hoje chamamos de ““pacto social””. 

O “pacto social” constrói e impõe direitos e deveres, ou seja, valores, para que o grupo social, a Sociedade, possa sobreviver, avançar. Tal ideia foi um "meme", uma invenção do processo evolutivo, ou seja, uma construção humana, uma elaboração social, claro que sempre dependente de sua circunstância histórica.

Muito embora possamos rastrear a ideia de “pacto social” até Protágoras de Abdera, bastando, para tanto, ler o diálogo platônico homônimo, é de se considerar que sua melhor descrição, de forma alegórica, está em Leviatã, de Hobbes. 

“Homo homini lupus”, escreveu Thomas Hobbes, o primeiro dos grandes contratualistas. O homem é o lobo do homem, frase de Plauto, em Asinaria, textualmente: “Lupus est homo homini non homo”, que expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo “pacto social”. Em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie. 

Caso não aconteça o “pacto social”, “bellum omnium contra omnes”, guerra de todos contra todos, até a auto aniquilação no “Estado de Natureza”, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, disse-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de “contrato social” exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão. 

Essa noção, de “pacto” ou “contrato social”, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na Política, de Aristóteles (cap. III): “De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, ‘uma garantia mútua de direitos’, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer. 

E muito embora um estudioso “outsider” do legado grego, tal qual I. F. Stone, defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas, relatada no Críton, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker. 

Tudo isso significa que o conteúdo dos direitos e deveres pode variar no tempo e espaço, mas a noção da "forma", do "ambiente", do “continente” que os contém, não. Ou seja, a ideia de “pacto social” é onipresente, muito embora seu conteúdo possa mudar ao sabor das circunstâncias históricas.

É por essa razão que certas condutas anteriores ao tempo atual eram consideradas erradas, e hoje já não o são. Quanto à regulação, à existência de normas, do ambiente que as contém, de tal não se cogita: sempre existiram normas que regulassem a conduta humana. Repetindo: mudou o conteúdo, mas não mudou a forma.

Ainda: o que é certo e errado pode mudar no tempo e no espaço, ao sabor da volubilidade humana, mas a compreensão de que deve existir um conjunto de regras, que mesmo de forma difusa, que diga o que é certo e errado, em cada época, isso nunca mudou, por uma razão muito simples, tão bem apontada por Hobbes, qual seja a de que sem esse conjunto de regras, a civilização deixa de existir. 

Quando não temos um "norte" moral, jurídico, tudo vale, e se tudo vale, nada vale. 

Então, embora seja relativo o conteúdo da norma moral, a necessidade da existência de regras de conduta e jurídicas é uma verdade científica, um fenômeno sociológico, pelo menos no que diz respeito à realidade social conforme a conhecemos. 

É preciso que entendamos que a construção do conteúdo da norma moral é sempre resultante do entrechoque de ideias, interesses, crenças, poder etc., entre aqueles que integram a Sociedade. Mas ao contrário do que se supõe, o conflito social é fundamental para a elaboração da "Constituição" à qual nos apegamos para podermos sobreviver em Sociedade. 

Por fim, o discurso do relativismo moral é sabidamente ilógico. Argumentar contra os valores também é uma postura moral. Não há alternativa à existência dos valores. O que há, é a possibilidade de aperfeiçoamento desse instrumento social. É isso que estamos tentando fazer desde aquele remoto momento no qual o Homem se deu conta de que a cooperação permite sua sobrevivência. 

No final das contas, ninguém foge dos valores, seja contra ou a favor. Quem os critica, duvidando de sua existência, questionando sua eficácia, quer apenas mudar as regras do jogo para se beneficiar, ou favorecer aquilo que defende. 

Nada mais. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

AINDA HÁ BURACOS DE BALAS EM BARCELONA

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Nas madrugadas de Barcelona, as largas calçadas acomodam, em dezembro, o frio, os jovens cheios de vinho que passam cantando e de braços dados, bicicletas e motocicletas em lugares apropriados, que não impedem a passagem dos pedestres. 

Conto para Carlos Santos das calçadas tomadas por esses meios de transporte quando chega a noite, deixados ao léu. Ele ri e me fala de uma cadeira em ruínas, acorrentada em plena Praça do Codó, em Mossoró, nossa terra natal, condenada à prisão para não ser furtada tão logo o dono lhe dê as costas.

"Cadê a polícia?", pergunto ao Georgiano taxista, setentão, que me conduz. Ele responde que não precisa, basta chamar, e todo mundo chama se alguma coisa está errada, e a polícia chega imediatamente, e, de fato, mal vi a polícia em Barcelona.

O Georgiano, por sua vez, me pergunta de onde sou. Eu lhe digo que sou brasileiro, e ele sorri, e me fala em Pelé e Garrincha. "Garrincha?", "sim, Garrincha, Garrincha", diz ele, "o grande Garrincha, hoje a sua seleção, me desculpe, eu não assisto, não quero assistir".

"E o senhor largou a Geórgia por quê?" "Putin", me diz ele, "um homem muito ruim, como Stálin, que era da Geórgia, mas nunca fez nada por ela. Stálin era muito ruim, repete, very bad, very very bad, um homem sem pai, sem mãe, criado em orfanato, depois foi para a polícia, cruel, e meus pais perderam tudo e vieram embora, e eu vim também, mas a casa de meus pais ainda existe, fechada, na bela Geórgia, e eu vou lá, e tomo vinho, a Geórgia tem um vinho muito bom, e a casa fica fechada, mas quando eu vou, abro a casa e tomo muito vinho, falo muito minha língua, e durmo bastante". 

Continuamos seguindo, eu vejo as bandeiras catalãs postadas nas janelas dos apartamentos, e me lembro do livreiro que tem um sebo em frente ao "Palau de la Musica Catalana", onde tantos famosos se apresentaram, e de seu olhar ressabiado quando lhe pedi um livro com a história da Catalunha em espanhol, e ele me respondeu, ríspido, "em espanhol eu não tenho, tenho em Catalão", e eu lhe disse que infelizmente não lia Catalão, mas acidentalmente tinha aberto meu casaco que ocultava uma camiseta na qual estava escrito “The Catalan Way of Life”, e ele sorriu e lamentou não ter esse livro de história da Catalunha escrito em espanhol, acrescentando, mordaz, que não sabia se havia algum que não fosse ruim.

É, Barcelona é algo muito especial, muito especial mesmo, fiquei pensando enquanto caminhava, dias antes, no rumo da "Cidade Gótica", pela qual me apaixonei sem resistência. Foi uma verdadeira entrega, eu queria parar em cada obra de arte encontrada por seus caminhos tortuosos, escuros e estreitos, em cada igreja, ouvir os músicos que tocavam em todos os lugares, tal qual aquele que executava uma sonata barroca de Scarlatti em violino e parecia ausente de todos que o escutavam e depositavam moedas em seu chapéu, pois tocava de olhos fechados, como se estivesse longe daquela realidade barulhenta, multicolorida e de muitos idiomas que lhe cercava, até chegar à minha pracinha predileta, tão pequena, tão impossível de descrever, em cujas madrugadas eram executados os republicanos contra as paredes do colégio e da igreja que lhe estabelecem os limites, nos anos terríveis da guerra civil. Que diria François se estivesse ali? 

"Olhe aqui", me dissera uma mineira dias antes, está vendo as marcas das balas nas paredes, "claro", digo eu, "pois perceba, alguns buracos são muito altos, não atingiriam ninguém, sabe por quê?", "claro que não", "é porque", continua ela, "naquele tempo, todo mundo se conhecia em Barcelona, e alguns dos carrascos eram amigos ou parentes das vítimas". "Meu Deus", penso eu. 

Barcelona. A gaúcha que nos acompanhou a Montserrat pareceu interessada quando lhe contei acerca da cruzada que a igreja empreendeu contra os cátaros no século XIII. "São Luiz?", pergunta, "sim, São Luiz, tudo era uma questão de poder e terras disputada entre os nobres do norte, liderados por ele, contra os do sul, liderados pelo poderoso Conde de Toulouse, guerra apadrinhada pela igreja que temia o surgimento de uma nova religião a partir daquela doutrina perigosíssima, o catarismo, e, veja, o Santo Graal está aqui, em Montserrat", "é, eu sei", diz ela, "Hitler mandou seus soldados liderados por Himmler, mas eles não encontraram nada".

"Sei onde está", eu disse. "Sabe?", pergunta ela, "claro", respondo, "olhe aquelas rochas, você vê um perfil?", "sim, eu vejo", "então", continuo, "o nariz aponta para uma fissura na rocha, é lá", ela olha e depois olha para mim e fica sem saber se eu brinco ou sou louco, e muda de assunto: "você não fala em Gaudí quando fala em Barcelona", "ah, Gaudí", eu digo, "o delírio de Gaudí, como posso gostar de Gaudí, tão distante do homem comum, não bebia, não fumava, não jogava, não dançava, não tinha mulher, era carola, morava nas obras da Igreja da Sagrada Família, é tudo muito bonito, mas irreal, eu gosto de Gaudí, mas ele era pouco humano e somente o humano me interessa, e viva Terêncio, que disse isso muito tempo atrás". 

"Do que você gostou?", ela me perguntou, com aquele sotaque do interior do Rio Grande do Sul, "das obras de arte escondidas em cada recanto", eu digo, "dos músicos de rua, da fé que os Catalães têm na Catalunha, de tantos imigrantes, tal qual o coreano que trabalha dezoito horas por dia no seu mercadinho próximo do apartamento no qual eu estou, do cuidado com os idosos, pois as ruas são pensadas a partir deles e para eles, das espanholas tão sensíveis a elogios a sua beleza, desde que feitos como se fosse uma rendição, nunca uma tentativa de conquista, da simpatia para com os brasileiros, do bairro gótico, da elegância dos caminhantes, das crianças que brincam felizes e despreocupadas em todos os cantos da cidade, da ausência da polícia e do respeito à lei, da história da nação catalã, da relação da Catalunha com a Provença francesa..." 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

UMA CONVERSA SOBRE "CENAS NATALENSES"

 

Uma obra de arte!

Uma conversa sobre Cenas Natalenses

Gustavo Sobral é jornalista e escritor. Nasceu em Natal, onde vive e espia o mundo. Autor, dentre outros, de “História da Cidade do Natal”, agora aparece com “Cenas Natalenses” (Natal: 8 Editora/ Offset, 2020, 60p., R$ 25,00), seu novo livro, a venda na livraria Cooperativa Cultura (UFRN) e na Flora Cafeteria.

História, memória, literatura, jornalismo, crônica são os caminhos da sua escrita, em qual destas facetas se encontra o seu novo livro? Cenas Natalenses considero, como todos os meus trabalhos anteriores, um livro inclassificável, mas mesmo assim posso dizer que é um livro que, no mundo em que vivemos, o mundo imperativo da imagem, pretende ser uma coleção de pequenos e breves retratos da cidade em palavra e desenho. Um breve exercício de jornalismo visual, de ver e ouvir a cidade em movimento.

Qual o papel da ilustração neste seu novo trabalho? É uma forma de expressão. Para que descrever um edifício se posso rabisca-lo? Mas faço um traço apressado, sem retoques, e trago o desenho também a uma condição de protagonismo.

E como, quando e onde, e porque nasceu esta ideia de “rabiscar”? Sempre gostei dessa coisa de ilustração para livros e queria ilustrações para um livro meu, “Petrópolis”, mas não tinha quem fizesse, eu mesmo arrisquei e saiu. Ai, não deixei mais.

E porque estes lugares (a Fortaleza, o Farol, o Parque das Dunas, etc) e não outros? A sentença de Cascudo, que usei na epígrafe, me concedeu uma liberdade de escolha: “a cidade do Natal é uma perspectiva indefinida”. Fechei os olhos e pensei: que lugares da cidade caberiam numa cena? Procurei os cartões postais: Ponta Negra, a Fortaleza e o Farol; sai em busca do cotidiano, feira livre e o movimento na Praça do Relógio, a maternidade e o cemitério; e não podia deixar de falar da natureza, e fui em busca da flora do Parque das Dunas.

E que texto é este que você faz para o livro? Sempre procurei e busco uma escrita em voz alta, ou seja, aquela que preserve um tom de oralidade e um ritmo. Gosto quando as pessoas dizem: é como ouvir você falando! A forma é tão importante quanto é o conteúdo. É tudo uma parte do todo.

Um todo? O todo que nasce na proposta do livro passa pelo apelo visual e se transforma na junção de tudo isso em um projeto gráfico. Propus o desenho de todo livro, inclusive, a montagem, procurando uma fluidez na expressão do conteúdo e que o resultado fosse simples como aí está.

E por que escrever sobre Natal? Porque não sei ser de outro lugar. O escritor tem sempre uma forte ligação com a sua cidade, portanto, me volto para Natal nesta perspectiva meio quixotesca que Cascudo tratava por um provincianismo incurável.

Uma espécie de Dom Quixote tropical? Quem sabe?! (risos). A afirmação de Lygia Fagundes Teles para mim ainda é válida: há três espécies em extinção no Brasil: a árvore, o índio e o escritor.

E o que resta ao escritor, esta espécie em extinção, fazer? Escrever! Já dizia o poeta Ferreira Gullar a arte, a literatura, a poesia, tudo isso existe, porque a vida não basta. Escrever é a forma certa de não deixar tudo passar e basta.

VENDA

Flora Cafeteria, na Floricultura Flor de Algodão.

Av. Rodrigues Alves, 443 - A - Petrópolis.

Horário de funcionamento: segunda a sexta, 12h às 19h;

sábados 9h às 15h.

Telefone para contato (84) 2030-4090

Livraria Cooperativa Cultura, UFRN.

Horário de funcionamento: segunda a sexta, 9h às 16h.

Entrega pelo Delivery, telefone para contato e pedidos (84) 3211-9230

ou pelo WhatsApp (84)99864-1991.

Valor do livro R$ 25,00

Para ler este e outros inscritos, acesse: gustavosobral.com.br

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

LIVROS: OS LIVROS NOS ESCOLHEM

 

Jean Jacques Rousseau

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Muito poucas foram as vezes em que entrei em uma livraria sabendo o que buscava. 

Ao contrário. A grande maioria delas entrei somente pelo prazer de entrar, de ver, de sentir o cheiro dos livros, de ouvir o murmúrio de outros apaixonados como eu, para quem eles foram, desde sempre, um grande amor. 

Difícil sair sem nada nas mãos. Invariavelmente – e isso é o que importa neste relato – fui buscado por algum ou alguns livros. 

Sim, porque são eles que nos escolhem. Eles amam quem os ama. Como poderia ser diferente se outra explicação não há para esse amor que surgiu quando minha mãe me colocava para dormir lendo estórias em quadrinhos do Pato Donald, enquanto nos balançava na rede, e, um dia, para sua surpresa, me pegou soletrando as sílabas? 

Os livros dos meus vizinhos, abandonados, valeram-se de mim para saírem de sua solidão – em minha casa sequer Bíblia existia. 

Os livros, eles nos escolhem, e da minha infância para a meninice, lá estavam: “O Mundo da Criança”; “O Tesouro da Juventude”; e, depois, logo depois, Julio Verne, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Edgar Rice Burroughs, Karl May... 

Pois bem, é como digo, os livros nos escolhem. Chegam a nós das mais estranhas maneiras, desde o presente de um amigo que pensa ter acertado na escolha por um motivo qualquer, muito embora tenha acertado por outro totalmente diferente, a aquele decorrente do inexplicável oferecimento visual ocorrido quando, cansados de perambular pela livraria, nos sentamos em uma poltrona, a única vaga, e – como se fosse algo inesperado – aquele livro que nos escolheu aparece imediatamente no nosso campo visual. 

Não há como resistir. Ele estava nos esperando. Agradecidos pela escolha pegamo-lo carinhosamente, e o folheamos, sentimos seu cheiro inigualável, sua textura, passamos uma vista d’olhos por suas páginas e o levamos conosco, ambos muito felizes. 

Assim aconteceu certa noite quando, em um aeroporto qualquer, aguardando a hora de embarcar e vagando pela livraria, já imaginando que daquela vez eu teria que me contentar com as revistas, meus olhos foram atraídos por “Os Devaneios do Caminhante Solitário”, de Rousseau. 

Quantas e quantas vezes não falara acerca do “Contrato Social” para meus alunos de Filosofia do Direito, ao lhes explicar em que crença se fundava nossa fé no Ordenamento Jurídico enquanto expressão da Vontade Geral da Sociedade. Antes Rousseau, que dera um lavor inigualável à genial intuição de Protágoras de Abdera... 

Agora, ali, outra vertente desse mal-amado e original filósofo francês, me convidava a travar conhecimento mútuo. Abri o livro ao acaso. Li o que se me ofereceu aos olhos: “É dessa época que posso datar minha total renúncia ao mundo e esse gosto vivo pela solidão que não me abandonou desde então.” 

“Como?”, me indaguei, “Vila-Matas escreve toda uma obra, Doutor Pasavento”, em homenagem à arte de desaparecer, que é a face mais exposta da renúncia, usando como pano-de-fundo a história de Robert Walser, e não cita Rousseau?” 

Segurando firmemente o livro de Rousseau tomei o caminho que me conduzia ao caixa para comprá-lo e, em seguida, feliz por ter sido escolhido, entrar no avião onde me esperavam algumas horas de voo e de leitura.