sábado, 24 de outubro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DO CORONELISMO I

O FOGO DE PAU DOS FERROS


Corria o ano de 1901. No Cariri, mais precisamente em Missão Velha, o Coronel Antônio Joaquim de Santana, mais conhecido como Coronel Santana apeou do poder, pelas armas, o Coronel Antônio Róseo Jacamaru, seu chefe político e intendente. Pertencendo à família dos Terésios, originária de velhos troncos coloniais, fundadores do Engenho de Santa Teresa, entre Missão Velha e Barbalha, o governou durante dezesseis anos e alimentou o sonho de dominar o sul do Ceará colocando, em cada município, na chefia, uma pessoa de seu sangue.





Seguiu-se a deposição do Coronel José Belém de Figueiredo, chefe político do Crato, em 1904, após tiroteio que durou dois dias e deixou vinte e uma vítimas, das quais oito mortas. Logo depois, em 1906, após tiroteio que durou oito horas, caiu o Coronel Manuel Ribeiro da Costa, conhecido por Neco Ribeiro, sobrinho do célebre caudilho Joaquim Pinto Madeira, da guerra civil absolutista de 1832. Seu algoz foi o Coronel João Raimundo de Macedo, o Joca do Brejão. Venceu quem conseguiu reunir um maior exército de “cabras”.





Veio, após, o fim do reinado político do Coronel Marcolino Alves de Oliveira, arrancado da chefia política do Quixadá pelos Coronéis Joaquim Fernandes de Oliveira e José Alves Pimentel e, em 1907, em Lavras da Mangabeira, a queda do Coronel Honório Correia Lima, curiosamente o filho mais velho de Dona Fideralina Augusto Lima e irmão de Gustavo Augusto Lima, seus carrascos.





Não foram diferentes os anos seguintes, como qualquer leitor poderá constatar lendo “Império do Bacamarte”, obra inigualável de Joaryvar Macedo, fonte dessa pequena introdução, sem qualquer sombra de dúvida uma referência para os estudiosos do fenômeno do coronelismo no Brasil, principalmente do Sertão nordestino, e sua relação com o cangaço e o misticismo próprios da região. Joaryvar, alicerçado em profunda pesquisa bibliográfica, em jornais antigos, depoimentos pessoais, literatura de cordel, e outras fontes primárias, tal como processos-crimes, nos legou um impressionante painel histórico do Cariri cearense e seus principais personagens, os coronéis.





Teria sido esse epifenômeno, o coronelismo, circunscrito ao Sertão do Cariri? Claro que não. Muito pelo contrário, acerca de sua importância, sua presença no mundo rural brasileiro, conseqüência tardia de certa estrutura de poder típica de uma aristocracia renascida na América litorânea - os senhores de engenho pernambucanos e paulistas -, renovação da velha árvore multissecular portuguesa, como podemos inferir a partir da obra de Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder”, e sua abordagem do feudalismo nacional, “nascido neste lado do Atlântico, gerado espontaneamente pela conjunção das mesmas circunstâncias que produziram o europeu”. Diz-nos Faoro: “O quadro teórico daria consistência, conteúdo e inteligência ao mundo nostálgico de colonos e senhores de engenho, opulentos, arbitrários, desdenhosos da burocracia, com a palavra desafiadora à flor dos lábios, rodeados de vassalos prontos a obedecer-lhe ao grito de rebeldia. Senhores de terras e senhores de homens, altivos, independentes, atrevidos – redivivas imagens dos barões antigos”.





O próprio Joaryvar Macedo assim começa “Império do Bacamarte”: “No território pátrio, o fenômeno do coronelismo esboçou-se na Colônia, tornou-se realidade no Império e consolidou-se após o advento da República”. Ainda: “Entre nós a Primeira República, também denominada, consoante já se esclareceu, República dos Coronéis, teve no coronelismo uma das suas marcas principais. Mais acentuado no Nordeste, o fenômeno generalizou-se por todo o País, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”.





No Rio Grande do Norte, que houve coronéis, disso não há qualquer dúvida. Basta consultar “Coronéis do Seridó”, de Pery Lamartine, e conhecer desde o Coronel João Damasceno Pereira de Araújo, o João Damasceno do Saco do Martins, até o Coronel Cazuza do Ipueira, passando por Silvino Bezerra de Araújo Galvão, José Bernardo de Medeiros, Laurentino Theodoro da Cruz e vários outros senhores proprietários de terra e líderes políticos. Todos descendentes de portugueses que avançavam Sertão adentro, a arrancar da indiada insubmissa a terra que lhe pertencia imemorialmente até o fim da Guerra dos Bárbaros (1687-1697), quando, por fim, do Vale do Açu, passando por Apodi, no Alto Oeste, até o Seridó, em Acauã, os vitoriosos fincaram definitivamente seus marcos sob os despojos do conflito.





Mas teria, havido, no Rio Grande do Norte, alguma deposição, entre coronéis, pela força das armas? Alguma violenta tomada do poder? Sim, houve, embora pouco conhecido hoje, um episódio em nada diferente de tantos ocorridos no Cariri, do qual talvez tenha vindo o eco, dada a relativa proximidade entre aquela região e o Alto Oeste potiguar, onde ocorreu a história aqui abordada. Para contá-la, a melhor fonte pesquisada foi “Joaquim José Correia LIDER OESTANO”, do professor João Bosco Queiroz Fernandes, da Coleção Pauferrense.





Estamos em 1919. Com o advento da República o Partido Republicano foi organizado no Rio Grande do Norte sob a liderança de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão. Em Pau dos Ferros essa responsabilidade caberia ao Coronel Joaquim José Correia, sob a liderança direta de Joaquim Ferreira Chaves, que havia sido juiz do município até 1887, quando foi promovido para Nova Cruz.





Joaquim Ferreira Chaves partira tendo deixado o Partido Republicano Federal cindido ao meio em Pau dos Ferros. De um lado, Joaquim José Correia e as famílias Rêgo e Ayres. Do outro, o Coronel Adolpho Fernandes e as famílias Bessa e Marcelino Oliveira. Em 20 de março de 1917, pressionado por Ferreira Chaves, Joaquim Correia e Adolpho Fernandes assinaram um acordo político por intermédio do qual caberia, ao primeiro, a liderança política regional, que mesmo assim, teve demitidos seus correligionários dos cargos por eles ocupados e substituídos por indicações de seu opositor. Como conseqüência, Joaquim Correia rompe com Ferreira Chaves, mas permanece no partido sob a liderança de Tavares de Lyra e Alberto Maranhão.





Essa cizânia política foi o pano-de-fundo da denominada “Hecatombe de 1919” ocorrida em Pau dos Ferros, que ocasionou a retirada de Joaquim Correia para residir em Natal. Segue o relato do Coronel, publicado em 13 de junho de 1919 no jornal “A Opinião”, de Natal, transcrita em 20 de julho do mesmo ano no jornal “O Nordeste”, de Mossoró, e editado pelo articulista:





“No dia 2 de abril deste ano (1919), às duas horas da tarde, fui chamado pelo meu distinto amigo Tertuliano Ayres, então diretor e professor da Filarmônica Pauferrense, à casa de seu pai José Ayres.”





“Ali chegando, encontrei os senhores Adolpho Fernandes, Doutor Guilherme Lins, Francisco Dantas de Araújo, Galdino de Carvalho, Martiniano Rêgo (vulgo Papagaio), Hypólito Cassiano de Souza, Ezequiel de Souza, filho deste, Marcelino Francisco de Oliveira (vulgo Mano Marcelino), Lindolpho Noronha e outros, meus adversários.”





“Depois de cumprimentar a todos, me disse o meu amigo Tertuliano Ayres: ‘Coronel, mandei chamá-lo por que o Senhor Adolpho Fernandes pediu-me uma conferência em nossa casa e, aqui chegando, acompanhado dessas pessoas presentes, o Senhor Doutor Guilherme Lins apresentou-me uma lista das pessoas amigas dele que contribuíram para a compra do instrumental da Filarmônica Pauferrense, acrescentando que querem retalhá-lo hoje mesmo. Em vista disso, peço=lhe para entender-se com estes senhores, a fim de resolver o negócio amigavelmente’.”





“Então pedi a lista para ver os contribuintes que nela figuravam, dizendo em seguida: ‘os senhores já estão munidos da lista de seus amigos que concorreram para a compra do instrumental, nós, porém, assim de surpresa, não podemos liquidar este negócio, por que nada existindo escrito, de momento, não nos é possível, com certeza, dizer quais os nossos amigos que também contribuíram para a dita compra, e, nem tampouco, com quanto contribuiu cada um, portanto peço aos senhores para adiarmos a liquidação para amanhã, à mesma hora de hoje, quando então poderemos chegar a um razoável acordo, pois vou colher informações nesse sentido.”





“O Senhor Doutor Guilherme Lins e outros seus amigos relutaram em atender esse pedido, repetindo aquele, com insistência: ‘o negócio deve ser decidido hoje’.”





“Afinal a reunião ficou adiada para o dia seguinte.”





“À hora marcada compareci à casa de José Ayres, onde já encontrei reunidos os mesmos do dia anterior e mais outros meus adversários, estando também presentes alguns amigos meus e o Reverendíssimo Padre Manoel Galvão, Vigário da Freguesia, como um dos contribuintes por parte da Igreja.”





“Ao entrar saudei a todos, dando a mãos aos senhores Doutor Guilherme, meu colega de Congresso, e Adolpho Fernandes, chefe situacionista de há poucos dias.”





“Sentando-me, disse: ‘conforme me comprometi, trago hoje a lista dos amigos que também contribuíram para a compra do instrumental’.”





“Em seguida passei a ler a dita lista, sendo impugnada a assinatura de Francisco Pedro pelo Senhor Doutor Guilherme, tendo o mesmo Francisco Pedro, ali presente, confirmado-a.”





“Conhecidos assim os contribuintes de ambas as partes, fiz a seguinte proposta: ‘proponho pagar aos senhores a importância com que contribuíram para a compra do instrumental, ficando nós com o mesmo, ou de modo contrário, os senhores nos pagam a importância com que contribuímos para a mesma compra, ficando com o dito instrumental.”





“Ao que respondeu imediatamente o Dr. Guilherme Lins: ‘não aceitamos absolutamente proposta alguma; só nos serve a divisão dos instrumentos, ainda que sejam em pedaços’.”





CONTINUA...































CORTARAM MAIS UMA ÁRVORE EM NATAL


Ali estava, na Mossoró, um pouco depois da parada de ônibus, no sentido de quem vem do centro e vai para a Hermes da Fonsêca, o tronco cortado de um Ipê, tudo quanto restou da sanha arboricida de algum barnabé municipal.


Se o Partido Verde, que governa a Cidade, se sentisse obrigado a nos dar satisfações, diria em linguagem oficial que aquele Ipê atrapalhava o progresso, suas raízes levantavam o asfalto, a copa impedia a visão dos motoristas, suas folhas sujavam o chão.


Nada disso é verdade. E se o é, não importa. Tudo conversa fiada. Que nos importa, a nós, que quando meninos já tínhamos aquela árvore frondosa a espalhar sombra, a nós, que somos românticos e resistimos ao progresso quando ele não sabe avançar sem destruir, as razões da Administração?


Lembrei-me, enquanto prosseguia abalado, de um poema de Augusto dos Anjos que eu aprendi quando menino e que minha mãe declamava com a alma na voz, quando a noite tomava conta das ruas. Chama-se A ARVORE DA SERRA:


"- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!


- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!...


- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,


Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!"


Que nos importa esse progresso? Deixem-nos as árvores - é o que importa.

O PASTOR E A FIEL

O Pastor escuta atentamente a candidata a Fiel. As queixas são muitas: o marido bebe; o marido a trai; o dinheiro está mais curto que nunca – é preciso fazer milagres para alimentar todos – e a conta está alta no açougue, na padaria, no mercadinho; ela precisa fazer uma cirurgia “de mulher”, mas o médico do SUS quer um “por fora”; os tênis dos meninos estão pedindo lixeira...



O Pastor não somente escuta atentamente como está conectado com a Fiel através dos olhos que nada perdem da expressão do seu rosto. É olho no olho. Mas não é um olhar intimidante, ao contrário, é acalentador, confortante. E já registrou todos os detalhes possíveis, desde os restos de beleza que o tempo corroia lentamente, até os adereços que ela trazia consigo, como a fina corrente de ouro no pescoço do qual pendia um camafeu e o relógio antigo e de boa marca – relíquia dos bons tempos de outrora – a lhe contornar o pulso. O corpo do Pastor está postado exatamente em frente ao da Fiel e espelha o dela: mãos no regaço, torcendo uma à outra, pernas juntas, corpo acomodado no espaldar das cadeiras idênticas. Para aquela Fiel ele dispensara o paletó, tirara a gravata e arregaçara as mangas da camisa branca que contrastava fortemente com o preto do restante do terno e gravata e acentuava a cor parda de sua pele jovem.



Quando a Fiel está devidamente relaxada – e para isso foi encaminhada através de interjeições cuidadosamente escolhidas e que pontuavam as pequenas pausas do seu relato, este interveio:


- Irmã sua situação, embora dolorosa e complicada, não é diferente de outras que no nosso Templo tivemos conhecimento e através do nosso trabalho e intercessão Jesus quis resolver. Jesus tudo pode, você sabe. Nossa missão, a missão de nossa Congregação, é trazer amparo através de Jesus aos nossos fiéis. Nós somos pastores, orientamos e conduzimos o rebanho de Jesus para onde Ele quiser, sob sua orientação.



A Fiel escuta atentamente. Quer entender e, mais que isso, muito mais que isso quer, como todo coração, acreditar: basta entregar-se a tudo aquilo que o Pastor, com sua voz pausada, envolvente, grave, lhe diz. Haverá alguém que cuide de si. Haverá alguém com quem ela poderá contar para resolver seus problemas, por menores que sejam, por que somente sofre quem Dele se afasta.



- Claro que para superarmos todas essas adversidades colocadas por Jesus em nosso caminho para nos testar, temos que fazer algum sacrifício. É como se precisássemos purgar nossos deslizes, nossos pecados, nossa falta de fé, através de algum gesto, de alguma atitude, de alguma ação, para então ficarmos preparados e recebe-Lo em nossos corações e pudermos superar todas essas adversidades que nos incomodam.



Silencio hipnotizante. O Pastor levanta-se e contorna o birô parando atrás da Fiel. Sua mão direita, agora, repousa completamente sobre a cabeça dela. Agora ambos estão conectados fisicamente, mas ele está acima, alto, fala-lhe como se sua voz viesse de longe – de alguma região para além do mundo visível.

- A irmã tem algum inimigo, alguém que lhe fez mal, da qual tem rancor, ressentimento, ódio?

- A namorada do meu marido.

- Ela sabe que você sabe?

- Não somente sabe como esfrega na minha cara sempre que pode.

- A irmã vai procura-la e lhe dizer que a perdoa de todo coração, sentindo mesmo esse desejo de perdoar. Não se incomode com a reação dela. A tudo que ela disser responda dizendo que a perdoa de todo coração. É essa a prova que Jesus, por nosso intermédio, exige de você. Você é capaz de fazer?

- Acho que sim.

- Agora irmã para que você possa se apresentar a essa criatura que lhe fez mal de coração limpo, deve estar preparada espiritualmente. Você não pode, por exemplo, ocupar-se com pensamentos impuros nem coisas supérfluas. Nada, em você, pode demonstrar a vaidade que Jesus condena. Você deve estar limpa de corpo e alma, entende?

- Entendo.

- Há alguma coisa com você ou em você que seja vaidade, essa vaidade que Jesus, o mais simples dos homens, condena por que nos tira a pureza?

- Somente esta corrente e o relógio. Ah!, e a aliança.

- Doe esses objetos impuros que nada significam para Jesus ao Templo para que sejam convertidos em obras de semeadura da palavra do Senhor. Agora pode ir. Tenha fé, não se esqueça de ter fé, que seus problemas serão superados.

- Pastor e se eu fizer tudo que você recomendou e nada se resolver?

- A sua fé terá sido pouca, irmã. Somente isso. Agora vá.















NO CEMITÉRIO PÈRE LACHAISE

Père Lachaise. Tarde de frio, vento, e neblina. Tudo cinza, como convém a um cemitério. Ninguém a vista, exceto duas mulheres que se dirigem a mim e me perguntam se lhes posso informar onde está sepultado Azzis, “Le philosophe Azzis”. Peço-lhes que perguntem em inglês. “Não, desculpem-me, não sei”, respondo-lhes. Elas se vão. Cochicham. Admiro-lhes o talhe elegante, a beleza madura, até mesmo os guarda-chuvas.



E agora? Tento decifrar o mapa do cemitério para pôr-me em marcha batida na busca dos meus mortos queridos. Começo. É um alumbramento. Paro aqui, paro ali, paro acolá. Em cada canto, a história. Túmulos de grandes homens ou mulheres disputam espaço com anônimos. Enterneço-me com a lápide pousada no chão e rodeada de flores murchas. Foi recente o sepultamento. No canto, solitário, um ursinho de pelúcia cumpre a dura tarefa de velar o morto e render-lhe as homenagens que alguém lhe destinou. Fotografo.



Sigo em frente. Ofereço as flores que carrego comigo a Honoré de Balzac. Rezo, não, converso com ele. Pergunto-lhe por Alexandre Dumas e lhe digo de minhas manhãs, tardes e noites, quando ainda menino, quase adolescente, preenchidas pelo gênio de cada um. Vou mais além, rendo minhas homenagens a Oscar Wilde, e enquanto vou, me assusto com alguém que surge de repente, como uma aparição, ao meu lado, e cruzando o braço esquerdo sobre o peito, eleva o direito à face, esconde-a com a mão e põe-se em um isolamento absoluto em relação ao resto do mundo. O que estaria ele pensando?



A tarde cai lentamente. Anoitece. Tenho que ir, embora não deseje. O instante é mágico. Olho para todos os lados e não vejo ninguém. Sento em um banco às margens de uma das vias principais do Pére Lachaise e me lanço em uma divagação sem nexo, constituída de fragmentos do passado, na qual estou em plena madrugada, deitado de costas e olhando alternadamente para a torre da igreja por trás de mim e para as estrelas logo acima, enquanto meus amigos conversam ao meu lado, e estou em Paris, olhando aquele céu cor de chumbo, molhado, sem que ninguém dê por mim. Lá, eu sou adolescente. Aqui, adulto. Em ambas as situações uma angústia metafísica por não conseguir entender tudo que me cerca, tudo que me envolve, tudo que eu sou.



Vou embora. Cumprimento a guarda. Chego à rua. A Paris movimentada vem ao meu encontro. Eu sigo mecanicamente, enquanto tento guardar as cores, os cheiros, as sensações, os fatos daquela minha caminhada.

A QUESTÃO DA DECISÃO CONTRA A LEI PARA O POSITIVISMO JURÍDICO



01. Bobbio diz: “O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais”. Introduz, então, a distinção entre juízos de fato e juízos de valor, e a rigorosa exclusão destes últimos do campo científico, para concluir: “O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor”. Em síntese, defende que o positivismo jurídico pode ser considerado: a) um certo modo de abordar o estudo do direito; uma certa teoria do direito; e c) uma certa ideologia do direito.

02. Dimoulis não se afasta de Bobbio: “Isso indica que o positivismo jurídico (PJ) é uma teoria explicativa do fenômeno jurídico, isto é, uma das possíveis, historicamente presentes e atualmente defendidas teorias do direito. É inegável que os partidários do PJ foram influenciados pelo positivismo filosófico, como se percebe na tendência de rejeitar teses metafísicas e/ou idealistas sobre a natureza do direito, concentrando-se em fatos demonstráveis, tais como a criação de normas jurídicas pelo legislador político.” Um pouco mais a frente Dimoulis observa, ao distinguir juspositivismo lato sensu e stricto sensu: “Isso nos faz propor uma distinção conceitual entre: - um vastíssimo grupo de autores que são juspositivistas no sentido de rejeitarem o direito natural e por isso são denominados aqui juspositivistas lato sensu e – um grupo mais restrito de autores que rejeitam não somente o jusnaturalismo, mas também a vinculação do direito a outros fenômenos e sistemas normativos sociais e, por essa razão, são denominados aqui juspositivistas stricto sensu”.


03. Kelsen é enfático: “Esta é a base filosófica e psicológica da teoria jurídica que rejeita seriamente o pressuposto de um Direito natural e é chamada positivismo jurídico. O seu caráter epistemológico pode ser aqui traçado nos seus elementos essenciais. Enquanto o positivismo recusa qualquer especulação jusnaturalista, ou seja, qualquer tentativa de reconhecer um ‘Direito em si’, ele se restringe a uma teoria do Direito positivo”. Antes já apontara como características do Direito: a) ser uma ordem coercitiva; b) ser constituído por comandos; c) ser um sistema de normas em unidade; haver uma hierarquia entre as normas jurídicas.

04. Então o que diz esse juspositivismo acerca da decisão contra a lei?

05. Antes Kelsen enfrenta uma questão extremamente relacionada com o tema abordado: “Nossa análise da função judicial demonstra que a visão segundo a qual tribunais apenas aplicam o Direito não conta com a sustentação dos fatos. A visão oposta, porém – a de que não existe Direito antes da decisão judicial e que todo o Direito – é criado pelos tribunais -, é igualmente falsa”. E continua: “O próprio Gray diz: ‘Então o poder dos juízes é absoluto?... Não é assim; os juízes nada são além de órgãos do Estado; eles têm apenas o poder que a organização do Estado lhes dá.’ ‘A organização do Estado’ pode significar apenas a ordem jurídica, a constituição e as normas gerais criadas com base na constituição, o Direito existindo no momento em que o juiz tem de decidir um caso concreto. Gray acha que ‘o que a organização é, é determinado pelas vontades dos reais governantes do Estado’. Mas, em outro contexto ele diz: ‘Determinar quem são os reais governantes de uma sociedade política é quase uma tarefa impossível – para a Jusrisprudência, um problema quase insolúvel.’ ‘Não é possível descobrir quem são os reais governantes de uma sociedade política.’ Se a organização do Estado fosse efetivamente a vontade de indivíduos desconhecidos, que não podem ser descobertos, então a própria organização do Estado seria desconhecida e impossível de se descobrir. Mas a organização do Estado é efetivamente conhecida. Ela é a constituição ‘válida’, ou seja, também eficaz, são as normas válidas criadas com base na constituição, ou seja, o sistema de normas que, como um todo, é eficas. Os ‘reais’ governantes são os órgãos cujos atos criam as normas que, de um modo geral, são eficazes. Como a eficácia da ordem jurídica é uma condição de validade das suas normas jurídicas, não pode haver nenhuma diferença essencial entre o governante ‘real’ e o governante jurídico do Estado. Os indivíduos que influenciam os que criam as normas válidas da ordem jurídica que constitui o Estado podem ser desconhecidos, e pode ser impossível descobri-los. Mas isso também não tem interesse jurídico.” Entretanto é de se perguntar: e no caso das decisões contra a lei?

06. Também Dimoulis aborda a questão: “Em nossa opinião, muitos partidários do PJ stricto sensu consideram que o direito não é resultado de um pacto social, e sim de uma imposição coercitiva feita pelos detentores do poder.” Mais adiante : “Mas enquanto a maioria dos pensadores tentava evitar a transformação do intérprete em legislador estabelecendo limites aos poderes interpretativos, o Bispo Benjamin Hoadly (1676-1761) fez em 1717 uma célebre afirmação que é considerada como precursora da visão jus-realista: ‘Quem quer que tenha uma autoridade absoluta para interpretar quaisquer leis, escritas ou faladas, é aquele que é verdadeiramente, para todos os efeitos, o Legislador, e não a pessoa que primeiro as escreveu ou pronunciou ’.”. Ainda: “O pragmatismo político afirma que o direito resulta de decisões políticas que conseguem se impor (enforceability, segundo um teremo expressivo em inglês), mediante ameaça e efetivo exercício de violência. Temos aqui uma perspectiva que entende o sistema jurídico como expressão do direito do mais forte, isto é, como expressão da correlação de forças do poder, entre as quais uma consegue estampar ao direito sua ‘direção’. Essa perspectiva se exprime com clareza na obra de Baruch Espinosa (1623-1677). Em uma carta endereçada a Jarig Jelles em 1674, o filósofo escreve: ‘Considero que se mantém a presença do direito natural e que em todas as cidades todos os soberanos somente possuem direito sobre os seus súditos na exata medida em que sua potência supera aquela do súdito, exatamente como ocorre sempre no estado de natureza’. Essa abordagem política do sistema jurídico pode ser denominada paradigma ius vel potentia. Em geral é associada à obra do político e jurista alemão Ferdinand Lassalle (1825-1864), autor da célebre afirmação que o direito depende da correlação de forças políticas, e quando se encontra em descompasso com elas transforma-se em uma simples ‘folha de papel’. Menos conhecido é que essa mesma idéia se encontra claramente formulada em obras de Karl Marx (1818-1883) e nas de outros pensadores do século XIX. Essa visão é típica da abordagem crítica sobre as normas de conduta e de controle social (jurídico ou não). Nesse âmbito são notórias as palavras do sofista Trasímaco da Calcedônia (século V a.C.), transmitidas por Platão. Trasímaco definiu o direito como instrumento que garante os interesses dos grupos socialmente dominantes e mantém a submissão dos dominados.”

07. Kelsen estaria muito distanciado dessa posição acima externada por Lassalle? Não. É como percebemos a partir de Dimoulis : “Resumindo, as referências à moldura indicam que, segundo Kelsen, o aplicador realiza a interpretação das normas adotando uma postura cognitiva. Mas, quando não são indicados os métodos que permitem essa cognição, a atividade interpretativa se transforma em puro ato de vontade. Isso se torna claro quando Kelsen afirma que ‘da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar (...) se pode traduzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa’, e conclui que, se a autoridade possui a competência para decidir de forma definitiva, sua decisão vale independentemente do respeito às normas vigentes, isto é, independentemente do respeito à ‘moldura’.

08. Bobbio , ao afirmar que “O positivismo jurídico põe um limite instransponível à atividade interpretativa: a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual” não fecha a questão acerca do assunto pois, na mesma obra, alude ao fenômeno da recepção : “a) Fala-se de reconhecimento ou recepção quando existe um fato social precedente ao Estado ou, de qualquer maneira, independente deste, que produz regras de conduta a que o Estado reconhece (isto é, atribui) a posteriori o caráter de juridicidade ou, em outros termos, que o Estado recepciona (isto é, acolhe em bloco) no próprio ordenamento sem ter contribuído para a formação do conteúdo”.

09. Aí está o “x” da questão: a decisão judicial contra a lei, se a correlação de forças dominantes permitir, será acolhida pelo ordenamento jurídico e dele fará parte. O próprio Kelsen o admite.