sábado, 24 de outubro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DO CORONELISMO I

O FOGO DE PAU DOS FERROS


Corria o ano de 1901. No Cariri, mais precisamente em Missão Velha, o Coronel Antônio Joaquim de Santana, mais conhecido como Coronel Santana apeou do poder, pelas armas, o Coronel Antônio Róseo Jacamaru, seu chefe político e intendente. Pertencendo à família dos Terésios, originária de velhos troncos coloniais, fundadores do Engenho de Santa Teresa, entre Missão Velha e Barbalha, o governou durante dezesseis anos e alimentou o sonho de dominar o sul do Ceará colocando, em cada município, na chefia, uma pessoa de seu sangue.





Seguiu-se a deposição do Coronel José Belém de Figueiredo, chefe político do Crato, em 1904, após tiroteio que durou dois dias e deixou vinte e uma vítimas, das quais oito mortas. Logo depois, em 1906, após tiroteio que durou oito horas, caiu o Coronel Manuel Ribeiro da Costa, conhecido por Neco Ribeiro, sobrinho do célebre caudilho Joaquim Pinto Madeira, da guerra civil absolutista de 1832. Seu algoz foi o Coronel João Raimundo de Macedo, o Joca do Brejão. Venceu quem conseguiu reunir um maior exército de “cabras”.





Veio, após, o fim do reinado político do Coronel Marcolino Alves de Oliveira, arrancado da chefia política do Quixadá pelos Coronéis Joaquim Fernandes de Oliveira e José Alves Pimentel e, em 1907, em Lavras da Mangabeira, a queda do Coronel Honório Correia Lima, curiosamente o filho mais velho de Dona Fideralina Augusto Lima e irmão de Gustavo Augusto Lima, seus carrascos.





Não foram diferentes os anos seguintes, como qualquer leitor poderá constatar lendo “Império do Bacamarte”, obra inigualável de Joaryvar Macedo, fonte dessa pequena introdução, sem qualquer sombra de dúvida uma referência para os estudiosos do fenômeno do coronelismo no Brasil, principalmente do Sertão nordestino, e sua relação com o cangaço e o misticismo próprios da região. Joaryvar, alicerçado em profunda pesquisa bibliográfica, em jornais antigos, depoimentos pessoais, literatura de cordel, e outras fontes primárias, tal como processos-crimes, nos legou um impressionante painel histórico do Cariri cearense e seus principais personagens, os coronéis.





Teria sido esse epifenômeno, o coronelismo, circunscrito ao Sertão do Cariri? Claro que não. Muito pelo contrário, acerca de sua importância, sua presença no mundo rural brasileiro, conseqüência tardia de certa estrutura de poder típica de uma aristocracia renascida na América litorânea - os senhores de engenho pernambucanos e paulistas -, renovação da velha árvore multissecular portuguesa, como podemos inferir a partir da obra de Raymundo Faoro, “Os Donos do Poder”, e sua abordagem do feudalismo nacional, “nascido neste lado do Atlântico, gerado espontaneamente pela conjunção das mesmas circunstâncias que produziram o europeu”. Diz-nos Faoro: “O quadro teórico daria consistência, conteúdo e inteligência ao mundo nostálgico de colonos e senhores de engenho, opulentos, arbitrários, desdenhosos da burocracia, com a palavra desafiadora à flor dos lábios, rodeados de vassalos prontos a obedecer-lhe ao grito de rebeldia. Senhores de terras e senhores de homens, altivos, independentes, atrevidos – redivivas imagens dos barões antigos”.





O próprio Joaryvar Macedo assim começa “Império do Bacamarte”: “No território pátrio, o fenômeno do coronelismo esboçou-se na Colônia, tornou-se realidade no Império e consolidou-se após o advento da República”. Ainda: “Entre nós a Primeira República, também denominada, consoante já se esclareceu, República dos Coronéis, teve no coronelismo uma das suas marcas principais. Mais acentuado no Nordeste, o fenômeno generalizou-se por todo o País, do Amazonas ao Rio Grande do Sul”.





No Rio Grande do Norte, que houve coronéis, disso não há qualquer dúvida. Basta consultar “Coronéis do Seridó”, de Pery Lamartine, e conhecer desde o Coronel João Damasceno Pereira de Araújo, o João Damasceno do Saco do Martins, até o Coronel Cazuza do Ipueira, passando por Silvino Bezerra de Araújo Galvão, José Bernardo de Medeiros, Laurentino Theodoro da Cruz e vários outros senhores proprietários de terra e líderes políticos. Todos descendentes de portugueses que avançavam Sertão adentro, a arrancar da indiada insubmissa a terra que lhe pertencia imemorialmente até o fim da Guerra dos Bárbaros (1687-1697), quando, por fim, do Vale do Açu, passando por Apodi, no Alto Oeste, até o Seridó, em Acauã, os vitoriosos fincaram definitivamente seus marcos sob os despojos do conflito.





Mas teria, havido, no Rio Grande do Norte, alguma deposição, entre coronéis, pela força das armas? Alguma violenta tomada do poder? Sim, houve, embora pouco conhecido hoje, um episódio em nada diferente de tantos ocorridos no Cariri, do qual talvez tenha vindo o eco, dada a relativa proximidade entre aquela região e o Alto Oeste potiguar, onde ocorreu a história aqui abordada. Para contá-la, a melhor fonte pesquisada foi “Joaquim José Correia LIDER OESTANO”, do professor João Bosco Queiroz Fernandes, da Coleção Pauferrense.





Estamos em 1919. Com o advento da República o Partido Republicano foi organizado no Rio Grande do Norte sob a liderança de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão. Em Pau dos Ferros essa responsabilidade caberia ao Coronel Joaquim José Correia, sob a liderança direta de Joaquim Ferreira Chaves, que havia sido juiz do município até 1887, quando foi promovido para Nova Cruz.





Joaquim Ferreira Chaves partira tendo deixado o Partido Republicano Federal cindido ao meio em Pau dos Ferros. De um lado, Joaquim José Correia e as famílias Rêgo e Ayres. Do outro, o Coronel Adolpho Fernandes e as famílias Bessa e Marcelino Oliveira. Em 20 de março de 1917, pressionado por Ferreira Chaves, Joaquim Correia e Adolpho Fernandes assinaram um acordo político por intermédio do qual caberia, ao primeiro, a liderança política regional, que mesmo assim, teve demitidos seus correligionários dos cargos por eles ocupados e substituídos por indicações de seu opositor. Como conseqüência, Joaquim Correia rompe com Ferreira Chaves, mas permanece no partido sob a liderança de Tavares de Lyra e Alberto Maranhão.





Essa cizânia política foi o pano-de-fundo da denominada “Hecatombe de 1919” ocorrida em Pau dos Ferros, que ocasionou a retirada de Joaquim Correia para residir em Natal. Segue o relato do Coronel, publicado em 13 de junho de 1919 no jornal “A Opinião”, de Natal, transcrita em 20 de julho do mesmo ano no jornal “O Nordeste”, de Mossoró, e editado pelo articulista:





“No dia 2 de abril deste ano (1919), às duas horas da tarde, fui chamado pelo meu distinto amigo Tertuliano Ayres, então diretor e professor da Filarmônica Pauferrense, à casa de seu pai José Ayres.”





“Ali chegando, encontrei os senhores Adolpho Fernandes, Doutor Guilherme Lins, Francisco Dantas de Araújo, Galdino de Carvalho, Martiniano Rêgo (vulgo Papagaio), Hypólito Cassiano de Souza, Ezequiel de Souza, filho deste, Marcelino Francisco de Oliveira (vulgo Mano Marcelino), Lindolpho Noronha e outros, meus adversários.”





“Depois de cumprimentar a todos, me disse o meu amigo Tertuliano Ayres: ‘Coronel, mandei chamá-lo por que o Senhor Adolpho Fernandes pediu-me uma conferência em nossa casa e, aqui chegando, acompanhado dessas pessoas presentes, o Senhor Doutor Guilherme Lins apresentou-me uma lista das pessoas amigas dele que contribuíram para a compra do instrumental da Filarmônica Pauferrense, acrescentando que querem retalhá-lo hoje mesmo. Em vista disso, peço=lhe para entender-se com estes senhores, a fim de resolver o negócio amigavelmente’.”





“Então pedi a lista para ver os contribuintes que nela figuravam, dizendo em seguida: ‘os senhores já estão munidos da lista de seus amigos que concorreram para a compra do instrumental, nós, porém, assim de surpresa, não podemos liquidar este negócio, por que nada existindo escrito, de momento, não nos é possível, com certeza, dizer quais os nossos amigos que também contribuíram para a dita compra, e, nem tampouco, com quanto contribuiu cada um, portanto peço aos senhores para adiarmos a liquidação para amanhã, à mesma hora de hoje, quando então poderemos chegar a um razoável acordo, pois vou colher informações nesse sentido.”





“O Senhor Doutor Guilherme Lins e outros seus amigos relutaram em atender esse pedido, repetindo aquele, com insistência: ‘o negócio deve ser decidido hoje’.”





“Afinal a reunião ficou adiada para o dia seguinte.”





“À hora marcada compareci à casa de José Ayres, onde já encontrei reunidos os mesmos do dia anterior e mais outros meus adversários, estando também presentes alguns amigos meus e o Reverendíssimo Padre Manoel Galvão, Vigário da Freguesia, como um dos contribuintes por parte da Igreja.”





“Ao entrar saudei a todos, dando a mãos aos senhores Doutor Guilherme, meu colega de Congresso, e Adolpho Fernandes, chefe situacionista de há poucos dias.”





“Sentando-me, disse: ‘conforme me comprometi, trago hoje a lista dos amigos que também contribuíram para a compra do instrumental’.”





“Em seguida passei a ler a dita lista, sendo impugnada a assinatura de Francisco Pedro pelo Senhor Doutor Guilherme, tendo o mesmo Francisco Pedro, ali presente, confirmado-a.”





“Conhecidos assim os contribuintes de ambas as partes, fiz a seguinte proposta: ‘proponho pagar aos senhores a importância com que contribuíram para a compra do instrumental, ficando nós com o mesmo, ou de modo contrário, os senhores nos pagam a importância com que contribuímos para a mesma compra, ficando com o dito instrumental.”





“Ao que respondeu imediatamente o Dr. Guilherme Lins: ‘não aceitamos absolutamente proposta alguma; só nos serve a divisão dos instrumentos, ainda que sejam em pedaços’.”





CONTINUA...































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