01. Bobbio diz: “O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais”. Introduz, então, a distinção entre juízos de fato e juízos de valor, e a rigorosa exclusão destes últimos do campo científico, para concluir: “O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor”. Em síntese, defende que o positivismo jurídico pode ser considerado: a) um certo modo de abordar o estudo do direito; uma certa teoria do direito; e c) uma certa ideologia do direito.
02. Dimoulis não se afasta de Bobbio: “Isso indica que o positivismo jurídico (PJ) é uma teoria explicativa do fenômeno jurídico, isto é, uma das possíveis, historicamente presentes e atualmente defendidas teorias do direito. É inegável que os partidários do PJ foram influenciados pelo positivismo filosófico, como se percebe na tendência de rejeitar teses metafísicas e/ou idealistas sobre a natureza do direito, concentrando-se em fatos demonstráveis, tais como a criação de normas jurídicas pelo legislador político.” Um pouco mais a frente Dimoulis observa, ao distinguir juspositivismo lato sensu e stricto sensu: “Isso nos faz propor uma distinção conceitual entre: - um vastíssimo grupo de autores que são juspositivistas no sentido de rejeitarem o direito natural e por isso são denominados aqui juspositivistas lato sensu e – um grupo mais restrito de autores que rejeitam não somente o jusnaturalismo, mas também a vinculação do direito a outros fenômenos e sistemas normativos sociais e, por essa razão, são denominados aqui juspositivistas stricto sensu”.
03. Kelsen é enfático: “Esta é a base filosófica e psicológica da teoria jurídica que rejeita seriamente o pressuposto de um Direito natural e é chamada positivismo jurídico. O seu caráter epistemológico pode ser aqui traçado nos seus elementos essenciais. Enquanto o positivismo recusa qualquer especulação jusnaturalista, ou seja, qualquer tentativa de reconhecer um ‘Direito em si’, ele se restringe a uma teoria do Direito positivo”. Antes já apontara como características do Direito: a) ser uma ordem coercitiva; b) ser constituído por comandos; c) ser um sistema de normas em unidade; haver uma hierarquia entre as normas jurídicas.
04. Então o que diz esse juspositivismo acerca da decisão contra a lei?
05. Antes Kelsen enfrenta uma questão extremamente relacionada com o tema abordado: “Nossa análise da função judicial demonstra que a visão segundo a qual tribunais apenas aplicam o Direito não conta com a sustentação dos fatos. A visão oposta, porém – a de que não existe Direito antes da decisão judicial e que todo o Direito – é criado pelos tribunais -, é igualmente falsa”. E continua: “O próprio Gray diz: ‘Então o poder dos juízes é absoluto?... Não é assim; os juízes nada são além de órgãos do Estado; eles têm apenas o poder que a organização do Estado lhes dá.’ ‘A organização do Estado’ pode significar apenas a ordem jurídica, a constituição e as normas gerais criadas com base na constituição, o Direito existindo no momento em que o juiz tem de decidir um caso concreto. Gray acha que ‘o que a organização é, é determinado pelas vontades dos reais governantes do Estado’. Mas, em outro contexto ele diz: ‘Determinar quem são os reais governantes de uma sociedade política é quase uma tarefa impossível – para a Jusrisprudência, um problema quase insolúvel.’ ‘Não é possível descobrir quem são os reais governantes de uma sociedade política.’ Se a organização do Estado fosse efetivamente a vontade de indivíduos desconhecidos, que não podem ser descobertos, então a própria organização do Estado seria desconhecida e impossível de se descobrir. Mas a organização do Estado é efetivamente conhecida. Ela é a constituição ‘válida’, ou seja, também eficaz, são as normas válidas criadas com base na constituição, ou seja, o sistema de normas que, como um todo, é eficas. Os ‘reais’ governantes são os órgãos cujos atos criam as normas que, de um modo geral, são eficazes. Como a eficácia da ordem jurídica é uma condição de validade das suas normas jurídicas, não pode haver nenhuma diferença essencial entre o governante ‘real’ e o governante jurídico do Estado. Os indivíduos que influenciam os que criam as normas válidas da ordem jurídica que constitui o Estado podem ser desconhecidos, e pode ser impossível descobri-los. Mas isso também não tem interesse jurídico.” Entretanto é de se perguntar: e no caso das decisões contra a lei?
06. Também Dimoulis aborda a questão: “Em nossa opinião, muitos partidários do PJ stricto sensu consideram que o direito não é resultado de um pacto social, e sim de uma imposição coercitiva feita pelos detentores do poder.” Mais adiante : “Mas enquanto a maioria dos pensadores tentava evitar a transformação do intérprete em legislador estabelecendo limites aos poderes interpretativos, o Bispo Benjamin Hoadly (1676-1761) fez em 1717 uma célebre afirmação que é considerada como precursora da visão jus-realista: ‘Quem quer que tenha uma autoridade absoluta para interpretar quaisquer leis, escritas ou faladas, é aquele que é verdadeiramente, para todos os efeitos, o Legislador, e não a pessoa que primeiro as escreveu ou pronunciou ’.”. Ainda: “O pragmatismo político afirma que o direito resulta de decisões políticas que conseguem se impor (enforceability, segundo um teremo expressivo em inglês), mediante ameaça e efetivo exercício de violência. Temos aqui uma perspectiva que entende o sistema jurídico como expressão do direito do mais forte, isto é, como expressão da correlação de forças do poder, entre as quais uma consegue estampar ao direito sua ‘direção’. Essa perspectiva se exprime com clareza na obra de Baruch Espinosa (1623-1677). Em uma carta endereçada a Jarig Jelles em 1674, o filósofo escreve: ‘Considero que se mantém a presença do direito natural e que em todas as cidades todos os soberanos somente possuem direito sobre os seus súditos na exata medida em que sua potência supera aquela do súdito, exatamente como ocorre sempre no estado de natureza’. Essa abordagem política do sistema jurídico pode ser denominada paradigma ius vel potentia. Em geral é associada à obra do político e jurista alemão Ferdinand Lassalle (1825-1864), autor da célebre afirmação que o direito depende da correlação de forças políticas, e quando se encontra em descompasso com elas transforma-se em uma simples ‘folha de papel’. Menos conhecido é que essa mesma idéia se encontra claramente formulada em obras de Karl Marx (1818-1883) e nas de outros pensadores do século XIX. Essa visão é típica da abordagem crítica sobre as normas de conduta e de controle social (jurídico ou não). Nesse âmbito são notórias as palavras do sofista Trasímaco da Calcedônia (século V a.C.), transmitidas por Platão. Trasímaco definiu o direito como instrumento que garante os interesses dos grupos socialmente dominantes e mantém a submissão dos dominados.”
07. Kelsen estaria muito distanciado dessa posição acima externada por Lassalle? Não. É como percebemos a partir de Dimoulis : “Resumindo, as referências à moldura indicam que, segundo Kelsen, o aplicador realiza a interpretação das normas adotando uma postura cognitiva. Mas, quando não são indicados os métodos que permitem essa cognição, a atividade interpretativa se transforma em puro ato de vontade. Isso se torna claro quando Kelsen afirma que ‘da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar (...) se pode traduzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa’, e conclui que, se a autoridade possui a competência para decidir de forma definitiva, sua decisão vale independentemente do respeito às normas vigentes, isto é, independentemente do respeito à ‘moldura’.
08. Bobbio , ao afirmar que “O positivismo jurídico põe um limite instransponível à atividade interpretativa: a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual” não fecha a questão acerca do assunto pois, na mesma obra, alude ao fenômeno da recepção : “a) Fala-se de reconhecimento ou recepção quando existe um fato social precedente ao Estado ou, de qualquer maneira, independente deste, que produz regras de conduta a que o Estado reconhece (isto é, atribui) a posteriori o caráter de juridicidade ou, em outros termos, que o Estado recepciona (isto é, acolhe em bloco) no próprio ordenamento sem ter contribuído para a formação do conteúdo”.
09. Aí está o “x” da questão: a decisão judicial contra a lei, se a correlação de forças dominantes permitir, será acolhida pelo ordenamento jurídico e dele fará parte. O próprio Kelsen o admite.
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