sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

QUEM PODE JULGAR O JUIZ?

Nélson Motta


Nelson Motta, O Globo



Quando se fala desse assunto deve-se pesar muito bem cada palavra. Basta algum juiz de qualquer lugar achar que há algo de errado, ofensivo ou calunioso nelas, e você pode ser processado. E pior, o processo vai ser julgado por um colega do ofendido. Com raras exceções, jornalistas processados por supostas ofensas a juízes são sempre condenados por seus pares.


Sim, a maioria absoluta dos juízes é de homens e mulheres de bem, mas eu deveria consultar meu advogado antes de dizer isto: o corporativismo do Judiciário no Brasil desequilibra um dos pilares que sustentam o Estado democrático de direito. Basta ver os salários, privilégios e imunidades.


A brava ministra faxineira-chefe Eliana Calmon está sob fogo cerrado da corporação por defender os poderes constitucionais do Conselho Nacional de Justiça e chamar alguns juízes de “bandidos de toga”. Embora não exista melhor definição para Lalau e outros togados que aviltam a classe.


Como um sindicato de juízes, a Ajufe está indignada porque a ministra Eliana é contra os dois meses de férias que a categoria tem por ano, quando o resto dos brasileiros tem só um (menos os parlamentares, que têm quatro). Se os juízes ficam muito estressados e precisam de dois meses “para descansar a mente, ler e estudar”, de quantos meses deveriam ser as férias dos médicos? E das enfermeiras? E aí quem cuidaria das doenças dos juízes?


“Será que a ministra diz isso para agradar a imprensa, falada e escrita? Para agradar o povão?”, questiona a Ajufe. Como não é candidata a nada, as posições da ministra têm o apoio da imprensa e do público porque são éticas, republicanas e democráticas. Porque o povão, e a elite, julgam que são justas.


Meu avô foi ministro do Supremo Tribunal Federal, nomeado pelo presidente JK em 1958, julgou durante 15 anos, viveu e morreu modestamente, entre pilhas de processos. Suas únicas regalias eram o apartamento funcional em Brasília e o carro oficial. Não sei se foi melhor ou pior juiz por isto, mas sempre foi para mim um exemplo da austeridade e da autoridade que se espera dos que decidem vidas e destinos.


Nelson Motta é jornalista.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O PRESTÍGIO DO PODER JUDICIÁRIO ESTÁ EM QUEDA-LIVRE

Walter Maierovitch

Dever de vigilância do COAF contestado por Marco Aurélio e AMB

29 de dezembro de 2011

Por Walter Maierovitch (maierovitch.blog.terra.com.br)

O prestígio do poder Judiciário está em queda-livre. Está a cair mais do que as desconfianças nas finanças da Grécia, Itália e Espanha.

Os ministros Marco Aurélio Mello e a Associação Brasileira de Magistrados (AMB) foram os grandes protagonistas de um descrédito jamais sentido na história judiciária brasileira republicana.

A última bola-fora diz respeito à representação proposta pela AMB e taxada como criminosa pelo ministro Marco Aurélio, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.

Essa representação foi encaminhada ao Procurador Geral da República, — que é o titular da ação penal pública em caso de crime–, e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle sobre desvios funcionais de magistrados não supremos: o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em causa própria evidentemente, que o CNJ não tem poder correcional sobre os 11 ministros do pretório excelso.

O motivo da “notícia de crime” contida na representação da AMB diz respeito à atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

O COAF, a pedido do íntegro ministro Gilson Dipp, então corregedor do CNJ, examinou a movimentação financeira de 217 mil funcionários públicos judiciários, incluídos magistrados. Parêntese: juízes são funcionários públicos em sentido amplo e são órgãos do poder Judiciário, em sentido estrito.

Das verificações, o COAF apontou para 3.400 casos de movimentação fora do padrão habitual. Em síntese, 3.400 servidores públicos que podem, por exemplo, ter ganhado na loteria, recebido heranças, verba de precatório desapropriatório ou vendido decisões, liminares ou de mérito. O ministro Paulo Medina, ex-presidente da AMB, foi afastado das funções, sem prejuízo de vencimentos e vantagens, por vender liminares. No caso, não foi o COAF mas o CNJ que apurou por conta própria.

O COAF, e não sabe o ministro Marco Aurélio Mello e o presidente da AMB, tem, por força de lei, o chamado “dever de vigilância”. Não é um órgão de investigação, mas de inteligência financeira. Ou seja, detecta e informa quem tem o dever de investigar.

O COAF foi criado num esforço internacional para impedir a lavagem de dinheiro e ocultação de capitais por organizações terroristas, de narcotraficantes e de criminosos poderosos e potentes espalhados pelo planeta.

Ao atender uma requisição judiciária ( o CNJ integra o Poder Judiciário), o COAF apontou para movimentação fora do padrão e sem afirmar tratar-se de consumação de crimes. Como frisado acima, o COAF não realiza investigações criminais.

Depois de conceder liminar em caso que não havia urgência e para esvaziar a atuação do CNJ, isto no apagar das luzes do ano Judiciário, o ministro Marco Aurélio prestou um novo desserviço ao atribuir conduta criminosa e referente a quebra de sigilo de magistrados. Ele confunde dever de vigilância com quebra de sigilo.

Fora isso, Marco Aurélio não quer deixar que o CNJ tome a iniciativa de investigar juízes sob suspeita de desvio funcional, como, por exemplo, venda de sentenças a traficantes de drogas, etc. E o CNJ nasceu para atuar correcionalmente.

Nessa quadro surreal de concessões de liminares sem o requisito necessário da urgência, com o ministro Ricardo Lewandowsky a impedir a continuação de correição no Tribunal de Justiça de São Paulo (em outros estados foram realizadas sem ações e liminares), deve-se lembrar que, em setembro passado, a inconstitucionalidade sobre a atividade correcional do CNJ foi retirada da pauta de julgamento pelo plenário do STF, sem oposição de Marco Aurélio Mello. E foi retirada de pauta não haver sido considerada urgente.

Pano Rápido. O ministro Marco Aurélio seria um bom candidato à presidência da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), que congrega 16 mil juízes e tem no corporativismo e na manutenção de privilégios (férias duas vezes ao ano) a sua bandeira de lutas.

Sobre interpretações, como levantou o jurista Joaquim Falcão, o ministro Marco Aurélio ficou vencido em 73% dos julgamentos sobre questões de direito Constitucional no STF (confira-se: Folha de S.Paulo, edição de 20 de dezembro, página A6).

A respeito da decisão de Marco Aurélio de soltura do banqueiro golpista Salvatore Cacciola, frise-se, foi por liminar e a contrair decisões de juiz federal, do Tribunal Regional Federal e do Superior Tribuanl de Justiça.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

CARTA A PAPAI NOÉ

nordesteweb.com


CARTA A PAPAI NOÉ
Luís Campos
Poeta mossoroense

Seu moço eu fui um garoto
Infeliz na minha infância
Que soube que fui criança
Mas pela boca dos outo.
Só brinquei com os gafanhoto
Que achava nos tabuleiro
Debaixo dos juazeiro
Com minhas vaca de osso
Essa catrevage, sêo moço
Que a gente arranja sem dinheiro.

Quando eu via um gurizin
Brincando de velocipe
De caminhão e de gipe
Bola, revólver e carrin
Sentia dentro de mim
Desgosto que dava medo
Ficava chupando o dedo
Chorando o resto do dia
Só pruquê eu num pudia
Pegar naqueles brinquedo.

Mas preguntei uma vez
A uns fio de dotô
Diga, fazendo um favô
Quem dá isso pra vocês?
Mim respondeu logo uns três
Isso aqui é os presente
Que a gente é inocente
Vai drumí às vêis nem nota
Aí Papai Noé bota
Perto do berço da gente. 


Fiquei naquilo pensando
Inté o Natá chegá
E na Noite de Natá
Eu fui drumi mim lembrando
Acordei fiquei caçando
Por onde eu tava deitado
Seu moço eu fui enganado
Que de presente o que tinha
Era de mijo uma pocinha
Que eu mermo tinha botado

Saí c’a bixiga preta
Caçando os amigos meu
Quando eles mostraram a eu
Caminhão, carro e carreta
Bola, revólver, corneta
E trem elétrico, até
Boneca, máquina de pé
Mas num brinquei, só fiz vê
E resolvi escrevê
Uma carta a Papai Noé.

“Papai Noé, é pecado
Os outro se matratá
Mas eu vou le recramá
Um troço que tá errado
Que aos fio de deputado
Você dá tanto carrin
Mas você é muito ruim
Que lá em casa num vai
Por certo num é meu pai
Que num se lembra de mim.

Já tô certo que você
Só balança o povo seu
E um pobe qui nem eu
Você vê, faz qui num vê
E se você vê, porque
Na minha casa num vem?
O rancho que a gente tem
E pequeno mas le cabe
Será que você num sabe
Qui pobe é gente também?

Você de roupa encarnada,
Colorida, bonitinha
Nunca reparou que a minha
Já tá toda remendada
Seja mais meu camarada
Prêu num chamá-lo de ruim
Para o ano faça assim:
Dê menos aos fio dos rico
De cada um tire um tico,
Traga um presente pra mim.

Meu endereço eu vou dá,
Da casa que eu moro nela
Moro naquela favela
Que você nunca foi lá
Mas quando você chegá
Que avistá uma paióça
Cuberta cum lona grossa
E dois buraco bem grande
Uma porta véia de frande
Pode batê que é a nossa.

sábado, 12 de novembro de 2011

COMO AVALIAR UM GOVERNO?



Honorio de Medeiros

Em “Desenvolvimento Como Liberdade” (Companhia das Letras; 2004; 4ª reimpressão; São Paulo), Amartya Sen, Premio Nobel de Economia, ex-membro da Presidência do Banco Mundial, ex-professor da Universidade de Harvard, esposo de Emma Rothschild – autora, por sua vez, de “Sentimentos Econômicos”, um denso ensaio acerca de Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo – nos convida a percebermos o contraste entre “um mundo de opulência sem precedentes” e “um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias.”
Trocando em miúdos Amartya Sen nos convida, isto sim, a entendermos o desenvolvimento como “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, e, não, como algo a ser identificado com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social.
Ao se referir à expansão das liberdades reais Amartya Sen se refere, por exemplo, aos serviços de educação e saúde – e aqui eu acrescento segurança pública – e aos direitos civis (a possibilidade de participar efetivamente do governo e das discussões e averiguações públicas em relação ao dinheiro do povo).
Aceitar esse ideário como premissa implica em compreender que somente podemos considerar desenvolvido ou em desenvolvimento um País, Estado ou Município no qual, à título de esclarecimento, e em termos bastante simplificados, o dispêndio com obras públicas, tais como calçamentos, praças, ruas, estradas, asfaltamento, prédios, pontes, açudes, barragens, estádios de futebol, somente ocorra como conseqüência necessária e comprovada da implantação de políticas públicas voltadas para o avanço em áreas como educação, saúde e segurança. Políticas públicas essas estabelecidas claramente através de programas e projetos que tenham metas, prazos, alocação de recursos humanos e financeiros delineados claramente e possam ser acompanhados e questionados pela sociedade como um todo.
Óbvio que, no Brasil, a lógica é outra. As obras públicas são sempre “vendidas” à sociedade como sendo essenciais para o desenvolvimento “sustentável”. Essa lógica, consciente ou inconscientemente, busca privilegiar quem há de se beneficiar direta e imediatamente com ela, ou seja, aqueles que detêm o capital em suas mãos e querem o retorno imediato do investimento realizado: comprova essa afirmação a relação estreitíssima, no Brasil, entre os governos, sejam estes federais, estaduais e municipais, e empreiteiros, construtores, empresários da construção civil, enfim, os quais, depois de realizadas as eleições, pressionam os candidatos aos quais apoiaram financeiramente a investirem em obras.
A constatação, também, daquilo que se afirma aqui pode ser feita por qualquer um: basta que nos perguntemos se com todo o investimento em obras ocorrido no Brasil, digamos, desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula, até hoje, houve diminuição sensível na miséria, e melhoria significativa na educação, saúde, e segurança pública. Façamos o mesmo quanto ao Rio Grande do Norte, Natal e/ou Mossoró.
É claro que não. Muito ao contrário. O que nós percebemos, nitidamente, é que o avanço, se é que houve, é um verniz que não resiste a uma visita individual ou coletiva a postos de saúde ou hospitais, escolas públicas e delegacias de polícia.
Portanto a conclusão é óbvia: desconfiemos de qualquer obra que não esteja atrelada, comprovadamente, a uma política pública na área de educação, saúde ou segurança. Uma comprovação que salte aos olhos, indiscutível.

Para começo de assunto. 


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

DA ARTE DE ROMPER UM GRANDE AMOR



Honorio de Medeiros


                   Muito tempo depois de sua separação eu a encontrei em um café, contemplando o mundo lá fora com aqueles olhos azuis maravilhosos através das volutas da fumaça do cigarro. Após os cumprimentos de praxe, não resisti e lhe perguntei como sobrevivera ao fim do seu casamento, tão minuciosamente condenado ao fracasso, segundo sua própria avaliação, quando nos vimos pela última vez. Ela sorriu, se espreguiçou como uma gata, tomou lentamente um gole de café, e me perguntou se eu queria saber a história toda ou somente o desfecho, com algumas pinceladas óbvias como arremate.

                   Antes de lhe dizer que não dispensava os detalhes me lembrei que parte do seu fascínio era a administração do silêncio, e este nos induzia a supor regiões misteriosas do seu pensamento onde a fantasia bordava, junto com a realidade, situações fascinantes para quem soubesse ousar e tivesse coragem de receber. Já naquele tempo ela reinava impune, a tripudiar das vãs tentativas dos conquistadores ávidos e tímidos admiradores, sem que as recusas constantes diminuíssem a admiração que granjeava. Nela, nada se eximia de seduzir, mas mesmo assim um dia sucumbira a uma paixão inesperada e violenta, que a retirara do circuito das festas e badalações.

                   Desde o começo nós, seus amigos, percebêramos que não daria certo aquela paixão. Sutilmente sua liberdade fora sendo restringida – logo a dela, tão essencial a si. Aos poucos, milímetro por milímetro, cedera sem notar, encantada por uma proposta enleadora de construção do futuro a dois, mão a mão, através da imagem de uma ponte afetiva que se sabia onde começava, mas que terminaria no infinito. Embora apaixonada foi através da persuasiva magia da visualização de um amor único, daqueles que nutrem uma alma só em dois corpos distintos, que ocorrera a derrubada das suas últimas resistências.

                   Mas finalmente ela despertou e a ânsia de viver livre, solta, cobrou sua fatura. Passou a se sentir sufocada e a perceber as invisíveis amarras que lhe prendiam o vôo. Queria ir embora, queria sumir, queria desaparecer, mas havia um obstáculo, um sério senão a impedir sua liberdade: o orgulho desmedido, o egocentrismo concentrado, a incontida auto-imagem que seu companheiro fazia de si mesmo; não era possível que o relacionamento fosse desfeito sem que a explicação a ser dada para isso preservasse sua posição social e o alto conceito que fazia de si mesmo.

                   “Eu não podia lhe dizer que ia embora por que o amor acabara; seu orgulho não aceitaria ser trocado por nada, por coisa alguma. Ele não admitiria nunca que não fora capaz de me segurar apaixonada, não admitiria que eu nada mais sentisse exceto um afeto meio dependente do alívio do afastamento definitivo. Tive, então, que criar uma paixão inexistente por outro e, pior, por alguém abaixo da escala de valores que ele prezava. Fui deixando que ele imaginasse que a verdade, acerca dessa paixão, estava sendo arrancada a pedaços, tamanha era minha vergonha. Assim, fui repudiada, me libertei, e ele pode dizer por aí, quando questionado, que eu havia sido uma aposta perdida por que mal avaliada, que eu fui incapaz de perceber a qualidade do sentimento que despertara, que eu fui alçada a um nível incompatível com minha ausência de sofisticação e, assim, depois, tinha sido levada de volta, como seria natural, através de um "qualquer", ao mundo ao qual realmente pertencia”.


                   E se foi, não sem antes me endereçar um sorriso meio irônico, como se a trama que ela encetara não tivesse envolvido somente um homem, mas todos os outros tão previamente condenados a não escapar, no final da contas, da malícia de toda mulher.                  

domingo, 6 de novembro de 2011

A DIALÉTICA NÃO DEVE AVENTURAR-SE COM A VERDADE

Schopenhauer
dialogocomosfilosofos.com.br

"A dialética não deve, portanto, aventurar-se na verdade, do mesmo modo como o mestre de esgrima não leva em consideração quem de fato está com a razão no litígio que causou o duelo: acertar e defender, eis o que interessa. O mesmo vale na dialética: ela é uma esgrima intelectual; somente quando entendida desse modo puro pode ser apresentada como uma disciplina própria, pois, se nos colocamos como metga a pura verdade objetiva, retornamos à mera LÓGICA; se, por outro lado, nos colocamos a realização de proposições falsas, temos então a mera SOFÍSTICA."

sábado, 5 de novembro de 2011

UMA OBRA A MAIS, UMA POLÍTICA PÚBLICA A MENOS

Até quando?


Honório de Medeiros



Há uma lógica perversa, induzindo a opção por privilegiar obras físicas em detrimento de políticas públicas, nos governos brasileiros, sejam estes quais sejam: municipais, estaduais, ou mesmo federal. Tal lógica é ainda mais perversa por praticamente excluir a opção pelas políticas públicas, entendidas estas “como as várias funções sociais possíveis de serem exercidas pelo Estado, tais como saúde, educação, previdência, moradia, saneamento básico, entre outras”, no dizer de Antônio Sérgio Araújo Fernandes, Doutor em Ciência Política pela USP e professor de Políticas Públicas da UNESP/Campus Araraquara, em “Políticas Públicas: Definição, Evolução e o Caso Brasileiro”.

Em primeiro lugar, a opção por obras físicas, QUANDO RESULTADO DESSA INDUÇÃO, é conseqüência de uma demanda específica: a das grandes empresas de construção civil e de serviços – e suas agregadas – que precisam recuperar o montante investido nos candidatos por elas apoiados e, também, convenhamos, como conseqüência do fato de seus proprietários, o mais das vezes, serem integrantes, através de laços familiares ou de compadrio, da elite política, quando não são o que comumente chamamos, no Brasil, de “laranjas”, ou seja, títeres dos próprios políticos.

Em segundo lugar, a opção por obras físicas é, também, conseqüência de outra demanda específica: a necessidade de encher os cofres vazios da elite política vencedora dos pleitos eleitorais aos quais se candidataram, e construir reserva para as futuras demandas político-partidárias.

Em terceiro lugar, a opção por obras físicas é, ainda, conseqüência de outra demanda específica: a de gerar condições de manutenção ou aquinhoamento financeiro dos quadros responsáveis pela gestão pública, sob a alegação (interna) de que não suportariam sobreviver com a remuneração miserável que lhes paga o serviço público (o chamado “por fora”).

Esse círculo vicioso – a elite política ser financiada pelas obras e serviços e, como conseqüência, por intermédio do Tesouro, financiá-las – consome o que sobra, no orçamento, quando pagos o custeio da máquina e a folha de pessoal, na maioria das vezes com manipulação orçamentária, sem praticamente nada deixar para a efetivação de políticas públicas.

A manipulação, persistente, o gerenciamento estrutural e dolosamente equivocado das finanças públicas, se mantém com a conivência dos Órgãos fiscalizadores, seja por desídia, seja por incompetência. Ano após ano a Constituição Federal é desrespeitada e seus princípios norteadores, no que diz respeito à Educação e Saúde, entre outros, adquirem o perfil de “letras mortas”.

O círculo vicioso engendra uma custosa publicidade com o objetivo de persuadir a sociedade acerca dos bons propósitos de toda obra e qualquer serviço que estejam sendo feitos. Assim, toda e qualquer obra surge, na publicidade, como decorrência de uma “demanda social” e se destina ao “desenvolvimento sustentado”. Obras e serviços por intermédio dos quais circula o capital financeiro da elite política, para perpetuar a expropriação da força de trabalho da classe média, que é quem paga, na verdade, os tributos nossos de cada dia.

E as políticas públicas, tais como a luta pela erradicação do analfabetismo, a luta contra a mortalidade infantil, a luta pela qualidade do ensino em todos os graus, a luta pela queda dos índices de homicídios, latrocínios, furto, que não dão retorno financeiro – embora dêem retorno eleitoral (e como dão) – são deixadas de lado e nosso Brasil, este imenso Brasil que sobrevive às vezes milagrosamente, apesar do Estado, continua um dos líderes mundiais da exclusão social.

Vejamos o que nos dizem, por exemplo, Admir Antonio Betarelli Junior, Edson Paulo Domingues e Aline Souza Magalhães em seu estudo “QUANTO VALE O SHOW? IMPACTOS ECONÔMICOS REGIONAIS DA COPA DO MUNDO 2014 NO BRASIL”, encontrável no Google, sob o título acima. Leiam com atenção:

“Os resultados analisados neste trabalho dizem respeito aos impactos dos investimentos em infra-instrutora urbana e estádios programados para a Copa-2014 anunciados pelo Ministério do Esporte no início de 2010. A literatura de economia dos esportes costuma elencar outros impactos advindos dos eventos esportivos, como por exemplo: ampliação dos setores de serviços e hotelaria; fluxo adicional de turistas no evento e pós-evento; e exposição internacional do país, com atração de investimento externo. Entretanto, tais impactos, se existem, são de difícil mensuração e projeção. Por exemplo, diversos especialistas em economia do turismo (e.g. Matheson, 2002) consideram que um mega-evento como a Copa do Mundo apenas substitui turistas usuais no país-sede por “turistas-copa”, e mesmo estes podem efetuar um dispêndio no país significativamente menor, tendo em vista os gastos com ingressos e deslocamentos para o evento.

O principal resultado da Copa-2014 parece ser a melhoria da infra-instrutora urbana nas cidades-sede, o que representa efetivamente impacto de longo prazo na eficiência econômica de diversas cidades. Além disso, este trabalho destacou as opções de financiamento dos investimentos da Copa-2014, e sinalizou que o impacto econômico tende a diminuir com o financiamento público para as obras de estádios de futebol, uma vez que implicam ou no crescimento da dívida pública ou na redução do gasto das diferentes esferas de governo envolvidas. Embora no Brasil o futebol seja a “paixão nacional”, não se vislumbra uma forma de avaliar o ganho de bem-estar das famílias com a reforma e construção de estádios de futebol, de uso essencialmente dos clubes de futebol ou eventos comerciais. Provavelmente, um ganho mais importante de bem-estar ocorrerá com a vitória brasileira na Copa-2014.”

Ou seja, os impactos econômicos favoráveis são como miragens no deserto. E estão os autores abordando única e exclusivamente o viés econômico do evento. Não está sendo abordado o dano incalculável em termos de políticas públicas não gestadas e implementadas pela falta de financiamento governamental.

Obviamente que há toda uma plêiade de estatísticas justificando os investimentos do Governo. Não é nada difícil manipular estatísticas. Difícil é admitir que fazer calçamento possa ser melhor que educar as crianças, melhorar o atendimento médico-hospitalar ou diminuir as estatísticas da violência urbana e rural.              

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

RECOMENDAÇÃO

 Recomendo vivamente a visita ao http://coronelangelodantas.blogspot.com.

Assim como recomendo, para quem lê e pesquisa acerca da história do Rio Grande do Norte, a leitura de "CRONOLOGIA DA POLÍCIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE (175 anos de história - 1834 a 2009)", de Ângelo Mário de Azevedo Dantas, orelhas de Manoel Onofre Jr., edição do Autor, 2010. Trata-se de uma obra de valor indiscutível para se entender o Rio Grande do Norte. O Autor é um pesquisador inteligente e infatigável, e o resultado do seu trabalho já é referência no Estado.

PATOS, ONDE HOUVE UMA LAGOA (2)

Antônio de Lelé, ex-cantador de viola

Honório de Medeiros


“Por que Patos?”, repito. “Havia, aqui, antes, uma lagoa chamada ‘Lagoa dos Patos’” “Onde ficava, insisti.” “Ah, quem quer que tenha um quintal em casa diz que era lá.” E esboça um esgar de sorriso sarcástico no canto da boca. Virgílio Trindade nos indica outros intelectuais de Patos, dentre eles o Secretário de Educação do Município, que também é dirigente do Instituto Histórico local. Fomos até lá. Recebeu-nos uma moçoila loura tão importante quanto decrépito era o prédio da Secretaria. Perguntou-nos se tínhamos marcado hora. Foi até o gabinete e voltou cerimoniosa, pedindo-nos que aguardássemos o término de uma reunião. Sentamos durante breves cinco minutos e, impacientes, nos despedimos, para espanto da secretária, a quem recomendamos, enfaticamente, como despedida, a leitura da obra completa de José Sarney, apropriadíssima para moçoilas secretárias de secretários ocupadíssimos.

                            Passamos no “troca-troca”. Um galpão aberto para todos os lados onde quem quiser chega e expõe sua mercadoria para vender ou trocar. Seu Antônio, um sertanejo idoso, mas rijo, nos acolheu com um sorriso. Na sua banca encontramos desde uma rede de pescar em açudes até rádios antigos. “Troca-se qualquer coisa aqui, Seu Antônio?” “Qualquer coisa, doutor, até mulher velha por nova, mas dando o troco.” “Você e seu pai são de onde?”, diz ele se virando para Franklin Jorge. Caímos na gargalhada. Franklin diz que não é meu pai. Eu pisco o olho para Seu Antônio quando vou saindo: “ele é muito vaidoso”. Despedimo-nos. Seu Antônio olha para mim quando Franklin lhe dá as costas: “eu entendo como é...” 

                            Quem nos recebeu à porta da casa simples, estreita, geminada, praticamente no centro comercial de Patos, quando fomos à procura de Antônio de Lelé, cantador que primeiro fez dupla com Seu Chico Honório em sua breve carreira de repentista, foi sua esposa, baixinha, magrinha e enrugadinha. Abriu a porta que dava para uma pequena área que antecedia a salinha de estar e nós fomos envolvidos por um delicioso cheiro de alguma iguaria que estava sendo cozinhada no tempero de cominho. Antônio de Lelé não estava apesar de Dona Maria afirmar que ele nunca saía de casa, fato desmentido diversas vezes ao longo do dia, quando insistíamos em o procurar. Haveria algo freudiano nessa negação do óbvio? Finalmente damos com Antônio de Lelé, lá pela quarta procura. Surpresa: é como ver Padre Sátiro Dantas na nossa frente sem aquela sua impaciência enervante.

 Antônio de Lelé conversa longamente com Seu Chico Honório pelo celular enquanto assediamos Dona Maria com elogios rasgados ao cheiro de sua comida. Queríamos um convite. Era um bode no cominho. “O que acompanha?” “Arroz, farofa na gordura, uma saladinha.” “Rapadura, também”. E ia recuando, agoniada para escapar da obrigação sertaneja de oferecer a iguaria elogiada. Constrangida pelo cerco implacável, não entrega os pontos: “se não fosse tão pouca a comida eu até que convidava.” Renunciamos ao ataque, comovidos. Terminamos sem provar o bode.

Nesse tempo Antônio de Lelé já se despede alegando que tem que ir ao Banco, mas nos aguarda de tarde, garantindo que o livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira, com quem ele cantou várias vezes, tinha muita mentira. Eu fiquei me lembrando de Orlando no meu apartamento em Brasília, levado por Jânio Rego, espojado em minha cadeira de balanço a lançar fumaça de um cachimbo preto que empesteava o ambiente, falando acerca da Serra do Teixeira onde há um marco que fica no meio do tudo por que fica no meio do nada.

                                     

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

OS ESPERTALHÕES DE FEIRAS

sertaomeudecadadia.blogspot.com


Honorio de Medeiros


Antigamente não havia feira, no interior, sem um espertalhão. Era o espertalhão de feira. Chegava insidioso, se imiscuindo por entre as pessoas até um local apropriado, pousava a mala no chão, tirava o chapéu preto encharcado de suor, puxava um lenço amarfanhado do bolso e o passava no rosto e cabelo, abria a mala, sacava uma mesinha de madeira daquelas pré-montadas e a cobria com um pano que fora branco em alguma "era" passada, expunha vários frascos cheios de líquidos coloridos, olhava ao seu derredor, escolhia uma vítima após lançar um olhar experimentado para todos os lados e começava sua "latomia": "a senhora, é, a senhora mesmo, me ouça com atenção, porque estou vendo pela sua cor que a senhora apresenta algum incômodo no sangue. Tem dormido mal, de quando em vez, não é? Às vêzes tem sentido uma tristeza que demora a passar, não é? Algumas comidas não estão entrando bem, não é? É como digo, minha senhora, a senhora está com algum incômodo no sangue. Mas eu tenho a solução. E para o senhor também, e para você também, moça bonita. Porque aqui, nesta garrafa, está o mais potente destilado de uma erva que somente existe no coração da Amazônia, e que os índios guardam como sendo o maior segredo deles. Essa bebida cura todo mal que se origina do sangue..."

E por aí vai. O espertalhão de feira já formou um círculo em seu derredor e prende a atenção das pessoas contando casos e mais casos nos quais a cura milagrosa se estabeleceu a partir de sua beberagem. São estórias escabrosas, produzidas e contadas para prender a atenção. Voz tonitroante, olhar de águia para perceber quais são os mais impressionáveis, tiradas bem-humoradas de quando em vez, para estabelecer empatia com os ouvintes, poderia ser um estudo de caso de uma retórica firmada no dia-a-dia, na experiência brutal da luta pela sobrevivência, na prática permanente da mistificação.

 Na outra ponta do centro da feira, outro espertalhão já montou seu "circo": também em uma mesinha dispõe sobre a superfície do pano branco uma bolinha de metal acobraeado e três copos de madeira escurecidos pela sujeira e convida os incautos a descobrir onde a bolinha está escondida, enquanto rapidamente os maneja de um lado para o outro. Alguns dos incautos já ganharam uma pequena importância: isso faz parte do processo de atração das futuras vítimas - o primeiro dinheiro fácil - que começam ganhando e, no fim, sem ter notado, seu "apurado", tudo quanto ganhou na feira, foi embora para os bolsos do espertalhão, misturado com cachaça ou conhaque barato e pedaços de carne de bode.

Em outro lugar cantadores de viola "simulam" um desafio enquanto alguém "corre o chapéu". Não há peleja, não há repente, não há criatividade: tudo quanto é cantado já o foi Sertão a dentro, muitas vezes, em muitos lugares. O público pensa que está assistindo um desafio quando, na verdade, está sendo iludido com versos decorados e antigos. 

Os espertalhões de feira são como nossos políticos. E os "bestas" somos nós.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

TRISTES TEMPOS

O Governo do Rio Grande do Norte dobrou os servidores públicos estaduais.

As palavras-de-ordem sumiram, assim como as bandeiras e os panfletos. Convicções se estilhaçaram. Outras surgiram, com ares de quem pretendem ficar.

Resta o ressentimento que, na massa, costuma ser persistente, difuso e malévolo. Além de praticamente inadministrável.

Sem boas recordações do passado,  com um presente sombrio e um futuro sem esperança, o servidor público é a consequência, no Estado, assim como o Homem comum o é, na Sociedade, do que a nossa elite política construiu, ao longo dos anos, com incompetência inigualável: educação, saúde, e segurança de terceiro mundo, em pleno século XXI. Nenhum avanço; somente recuo; nenhum progresso; somente decadência.

Essa consequência cobrará de todos nós, sua fatura: teremos, no futuro, obras que serão ilhas de excelência para uns poucos, como a "Arena das Dunas", em um mar de decadência generalizada, como no caso da saúde pública.

Algo semelhante a como age a grande maioria dos prefeitos do interior: calçam as ruas e abandonam as escolas.

Para governos que se sustentam em obras, não são necessários servidores públicos; para governos que se sustentam em políticas públicas, são imprescindíveis os servidores públicos.

É essa a lição da história.

Tristes tempos.

PATOS, ONDE EXISTIU UMA LAGOA (1)

Virgílio Trindade


                   Saímos cedo de Pau dos Ferros no rumo de Patos, na Paraíba, em busca das raízes de Massilon. Lá chegamos ao meio-dia. Hospedamo-nos no Hotel Zurick. À noite perguntamos ao recepcionista porque o hotel tinha esse nome. Com certo sarcasmo sertanejo, respondeu: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito.” Franklin Jorge comentou: “se Cascudo tivesse estado aqui escreveria uma crônica com o seguinte título “Zurick em pleno Sertão paraibano; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o título de cônsul honorário da Suíça”.

                   Fomo à Matriz. Prédio simples. Chegamos em plena missa das 16:00 horas. Rodeamos a Igreja cujos fundos dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta, indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos, cabelo curtíssimo, à escovinha, vestido com uma camisa de mangas compridas abotoada nos pulsos se aproximou maciamente. Desejou-nos uma boa tarde. Perguntei-lhe se ali era a Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava. Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça embora não desmesurada e nos entregou sua mão também macia para apertarmos. Padre Francisco foi gentil, delicado.

                   Na livraria da cidade perguntamos à vendedora pelas obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa displicência, um canto afastado de uma estante. Encontramos uma gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta local. O poeta praticamente inundara a livraria. Não se tratava de vários volumes de um livro de poesia. Tratava-se de vários livros de poesia a ocupar a livraria. Nada mais.

 Depois, fomos às ruas: vibrantes, febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas... Pessoas vinham e iam rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum lugar qualquer, para resolver algo. Não vimos pedintes, nem pastoradores de carro, nem lavadores de pára-brisa, nem deficientes físicos. Vimos uma louca, personagem folclórico, que me abordou na farmácia: “lindão, me dê um dinheiro”. Como não dar? “Ela dá sempre esse golpe em quem não é daqui” me diz a caixa da farmácia.

Raros são os passeantes. Os flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos são belas, não bonitas. Há uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo que já possui. Belas, as mulheres de Patos. Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas, levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Belos dentes. Compuseram um contraste marcante com o bulício comercial suburbano que ocupou nossos olhos enquanto caminhávamos pelas ruas da cidade. Não haveria ruas onde não se compra e não se vende? Aparentemente não. Em qualquer lugar havia essa atividade febril, tipicamente burguesa, que pressupunha uma interação constante entre as pessoas e que se opunha à percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.

                   “Por que Patos?”, perguntei a Virgílio Trindade, a quem seu primo homônimo Virgílio Trindade, comerciante no Mercado Central, por nós procurado por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na praça, reputa como grande escritor. Recebeu-nos muito bem. Tem um programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca, sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro da cidade, com sua voz característica de fumante e locutor, nos presenteou com um livro de crônicas de sua autoria, “Relíquias”. Falou-nos do programa político: “é complicado”. “Por quê?” “A todo instante a gente está falando com alguém ao telefone, ao vivo, no ar, e a criatura grita: eu voto em Lula! Já pensou?”

                                     

terça-feira, 25 de outubro de 2011

II CONGRESSO NACIONAL DO CANGAÇO E III SEMANA REGIONAL DE HISTÓRIA

Bilhete do Presidente da SBEC:

"Caros Sócios e amigos,

O II Congresso Nacional do Cangaço e III Semana Regional de História teve inicio nesta segunda feira (24).

Ultrapassamos o numero de 470 participantes entre estudantes, professores, pesquisadores, e o evento irá até a sexta feira (29).

Ainda há tempo de participar. Venha para Cajazeiras/PB e se hospede no Gravatá Flat Hotel através do site www.gravatahotel.com.br

Prestigie a SBEC e a UFCG/CFP.

Abraços,
Lemuel Rodrigues da Silva"

sábado, 15 de outubro de 2011

UM EVENTO COMUM

Miss Marple, de Agatha Christie
robertarood.wordpress.com


Honório de Medeiros


                        “Um radialista”. Assim, secamente, Antônio Gomes me identificou o morto cujo enterro passava pela esquina onde estávamos postados em Cajazeiras, Paraíba. Até que o enterro passasse por mim não lhe dera atenção. Observara, fascinado, aquela fila coleante a se arrastar molemente, ocupando todos os espaços da rua. Era sempre assim, fosse enterro, manifestação, passeata política, desfile: um fluxo constituído por pessoas diferentes, mas iguais quando em grupo. O ser humano. Esse compósito de vilania e santidade se arrastando em grupo, ou a sós, do nada para o nada. “De longe, todo mundo é normal”: terá sido Wilde, quem o disse?

                        Antônio Gomes, como eu, estava de braços cruzados olhando o enterro, mas seu olhar era sardônico. Um olhar que combinava bem com o rosto magro, de feições indefinidas, comuns. Deveria ter sessenta e poucos anos. Cabelos grisalhos, abundantes, cortados curtos, displicentemente penteados para trás. Ao observá-lo tive a sensação de que ele parecia um elemento estranho à paisagem. Não combinava com Cajazeiras, uma cidade que, como muitas outras, sendo grande para os padrões do Sertão, disso nada extrai de bom, assim como não guardou o que de bom havia de quando era pequena. Era como uma questão de foco. Ele parecia deslocado não porque estivesse no centro da cidade, e não acompanhasse o enterro, mas, sim, por que estava ali como se fosse um estrangeiro em pleno Sertão, muito embora sua roupa, dele, não dissesse nada, nem os sapatos, nem qualquer adereço, até por que não os havia, excetuando o relógio que também era muito discreto.

                        “O senhor não é daqui.” “Sou e não sou. Nasci aqui há uns sessenta anos atrás, e voltei há uns poucos dias para vender uma terra que me coube por herança.” E me perguntou o que eu fazia em Cajazeiras. Falei-lhe de minha pesquisa acerca de Massilon e que acabara de voltar de Missão Velha, no Ceará, terra onde o Cel. Isaias Arruda “reinara” na década de 20 e da qual, com seu apoio logístico, Lampião partira para invadir Mossoró. Agora já estávamos sentados numa lanchonete que colocara aquelas mesas e cadeiras de metal com imensas logomarcas de cerveja na calçada. Mesas e cadeiras sujas, evidentemente. Como não era possível tomar um café respeitável, pedíramos água mineral. “Ah, o cangaço”, disse, e perguntou: “descobriu algo em Missão Velha?”. Sim, eu havia descoberto, mas não queria falar acerca de cangaço. Será que eu conseguiria transmitir oralmente, para aquele estranho, um homem educado, percebia-se facilmente isso, minhas impressões de viagem? Será que eu conseguiria prender sua atenção durante um tempo suficiente para lhe dizer uma crônica elaborada com fragmentos de imagens e palavras? O que significaria tudo isso quando cada um fosse para seu lado e um tempo razoável tivesse passado desde então?

                        O cariri é verde, muito verde para ser Sertão, comecei. E Missão Velha parece uma cidadezinha perdida no tempo, uma Macondo. Lá, quando chegamos, fomos direto para o coração da cidade. Estacionamos. Seria dia de feira? Não, é que o pagamento da “esmola oficial do governo federal” era naquele momento. As feiras, como eram antigamente, não existem mais. Não há mais cantadores de viola, coquistas, literatura de cordel, contadores de “causos”, vendedores de drogas milagrosas, rezadeiras, adivinhos, mágicos, circos mambembes... Há tipos estranhos, é impossível não haver: uma mulher de mais de sessenta anos, horrorosamente maquiada, vestida como uma adolescente, a carne sobrando por sobre a barra da minissaia, a abraçar freneticamente uma comadre a quem aparentemente não via há muito tempo e lhe responder em cima da bucha quando ela dissera “criatura, você já está com muitos janeiros, né?; “estou, mas você não fica atrás não, olhe as pelancas, não é, mulher?” E depois dessa resposta, se virou para o lado e tangeu o marido que empurrava um carrinho de sorvete caseiro, enquanto olhava: “vai, vai, que aqui é conversa de comadres”. O sorveteiro obedeceu, mas como vingança, ao passar por mim que observava deliciado a cena, levou a mão ao lado da cabeça, e fez, com o indicador apontado para si e desenhando um círculo, o comentário final: “é tudo doida”.

                        Mestre Antônio rira do episódio das mulheres e depois comentara que, às vezes, dizia a seus amigos do Sul, quando se demorava a voltar, que ali, no Sertão, para quem soubesse ver, ouvir, e extrair as conclusões possíveis, não havia escola nem teatro iguais, e, finalizando, aludiu ao personagem de Agatha Christie, Miss Marple, personagem insulada em uma pequena cidade inglesa, a resolver crimes Inglaterra afora a partir de sua peculiar psicologia aldeã, e à frase de Tolstoi “ninguém se torna universal sem escrever acerca de sua aldeia”, para encerrar nossa rápida e estranha conversa que lhe dava razão na justa medida em que, no coração de Cajazeiras, o teatro da vida nos permitira divagar, filosoficamente, acerca da condição humana, sem que fosse necessário nada mais além de um final-de-tarde, um encontro casual, e um evento comum.