domingo, 12 de dezembro de 2010

PSICOLOGIA EVOLUTIVA

Hieronymus Bosch

Honório de Medeiros

Apesar da chamada “teoria do design inteligente”, que diz ser insuficiente o darwinismo enquanto explicação para o surgimento e propagação da vida na terra, e depois de abençoada por Sua Santidade o Papa, a verdade é que a teoria da evolução vai, aos poucos, se firmando como a única das macro-teorias oriundas do século XIX que sobrevive integralmente às críticas da comunidade científica. As outras, como a psicanálise, nunca recebeu “status” científico; o marxismo ruiu com o muro de Berlim e permanece por terra; e a teoria da relatividade, de Einstein, não conseguiu superar suas divergências fundamentais com a física quântica.

Um dos rebentos mais interessantes do darwinismo, chamemo-lo assim, é a psicologia evolutiva. Como se pode depreender, trata-se de uma tentativa de explicação da psique humana utilizando-se as ferramentas próprias da teoria da evolução. Neste campo específico, nada tem suscitado tanto debate quanto às afirmações feitas pela psicologia evolutiva quanto a amor e sexo. Por exemplo: a psicologia evolutiva explica que a traição, por parte do homem, é uma herança genética que o impele à tentativa de disseminar seus genes! Isso é algo ancestral – na aurora da história do homem, quando ele vagava pela terra caçando e coletando raízes e frutas, foram selecionados para sobreviver aqueles que tinham esse tipo de comportamento; quanto mais braços para a defesa e a procura de alimentos, melhor para a tribo. A mulher, por outro lado, como era obrigada a conduzir, durante nove meses, sua gravidez, ficava estética e organicamente inviável para o jogo sexual, o que abria o espaço para a fecundação de outras.

Essa propensão, diz a teoria da evolução, não é um fatalismo, até mesmo por que o homem que reina inconteste em pleno século XXI, para o bem ou para o mal, foi capaz de construir um aparato intelectual que lhe permitiu fazer opções de caráter ético fundamentais para assegurar sua sobrevivência. Nesse sentido a moral é uma estratégia humana, uma espécie de instrumento adaptativo que lhe permite continuar sua saga sobre a face da Terra. Ou seja, embora haja essa tendência individualmente falando, enquanto espécie o homem aposta na fidelidade. Não é assim que acontece se prestarmos bem atenção ao que se passa ao nosso redor?

Dessa forma a psicologia evolutiva explica muitas condutas masculinas e femininas. Uma delas, bastante curiosa, por sinal, é a chamada “Síndrome da Rejeição”. Por que a mulher, por exemplo, parece se interessar mais pelos homens que a rejeitam? A resposta seria que a mulher, programada geneticamente para lidar com o interesse masculino, ao sentir-se desprezada, sente ameaçada sua capacidade de interessar sexualmente e, assim, procriar. Isso por que nosso objetivo básico, segundo a teoria da evolução, é propagar nossos genes. Esta teoria não explica nosso amor desmesurado por nossos filhos?

Se forem polêmicas as afirmações feitas pela psicologia evolutiva no que diz respeito ao relacionamento amoroso, imaginem o que não se discute quanto à política, mais especificamente ao Poder. Esta, entretanto, já é outra história.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

UMA SEXTA FEIRA ENSOLARADA

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Honório de Medeiros

O carro foi parado ao lado da criança. Havia como que um assento de cimento – se é que se pode dizer assim – ao lado da banca de revistas. Mas ela não deu muita atenção ao carro, nem mesmo quando seus ocupantes saíram e um deles lhe fez cócegas na cabeça e passou apressado. A mãe, sentada, de cabeça baixa, cotovelo cravado nas pernas, tinha os olhos ocultos pela mão direita espalmada e não modificou sua postura para ver o que se passava ao seu redor. De relance pôde-se perceber que parecia insensível ao tráfego barulhento, enquanto sua mão esquerda segurava firmemente o pulso da criança.

Entraram na banca. Compraram jornais. Separaram, de comum acordo, um chocolate para ser dado à criança. Saíram. Nada mudara. Ao se aproximarem perceberam as roupas de ambas – singelas, mas compostas. Ofereceram o chocolate sem dizerem qualquer palavra. A mãozinha frágil o pegou, ávida, enquanto um “oba!” despertava a atenção da mãe. Esta, tirando a mão dos olhos e encarando os dois homens que observavam sua filha deixou a descoberto um rosto ainda jovem, banhado em lágrimas.

“Minha senhora”, perguntaram, “por que está chorando?” “Fome!”, respondeu.

A criança, de um louro amarelado que ressaltava sua ascendência negra, magrinha, magrinha, lambia, deliciada, o chocolate totalmente despido. Não se dava conta do que se passava ao seu lado. “Fome?”. Perguntaram novamente. “É”. “Não tenho vergonha em dizer”. “Os senhores sabem se tem alguma Casa de Apoio aqui perto?” “Tem uma logo naquela rua”, responderam. “Está fechada”. “Tem o Albergue”, ela continuou, “na descida da ladeira, mas ele cobra vinte reais para o pernoite e refeições”. Fez-se um silêncio incômodo, doloroso. Será que ali estava alguém querendo aplicar um golpe, explorando aquela infância comovente que agora brincava de lamber, um a um, os dedinhos sujos de chocolate?, eles se perguntaram. “Vim do interior no carro da Prefeitura trazer meu marido para o hospital de emergência, mas não posso ficar lá e ele só sai segunda”. Era uma sexta-feira radiante, ensolarada... “Eu ia ficar na casa do meu pai. Ele mora aqui, mas se mudou e não mandou seu endereço novo. O carro da Prefeitura só vem na segunda, o que vou fazer para dar de comer a essa criança? Pedir eu não peço. Falei com o motorista da Besta para ele nos levar que eu pagava lá. Ele disse que não fazia fiado”.

Enquanto falava, as lágrimas pingavam uma a uma no regaço do vestido. As mãos torciam uma à outra. A bolsa, preta, de material ordinário, flácida, vazia, separava-a da criança que então olhava, atenta, um pequeno jorro de água que brotava da torneira mal fechada e originava um pequeno córrego a deslizar por entre o capim limitado por pedras de contenção. Os olhos da mãe já há muito não encaravam nada nem ninguém. Estavam perdidos no vazio. O desabafo era para o mundo que a cercava. Eles apenas o desencadearam. Parecia alheada de tudo.

“Olhe”, disse um deles estendendo a mão que segurava a cédula. Ela olhou durante algum tempo antes de pegá-la. Abriram as portas do carro. “Como é o nome dos senhores?” Levantara-se, puxando a menina. “Por quê?” “Eu quero rezar pelos senhores”.

Foram. Pelo vidro retrovisor era possível perceber a imagem que se distanciava. Continuavam no mesmo lugar, imóveis, as duas, olhando o carro. Mesmo pelo espelho era possível perceber uma mão segurando, firmemente, a cédula, enquanto a outra não largava a criança que dava adeus, em câmara lenta – tão pequena, tão frágil – destacando-se delicadamente contra o cinza da banca de revistas.

domingo, 5 de dezembro de 2010

PLOTINO


Plotino

Honório de Medeiros

“É como se vc, estando dentro de um ambiente fechado, uma clausura, criasse uma saída e a utilizasse. Lá, do outro lado da saída, lhe espera um outro ambiente, também fechado, só que maior. Sua tarefa, agora, é criar outra saída, sair, entrar em outro ambiente ainda maior, criar outra saída, sempre, em uma escala exponencial, etc., etc.” disse-lhe eu.

“Não tem fim?”, me perguntou.

“A morte”, respondi-lhe, “que acaba com tudo ou lhe leva a um infinito que está além de todas as coisas, onde não há qualquer tipo de limite ao conhecimento”. “Agora sei o que significa aquela frase de Plotino, o vôo do solitário para o infinito”, continuei. “Nossa busca pelo conhecimento é sempre solitária, a morte nos liberta e nos remete ao infinito”.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A LÓGICA PERVERSA DO OBREIRISMO


mundoemguerra.blogspot.com


Honório de Medeiros

Há uma lógica perversa induzindo o obreirismo (aqui usado, o termo, no sentido de privilegiar obras em detrimento de investimentos sociais) no administrador público. Essa lógica é mais perversa ainda por praticamente excluir a opção pelas políticas públicas.

Em primeiro lugar o obreirismo é conseqüência de uma demanda específica: a das grandes empresas de construção civil e de serviços – e suas agregadas – que precisam recuperar o montante investido nos candidatos por elas apoiados e, também, convenhamos, como conseqüência do fato de seus proprietários, o mais das vezes, serem integrantes, através de laços familiares ou de compadrio, das elites governantes.

Em segundo lugar o obreirismo é conseqüência de outra demanda específica: a necessidade de encher os cofres raspados das elites políticas vencedora dos pleitos eleitorais aos quais se candidataram, e construir reserva para as futuras demandas político-partidárias.

Em terceiro lugar o obreirismo é conseqüência de outra demanda específica: a de gerar condições de manutenção ou aquinhoamento financeiro dos quadros responsáveis pela gestão pública, sob a alegação (interna) de que eles não suportariam sobreviver com a remuneração miserável que lhes paga o exercício de seus cargos.

Esse círculo vicioso – a elite política ser financiada pelas obras e serviços e, como conseqüência, financia-las – consome o que sobra, no orçamento, quando pagos o custeio da máquina e a folha de pessoal. Na maioria das vezes praticamente não há sobra orçamentária para investimento e não por outro motivo a Lei de Responsabilidade Fiscal vem sendo sistematicamente desrespeitada. E engendra uma custosa publicidade com o objetivo de persuadir a sociedade acerca dos bons propósitos de toda obra e qualquer serviço que estejam sendo feitos.

Assim, toda e qualquer obra surge como decorrência de uma “demanda social” e destina-se ao “desenvolvimento sustentado”. Obras através das quais circula o capital financeiro das elites para perpetuar a expropriação da força de trabalho da classe média, que é quem paga, na verdade, os tributos nossos de cada dia. Flatus vocis, diriam os romanos... E as políticas públicas, tais como a luta pela erradicação do analfabetismo, queda nos índices de mortalidade infantil, melhoria na qualidade do ensino e na segurança pública, que não dão retorno financeiro – embora dêem retorno eleitoral (e como dão) – são deixadas de lado e nosso Brasil, este imenso Brasil que sobrevive às vezes milagrosamente apesar do Estado, continua um dos líderes mundiais da exclusão social.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

UMA ESPERANÇA VÃ


Honório de Medeiros

Abro espaço para o texto que transcrevo. Sei quem o fez; não sei para quem é destinado. Ou talvez saiba, mas prefira não dizê-lo.

"Você me pediu, se lembra?, que lhe escrevesse algo. Disse-me isso como quem estivesse entre a curiosidade de ser objeto, digamos, da atenção de alguém que escreve e, ao mesmo tempo, o desejo de ver o produto da minha suposta arte.”

“Eis aqui o resultado. Digo-lhe que foi difícil, porque ando destreinado em falar acerca dessas coisas que são tão importantes, mas, ao mesmo tempo tão simples. Não sei, talvez tenha eu, tenhamos nós, perdido a capacidade de percebermos a beleza no singelo, no trivial. Ou, quem sabe, possamos até possuir a noção dessa beleza, mas não sabemos transmiti-la sem parecermos artificiais...”

“Enfim, quero lhe falar de nós. De minhas esperanças já perdidas, quando o tema é você. Eu sei que você vai se desdobrar em negativas quando ler o que lhe escrevo. Serão essas negativas mera retórica. Desde há muito descobri que não há espaço para mim em seu mundo.”

“E digo a razão. Trata-se de algo chamado conveniência. Eu, quixotesco, lhe incomodo, como as réstias de sol atrapalham aqueles que delas fogem. Percebe você, por instinto, minha fragilidade - e ela não é compatível com os tempos modernos, porque oriunda de uma forma de sentir o mundo que vai desaparecendo.”

“Gostaria de lhe provar tudo isso que digo agora de uma forma precisa - para que você, dessa geração onde as verdades não admitem sequer o cinza, pudesse perceber o esforço heróico – me perdoe a imodéstia - para me adequar a um mundo onde ser romântico é uma questão de desempenho.”

“Não há como. Assim como me parece impossível apreender toda a gama de sentimentos que origina uma obra de arte, com certeza seria impossível lhe falar de coisas que somente teriam sentido dentro de certa realidade.”

“Você há de me desculpar se lhe desenho um mundo - o seu - tão pouco atraente aos olhos de quem talvez leia o que aqui se escreveu. Não é essa minha intenção. Até porque talvez somente me entenda quem foi contemporâneo de minhas ilusões, de meus sonhos. Percebo claramente que todos os outros lhe serão favoráveis nessa batalha inexistente. Afinal o mundo que vivemos, a realidade diária, toda essa complexa rede de pessoas, fatos e coisas que nos cerca tem sua dimensão amorosa própria e, com ela, uma nova maneira de lidar com o amor.”

“Nada mais incoerente, por exemplo, segundo os novos padrões, que esse texto. De que trata ele?, perguntarão os que o lerem. O que significa tudo isso?”

“E me pediriam: "sintetize"! Não há como, eu lhes diria. Não posso falar de algo como "saudade" sem comentar o quanto acho que esta palavra esteja fora de moda.”

“Assim, é acerca de esperanças vãs que lhe escrevo. Da minha esperança inútil de que você viesse ser minha, e eu, seu. Do meu desejo de sermos arquitetos de algo único - nosso amor - que haveria de ser uma ponte para o infinito. Da nossa criatividade inventando, para deleite próprio, uma tão grande cumplicidade, que permitiria nos comunicar através de um código criado somente para iniciados - nós dois. E da minha descrença na possibilidade de tudo isso, tão belo, acontecer.”

“Poderia lhe falar horas desse desejo de amor que sinto e, mesmo assim, não ficaria claro como conseguiríamos nos entender. Você, lógico, se defenderia alegando ser ele impossível. E elencaria estatísticas como provas. Ah, como é cruel a estatística! Minha resposta seria apenas uma: nossa capacidade de criar é infinita, somente quando criamos nos aproximamos dos deuses, e todos os obstáculos, quaisquer que sejam eles, que aparecerem, seriam comparados à nossa capacidade de lutar.”

“Você, entediada, diria: "não há mais amores assim; aliás, nunca houve". E, para não perder o ímpeto, talvez até colocasse a culpa em nós, os homens.”

“Eu me renderia, então. Mas antes de sair, lhe contaria a história que TAGORE nos deixou em "A Casa e o Mundo". Nela, o personagem principal percebe que o grande amor de sua vida está prestes a sucumbir à sedução passageira de um farsante. Afasta-se dela. Indagado, responde que somente estando livre ela poderá optar por um caminho que engrandeça seu (dele) sentimento. "Se ela for com o outro", diz, "permitiu-me descobrir uma verdade que, embora dolorosa, trar-me-á dignidade; se voltar, tê-lo-á feito de livre e espontânea vontade, e isso tornará seu (dela) amor ainda mais sólido."

“Adeus, então.”

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CANGAÇO: ENTRE O SABER HISTÓRICO E O CONHECIMENTO ESCOLAR


Lampião, Rei do Cangaço

Honório de Medeiros

Uma vez que o espírito deste Fórum diz respeito a como o cangaço, enquanto epifenômeno, se faz presente no diálogo entre essas duas instâncias de conhecimento produzido, qual seja o saber histórico e o escolar, apresento, desde já, minha opinião, esperando suscitar questionamentos, controvérsias e, porque não dizer, críticas.

Creio firmemente que é por intermédio da crítica que conhecemos. A crítica no sentido grego do termo, não em seu sentido vulgar. A crítica que pressupõe um conhecimento existente previamente adquirido, fragmentação das expectativas em relação à utilização desse conhecimento, elaboração de novas teorias explicativas que hão de ser submetidas a testes seja no grande palco da vida, seja na Academia, e, enquanto resultado, um novo conhecimento retificado que estará, por sua vez, à disposição de novas retificações, em um processo para o qual não se conhece fim.

Não por outra razão, ao defender esse primado metodológico, recordo sempre uma frase de Dom Hélder Câmara, hoje tão esquecido, mas tão presente no nosso imaginário de contestação à ditadura de 64, naqueles anos de chumbo: “Me enriqueces quando discordas de mim”. Como recordo, e cito também, e sempre, Gaston Bachelard, filósofo e poeta francês: “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”. Que venha a crítica, pois, para que eu possa reformar as minhas ilusões.

Considero, portanto, para iniciarmos, que o diálogo entre os dois saberes, o não-institucional e o institucional, ou saber histórico e conhecimento escolar, acerca do epifenômeno do cangaço, ainda é incipiente, apesar da importância do tema.

Uma das causas pela qual o cangaço não é ampla e profundamente discutido nas salas-de-aula é a resistência da Academia, chamemos assim a instância oficial de produção do saber científico, a aceita-lo e trata-lo como algo além de folclore. Aqui, folclore assume a proporção de um conhecimento menor, mera conseqüência superficial de leis naturais sociológicas precisas e demarcadas – estas sim, importantes, tais quais, exemplificando, a luta de classes.

O viés folclórico com o qual o cangaço é percebido pelo saber oficial releva, em larga escala, sua insistente presença histórica na contínua autoconstrução da própria identidade sertaneja, reforçando uma Paidéia ancestral que, entretanto, aos poucos, oferece sinais de fadiga, quiçá resultante do processo de globalização ao qual estamos submetidos.

Essa autoconstrução de uma Paidéia, de um “espírito de época”, processo calcado em fatos sociais – em outra linguagem podemos dizer episódios, acontecimentos, sucedidos, que reforçam seus arquétipos fundantes e elaboram uma identidade social, esse suposto conhecimento menor, digamos assim para mantermos a linha de raciocínio, são todos do nosso conhecimento sertanejo: ressaltam sua valentia; asseveram códigos de honra ancestrais; apontam bestialidades e crueldades desmedidas; relatam histórias e estórias de vinganças entre clãs; dizem da intervenção da justiça divina em assuntos terrenais; contam acerca de aparições, assombrações e fantasmas; falam do exercício do poder via baraço e cutelo; lembram casos de amor, traição e perdição; cantam tempos passados e glórias perdidas; tudo seja por intermédio do cordel, seja pelo canto dos violeiros; seja pelas toadas, desafios e repentes; seja via beatos e rezadeiras; seja pelos contadores de “causos” em conversas alpendradas após o sol se por nessas “quebradas do mundaréu” sertanejo; e, também, claro, através de toda a produção literária produzida de forma canhestra, artesanal, porém sincera, por uma legião de pesquisadores dos “acontecidos” do cangaço, que ao longo do tempo, pacientemente, coletaram e mesmo sem rigor científico, nos legaram um imenso acervo de informações alusivas aos cangaceiros.

É a esse imenso acervo, sobre as quais devemos nos debruçar com reverência, mas criticamente, todo esse acervo constituindo, por si somente, embora marginal ou periférico ao que supostamente importaria à burocracia das instâncias de produção do conhecimento, qual seja a discussão das grandes leis naturais sociológica, como a luta de classes já citada, uma caudalosa oportunidade de estudo e compreensão do espírito de um povo e de uma época, que a Academia resiste, embora eu saliente as honrosas e particulares exceções de sempre.

Ressalvo, com ênfase, que a nossa discussão cuida do diálogo entre o saber histórico e o conhecimento escolar, no que diz respeito ao cangaço. Não se trata, portanto, de criticar toda a imensa, complexa e bela construção acerca do cangaço empreendida pelos cantadores de viola, cordelistas, contadores de estórias, xilogravuristas, e poetas, dentre outros. Não. Muito pelo contrário. Diz respeito ao afastamento de parte considerável da Academia de toda essa produção coletiva sobre a qual devemos nos debruçar até com reverência, para melhor entendermos os movimentos sociais sertanejos nordestinos.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Há muitos saberes, sabemos, e aquele acerca do qual estamos falando, torno a mencionar, diz respeito ao mundo da academia em relação ao cangaço e seu mundo, sua realidade, cultural ou física, sua “Paidéia”.

Penso em “Paidéia” no mesmo sentido que a ele atribui Werner Jaeger, quando se referiu ao “espírito” grego predominante nos séculos VIII a IV a.C. naquela Região geográfica fundamental para o nosso processo civilizatório. Penso em “espírito” da cultura sertaneja nordestina, e, assim, demarco o espaço territorial onde creio terem ocorrido os epifenômenos que, conectados entre si, quais sejam o coronelismo, o misticismo, a arte popular, e o cangaceirismo, constituem a face espiritual do nosso Sertão em certa e precisa dimensão histórica.

A resistência da Academia acontece, também, creio eu, na medida da fragilidade de parte, friso bem, de parcela da literatura acerca do cangaço no que diz respeito às pesquisas e as afirmações nela contidas. Entrevistas apressadas, cujas afirmações não são devidamente checadas; buscas superficiais, produzindo dados duvidosos; minudências desnecessárias; ausência de inter-relacionamentos entre fatos; conclusões forçadas e nitidamente reveladoras de simpatias ou ideologias; escritos mal cuidados, com redação questionável, editoração e impressão a desejar; tudo isso contribui, e muito, para o olhar de esguelha que o saber institucional dedica ao cangaço.

Saliento, entretanto, certa literatura produzida pelos autodenominados “pesquisadores do cangaço” dentre os quais me situo tangencialmente, vez que minhas buscas dizem respeito, propriamente, ao epifenômeno do coronelismo. É inegável sua importância enquanto acervo para a produção do conhecimento científico. Entendo que a “literatura do cangaço”, por si só, constitui uma imensa fonte para estudo acadêmico. Quantas vezes não pensei em unir meus estudos de Filosofia do Direito e Coronelismo por intermédio da análise da literatura do cangaço e a forma como, por exemplo, ela trata acerca da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica no tempo dos coronéis? Não caberia, por exemplo, aos estudiosos com formação jurídica, enquanto pós-graduação, um estudo dos instrumentos de legitimação de decisões jurídicas, tal qual a manipulação do conceito de “justiça”, a concretizar o coronelismo?

Finalmente ouso afirmar que a distância da Academia em relação ao epifenômeno do cangaço decorre, muitas vezes, de auto-limitações impostas por instrumentais teóricos equivocados. Refiro-me à tradição – o termo é esse mesmo – funcionalista americana, de um lado, e marxista, do outro. Tradição à qual se opõem, por exemplo, Jacques Le Boff, em uma perspectiva, e Norbert Elias em outra. Tais limitações comprometem a construção de uma História dos Movimentos Sociais Nordestinos, ou mesmo uma História do Sertão Nordestino, muito mais apropriada que uma História do Rio Grande do Norte, esta a depender de critérios artificiais para sua existência, qual seja a criação jurídica de um Estado.

Temos, portanto, três vertentes que deságuam nessa “folclorização”, nessa “minimização”, nesse apequenamento do epifenômeno do cangaço, a suscitar seu tratamento menor, às vezes até mesmo sobranceiro, por parte das instâncias oficiais de produção do conhecimento científico. Uma delas é a forma como o tema se reproduz no mundo do saber popular; outra é como ele se reproduz por meio dos trabalhos de pesquisadores acerca do assunto; e, finalmente, outra é o próprio resultado do trabalho da comunidade científica.

Aqui, faço um interlúdio para exemplificar como ocorrem essas limitações: no primeiro exemplo apresento textos de cordel; no segundo, um texto de um “pesquisador” do cangaço; e, no terceiro, textos de integrantes da “Academia”.

Percebamos como o cordel descreve e, em o descrevendo, mitifica e folcloriza Lampião. O primeiro exemplo tem o seguinte título: “Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte”, seu autor é Abraão Batista, e está transcrito na “Antologia da Literatura do Cordel” de Sebastião Nunes Batista:

Lampião, todos conhecem

mas não sabem interpretar

só sabem falar mal dele

porque não quiseram indagar

a causa que ele abraçou

e o que o forçou a matar.



Se Lampião foi cangaceiro

foi que o forçaram a matar

ele era bom e justiceiro

antes de o incriminar

pois a justiça dos homens

as vezes não sabe julgar.



No entanto o meu assunto

o que agora vou descrever

é de Lampião, o cangaceiro

com Kung Fu do karatê

e se você não o conhece

vai agora o conhecer...

E prossegue.

Outro exemplo: este, um clássico do cordel, colhido da mesma obra, cuja autoria é de José Pacheco, e tem como título “A Chegada de Lampião no Inferno”:

Um cabra de Lampião

Por nome Pilão Deitado

Que morreu numa trincheira

Em certo tempo passado

Agora pelo sertão

Anda correndo visão

Fazendo mal-assombrado.



E foi quem trouxe a notícia

Que viu Lampião chegar

O inferno neste dia

Faltou pouco pra virar

Incendiou-se o mercado

Morreu tanto cão queimado

Que faz pena até contar.



Morreu a mãe de Canguinha

O pai de Forrobodó

Três netos de parafuso

Um cão chamado Cotó

Escapuliu Boca Ensossa

E uma moleca moça

Quase queimava o totó.



Morreram 10 negros velhos

Que não trabalhavam mais

E um cão chamado Tráz-cá

Vira-volta e Capataz

Tromba-Suja e Bigodeira

Um por nome de Goteira

Cunhado de Satanás.

Por fim outro clássico do cordel colhido da obra de Sebastião Nunes Batista, da autoria de Rodolfo Coelho Cavalcante, que tem o seguinte título: “A Chegada de Lampião no Céu”:

Chegando no gabinete

Do glorioso Jesus

Lampião foi escoltado

Disse o Varão da Cruz

Quem és tu filho perdido

Não estás arrependido

Mesmo no Reino da Luz?



Disse o bravo Virgulino

Senhor não fui culpado

Me tornei um cangaceiro

Porque me vi obrigado

Assassinaram meu pai

Minha mãe quase que vai

Inclusive eu coitado.

Observemos, agora, o texto de um pesquisador do cangaço, Fenelon Almeida, em seu livro “Jararaca: o cangaceiro que virou santo”, e como ele descreve Massilon, sem apontar suas fontes:

Benevides, ou Massilon Leite, natural do Rio Grande do Norte, era elemento bastante conhecido naquela Região. Suas raízes assentavam no distrito de Borges, município de União, no Ceará.

Essa informação, sem qualquer fundamento, é reproduzida em “Lampião e o estado maior do cangaço”, de Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena, também sem que sejam citadas as fontes, razão pela qual acredito ter sido colhida em Fenelon Almeida:

Suas origens (os autores estão se referindo a Antônio Massilon Leite, o Benevides) assentavam na localidade de Borges, às margens do Rio Jaguaribe, entre os municípios de Russas e Jaguaruana, no Ceará.

Os mesmos autores, na mesma obra citada, dizem um pouco mais à frente, ainda sem citar a fonte:

Viajou depois para o sul do país (comentando o final da carreira de cangaceiro de Massilon), indo parar no Rio Grande do Sul, onde ingressou na Polícia Militar, terminando por aposentar-se como oficial da polícia daquela unidade da federação, provavelmente com nome diverso do que usava nos tempos do cangaço.

Em livro a ser lançado aqui em Mossoró, talvez em Setembro próximo, mostro qual o verdadeiro fim de Massilon, apresentando prova documental de sua morte.

Um último texto colhido de pesquisadores do cangaço é extraído do livro “Lampião o Cangaceiro e o Outro”, de Fernando Portela e Cláudio Bojunga. Começo por dizer que não entendi o título. Qual seu significado? Bom, o livro é iniciado com o seguinte parágrafo:

O capitão andava descuidado. Naquele Julho de 1938 começou a confundir o poder das rezas fortes com a constante necessidade de desconfiar de tudo e de todos. Quem sabe aceitara a lenda de que seu corpo era mesmo fechado quando bastava apalpá-lo sob a roupa espessa para contar os buracos de bala. Talvez se sentisse apenas cansado e vulnerável – o olho vazado lacrimejando um isolamento de mais de vinte anos. O fato é que nos últimos tempos o Capitão andava descuidado.

O que é isso? Literatura? História? A bem da verdade não parece ser nem uma, nem outra.

Quanto ao trabalho da Academia, vejamos um texto colhido na internet, da pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco Semira Adler VAINSENCHER, cujo título é Cangaço, disponível em: , atualizado em 2009, que começa com a seguinte afirmação: “O banditismo parece ser um fenômeno universal”. Pude colher, além desse truísmo criticável, algumas outras assertivas da autora, que submeto à platéia:

a) “Bandidos são indivíduos frios, calculistas, insensíveis à violência e à morte”;



b) “O monopólio da terra e o trabalho servil, heranças das capitanias hereditárias, sempre mantiveram o empobrecimento da população e impediram o desenvolvimento do Nordeste, apesar do empenho de Joaquim Nabuco e da abolição da escravatura”;

c) “O cangaço, o fanatismo religioso e o messianismo são episódios marcantes da guerra civil nordestina: representam alternativas através da qual a população regional pode retaliar os danos sofridos, garantir um lugar no céu, alimentar o seu espírito de aventura e/ou conseguir um dinheiro fácil”;

d) “Já naquela época, o cangaceiro Jesuíno

Brilhante (vulgo Cabeleira) atacou o Recife, mas foi preso e enforcado”;

e) “Em meio a crendices e superstições, os milagres - muitas vezes, resumidos a simples conselhos de higiene ou procedimentos diante da subnutrição - atraem grandes romarias para Juazeiro, ainda mais porque os seus conselhos são gratuitos”;

f) “Vale ressaltar que um fator decisivo para o extermínio do bando de Lampião é o uso da metralhadora, que os cangaceiros tentam comprar, mas não obtêm sucesso”.

Não fiquemos, entretanto, nesse único patamar. Ousemos mais. Peguemos, por exemplo, um clássico da historiografia do cangaço, qual seja “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello, em sua segunda edição, e nos detenhamos no seu prefácio, assinado por Gilberto de Mello Kujawsky. Lá para as tantas Kujawsky afirma, ao se referir aos cangaceiros:

A dedicação integral às armas, quando levadas ao fanatismo, exige a misoginia, como garantia da invulnerabilidade do guerreiro. Na medida em que este se abandona à tentação da mulher, ou do sexo, ele “abre o corpo” e se expõe à virulência implacável do inimigo.

E prossegue:

No entanto, a analogia surpreendente e inesperada do homem do cangaço, modelado pela disciplina do sol, das armas e do ascetismo sexual, na tensão crispada e solitária do princípio masculino, essa analogia se revela é com a figura do guerreiro, tal como descrita pelo poeta-soldado japonês Yukio Mishima, no livro traduzido sob o título “Sol e Aço”. Sol e aço fazem o contexto do homem do cangaço e do samurai de Mishima.

E conclui:

A chave da analogia entre os “guerreiros do sol” e o samurai de Mishima está na radicalização unilateral do princípio masculino hermetizado em si mesmo como fonte invulnerável de energia épica, temperada pelo sol e aço.

Agora concluo eu: o prefaciador não entende da ética dos samurais, do Japão feudal, do “caminho do guerreiro”, expresso no “Haga-kuri”, da relação mística entre a aristocracia militar japonesa e o “dai-sho”, o culto da espada, típica do xintoísmo por eles professado, e, tampouco, de cangaceiros. Para a diferença ser mais claramente entendida, basta lembramos que os samurais eram aristocratas, enquanto os cangaceiros, com raras e honrosas exceções, representantes do proletariado, verdadeiros “outsiders”.

Esse tipo de “literatura”, que o próprio sertanejo chistosamente poderia definir como tendo muito osso e pouco tutano, compromete a construção de um saber rigoroso e consolida o aspecto “folclórico” do cangaceirismo. E, ao fazê-lo, por reproduzir um “modelo”, o insere no presente e no futuro, gerando dúvidas quanto à possibilidade de discutirmos os fenômenos sociais próprios do Sertão Nordestino em sua dimensão científica nas salas de aula.

Outro exemplo que é possível citar diz respeito à perspectiva marxista mecanicista encontrada em obras como “História do Cangaço”, de Maria Isaura Pereira de Queiróz. Lá para as tantas ela diz:

(...) não é possível admitir que o cangaço se configure como um movimento social.

Foi, realmente, uma resposta à miséria, o que se evidencia no fato de que desapareciam, quando a chegada das chuvas reinstalava o modo de vida habitual.

E nas conclusões da obra:

Se a falta de oportunidade de trabalho nas caatingas e fora delas pode explicar por que surgiram bandos independentes no início do século XX, perdurando por muitos anos, e igualmente por que se formaram as volantes, que eram tropas de polícia especialmente destinadas ao combate do cangaço, a mesma razão permite compreender por que, a partir de 1940, desapareceu inteiramente o cangaço independente, anulando também a necessidade de volantes que lhe dessem combates. A industrialização...

Ou seja, para a Autora o cangaço independente acabou em decorrência do surgimento da industrialização que suscitou o surgimento de mercado de trabalho...

Como superar esses obstáculos epistemológicos, que impedem um diálogo mais amplo e profundo entre o saber histórico e o conhecimento escolar, no que diz respeito ao epifenômeno do cangaço?

Como recuperar uma tradição de estudo desse Sertão que forneceu matéria-prima para a aquisição do vigor e personalidade do cinema nacional, tais quais DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL ou VIDAS SECAS, no dizer de Ariano Suassuna; que ambientou A BAGACEIRA, de José Américo de Almeida; PEDRA BONITA – CANGACEIROS, de José Lins do Rêgo; O SERTANEJO, de José de Alencar; DONA GUIDINHA DO POÇO, de Oliveira Paiva; LUZIA HOMEM, de Domingos Olympio; e OS SERTÕES, de Euclides da Cunha, ao qual o autor do ROMANCE DA PEDRA DO REINO, em ensaio acerca de SEM LEI E SEM REI, de Maximiniano Campos, um romance do cangaço, considera a maior obra surgida até agora na Literatura brasileira.

Antecipo a solução, para ser proativo, como está na moda: suscitando a crítica, ou seja, o debate, a discussão, o intercâmbio incessante de idéias. E como fazê-lo? Como criar e fortalecer meios por intermédio dos qual esse diálogo se expanda e frutifique?

Para a existência da crítica é necessário o fortalecimento das instituições de base, tal qual a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), a ANPUH-RN, o Grupo de Pesquisa em Ensino de História e Geografia, suas realizações, fóruns, congressos, encontros, painéis, seminários, cada vez mais freqüentemente e cada vez mais envolvendo a sociedade. Nesse aspecto, saúdo entusiasmado o viés deste encontro, que se consubstancia em uma discussão acerca da tensão entre o que se elabora em termos de saber no mundo lá fora e o que se elabora em termos de saber dentro dos muros das Escolas.

Fortaleçamos a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço. Queiramos sua presença na Universidade e nas Escolas, como queiramos a Universidade e as Escolas na SBEC. Queiramos, cada vez mais, diálogos com outras instituições de base, ou seja, ONGs, Associações, Fundações, tudo com vistas à construção de metas comuns. Podemos sonhar em uma transformação, à médio e longo prazo, dessas instituições de base, junto com a Universidade, em uma REDE, uma malha aglutinadora e exportadora de conhecimento específico acerca do Sertão Nordestino. O Sertão de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Patativa do Assaré, Ercílio Pinheiro, Pe. Cícero, Luis Gonzaga, Ariano Suassuna, dos Coronéis, do construtor de Paulo Afonso, do ciclo do couro, da cana-de-açúcar e do algodão, do cangaço, do misticismo, das rebeliões, dos casos de honra, do repente, dos desafios, da xilogravura, do xaxado, e assim por diante.

Talvez pareça um sonho. É possível. Se assim o é, vamos mais longe ainda. Sonhemos sempre. E sonhemos grande. Um dia quiçá encontremos, em nossas elites, e no nosso povo, a consciência da importância da nossa história, a história do Sertão, mais especificamente, do nosso Sertão nordestino, desse Sertão que Euclides da Cunha, poeta e cientista, gênio da raça, ao descrever a epifania da chegada do inverno em suas terras ásperas, nos permite compreender sua beleza trágica. Ouçam:

Mas ao entardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente.

Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras.

Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas.

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precipites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimidura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano...

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.

Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.

É uma mutação de apoteose.

Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores vermelhas, sem esperar pelas folhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encontas, as moitas floridas dos alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando-os nas frondes esfolhadas, e – dominando a revivescência geral – não já pela altura senão pelo gracioso porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irrandiantes em círculo, os galhos numerosos.

Muito obrigado, e viva o Sertão.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

UM MENDIGO DE PARIS


Um mendigo que lê

Honório de Medeiros

Em frente a um dos cinzentos prédios da Sorbonne, onde há uma torre que deve ter sido, em tempos idos, um observatório astronômico – tanto o foi que, por trás, desponta outra menor cujo topo é aquele tipo de cúpula próprio para perscrutar os céus – encontro, na Rue Granelle, sentado sobre um grosso pano cinza, costas apoiadas na parede, as pernas separadas formando ângulos agudos contra o chão e dando suporte aos braços que seguram um livro, um mendigo e, à sua frente, a esperada tigela de metal na qual repousam algumas moedas.

Um mendigo que não olha os passantes, não lhes estende as mãos súplices, não lhes dá, enfim, qualquer atenção, sequer se incomoda com o que se passa em seu entorno. Sua aparência não é andrajosa ou suja, pelo contrário. Muito embora suas roupas sejam bastante usadas, revelam pobreza, não miséria. Não é ele novo, tampouco velho – um cinqüentão, talvez, derruído pelo tempo e circunstâncias, aureolado por uma densa massa de cabelos longos caindo sobre os ombros e completamente grisalhos, barba por fazer.

Após algum tempo, resolvi chamar sua atenção. Antes, pedira que lhe fotografassem, sem que percebesse. De passagem por onde ele estava sentado, coloquei uma quantidade inusual de moedas na tigela. Recebi um olhar breve, mas intenso, e um “merci”, após o que a leitura foi imediatamente retomada. Não foi possível ver a capa do livro que tanto lhe prendia a atenção. Minhas perguntas a lhe serem feitas foram contidas pela percepção do seu alheamento.

Ao meu lado alguns poucos turistas fotografavam os prédios da Sorbonne. Tínhamos ido em busca do mais antigo restaurante de Paris, onde François Miterrand construíra, nos seus tempos de jovem, sua barricada. Lá almoçáramos, observáramos a fauna parisiense, o que sobrara da arquitetura do século XVII, os garçons a balbuciarem algumas palavras de português – homenagem aos tempos de “real” forte.

Nada, entretanto, fora tão interessante quanto aquele retrato de Paris ao vivo e à cores: um mendigo entregue à leitura.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

LISBOA

Torre de Belém

Caro amigo:

Vi seu registro da nossa viagem. Obrigado. Estamos cá pela velha Europa, onde as diferenças entre nós e eles aparecem cada vez mais sutilmente. Há uma tendência de nivelamento, a longo, longo prazo, eu diria, que se pode perceber a partir da onipresença da “worldmidia” – queira desculpar meu neologismo. Eles descem, nós subimos. É a vida..

Primeiro é bom registrar que atualmente a Europa é dos brasileiros! Eles estão em todos os lugares. Do metrô aos cafés, é impossível não ouvirmos, momento-a-momento, a língua-mãe. E, hoje, até mesmo os enfatuados garçons europeus já arriscam uma ou outra palavra em “brasileiro” – algo, antes, impossível de encontrar.

Nossa porta de entrada foi Lisboa. Tínhamos que ir, e fomos, à Torre de Belém – magnífica! – beijando o Tejo, a guardar Portugal e nos dar uma pálida idéia de suas glórias passadas. Como contraponto aos tempos de antanho, o motorista de táxi, este sempre um Mercedes da década de noventa, me disse, sombrio, quando nos conduzia ao hotel: “este é um mundo cão”.

A frase não veio solta no tempo e espaço. Estávamos a falar acerca das greves francesas. Baixo, magro, sotaque carregado, beirando os setenta, maus dentes, típico representante da melancolia portuguesa, explica: “estão acabando conosco”. “Minha aposentadoria anual de paraquedista – eu lutei em duas guerras, na linha de frente – eram cento e trinta euros anuais. Cortaram trinta.”

“Quais guerras o senhor lutou?”, pergunto. “Sim, claro, na linha de frente”, insiste, “sessenta e um, Angola; 63, Guiné-Bissau.” “Ferimentos?”, pergunto, receoso de alguma resposta brusca. “Somente na alma; e os carrego junto com algumas medalhas com as quais meus netos brincam. Não servem para nada”

“O que lhe doeu, na guerra?” Ele olha de relance para mim, e parece não se dar conta de que os outros são testemunhas atentas da conversa. “Ver, em Angola, um compatriota de chicote na mão a vigiar negros trabalhadores”. “Por que isso?”, perguntei-lhe. “Se não eles não trabalham”, me respondeu. “Compreendi, ali, que aquela não era uma guerra pela qual lutasse um homem.”

Agora é noite e já estamos no Bairro Alto, onde tudo é Fado, as ruas são estreitas, e há um clima de boemia no ar frio. Peixe – este é seu nome, o “maïtre d’honeur”, desliza pelas mesas apertadas com a elegância de uma antiga modelo a matar saudades da passarela. É o próprio espírito da Casa que nos acolhe. Serve-nos um vinho jovem do qual não nos arrependemos. Explica-nos as apresentações dos cantores de Fado. E nos confidencia: “são todos grandes divas”.

É verdade, percebo logo a seguir. Todos têm dois nomes. Nada daquela intimidade fácil do Brasil; nada de Chico, Caetano ou Roberto. Ali, desde a ainda jovem, para os padrões do Fado, e bela Ana Marta, até a crepuscular Lenita Gentil - a “grande dama” e principal atração da noite, varia os estilos: do contido, elegante, de Antônio Rocha, ao exuberante, popular, de Anita Guerreiro, mas, todos, expressões máximas de uma arte que eles manejam com rara habilidade e distanciamento, e que tento explicar aos meus companheiros, lhes dizendo que tudo isso expressa uma verdade implícita, a de que se nós não gostarmos do fado, a culpa é nossa; portanto, entendamos: ali se canta a alma de um povo, não canções quaisquer.

Nada representa tanto esse “espírito das coisas” quanto aquela a quem eu alcunhei de “a velha dama”: imperial, majestosa, de perfil forte, no qual despontava um queixo autoritário, toda de negro, ela cantava para si e para suas lembranças enquanto cantava para nós, a dominar o pequeno espaço no qual revoluteava entre ondas de um forte perfume de toalete e esgrimia seu xale com rara maestria. O acompanhamento, feito pela viola de sete cordas tocada como se fosse violão, e a guitarra portuguesa, era soberbo.

No final, uma homenagem aos brasileiros: “Ai, Mouraria”, um pedido meu, seguido de um fado de Vinicius de Moraes, e a presença da “grande dama” na nossa mesa, a aceitar, condescendente, nossas homenagens, enquanto sobre nós espargia um olhar esverdeado e uma voz rouca enfeitiçante.

domingo, 3 de outubro de 2010

PERGUNTAS DE BÁRBARA


Recentemente Bárbara, que tem 12 anos, me encaminhou algumas perguntas acerca de questões que a incomodam. Eu não soube respondê-las:

• Deus existe?

• Por que nós temos que morrer?

• O que acontece quando nós morremos?

• Qual é o sentido da vida?

• Existem seres em outros planetas?

• Qual é a essência do mal? Como e por qual razão ele acontece?

• O que é o bem maior?

• De que adianta dividir as pessoas em classes, tais como: Comunista, classe média alta, católico, se todos somos um só?

• O que faz nós sermos o que somos?

• Pelo que devemos lutar?

• Quem sou eu?

• O que nos faz pensar que somos superiores a outros seres?

• Quem criou o mundo?

• De onde vem essa ambição dos seres humanos de querer sempre mais?

• E depois?

Honório de Medeiros

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

DECLARAÇÃO DE VOTO DE HONÓRIO DE MEDEIROS

Caros amigos e amigas:

Declaro meu voto em MARINA DA SILVA para Presidente da República.

Tomei essa opção após analisar a história de vida de cada candidato,trajetória política e sua postura durante a campanha.

Além disso, obviamente, levei em consideração aquilo que considero necessário para o Brasil, bem como o caráter e personalidade dos candidatos no que diz respeito à possibilidade de cumprimento de suas promessas políticas.

Agora, convido os que pensam como eu a se engajar na luta para eleger MARINA DA SILVA: que cada um de nós consiga, até o dia da eleição, atrair pelo menos dez (10) eleitores para esse projeto, pedindo a eles que repitam a mesma ação de conseguir, cada um, outros dez (10) eleitores, e assim por diante.

Observo a todos que não sou filiado a qualquer partido político, tampouco ligado politicamente a quem quer que seja.

Apenas voto e defendo a candidatura de MARINA DA SILVA.

Muito obrigado,

HONÓRIO DE MEDEIROS

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"MASSILON - Nas Veredas do Cangaço"


LIVRO LANÇADO EM CRATO, NO CEARÁ, DIA 18 DE AGOSTO DE 2010

À DISPOSIÇÃO NAS LIVRARIAS SICILIANO E POTYLIVROS

COMPRAS DIRETAS COM O AUTOR POR INTERMÉDIO DO E-MAIL fhmf@digi.com.br

LEIA, NO LIVRO:

- A saga do cangaceiro Massilon (nascimento, vida e morte);

- Os coronéis e os mistérios do ataque de Lampião a Mossoró;

- Diário de Viagem;

- Outros temas do cangaço.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

ATÉ LOGO MAIS!

Amigos:

Este blog vai dar um tempo.

Preciso terminar um livro - ele tem que estar pronto para ser lançado em Agosto, no Crato, no II Cariri Cangaço.

Depois, veremos.

Muito obrigado.

Honório de Medeiros

ESQUERDA E DIREITA

abrobrinhaspsicodelicas.blogspot.com

Ronda por aí a idéia de que “esquerda” e “direita”, no Brasil, e mesmo no mundo, não mais seriam conceitos distintos um do outro. Principalmente no que diz respeito à economia. Nada tão distante da realidade, mas é fácil entender a razão – hoje, graças a um colossal, persistente e antigo processo midiático, o capitalismo, enquanto visão do mundo se tornou praticamente hegemônico. Isso mesmo: quase não há ninguém que sustente, com alguma consistência, um ideário de esquerda.


Tal se deve a vários fatores, mas dois são fundamentais e ambos estão entrelaçados pelo mesmo núcleo. Dizem respeito à queda do “Muro de Berlim” e, no Brasil, ao aviltamento do PT. O que os une é o fato de ambos, tanto a URSS quanto o PT, jamais terem sido de esquerda. Quando muito abrigavam, por falta de opção, pessoas de esquerda.



A esquerda é, ontologicamente, fulcrada no valor “solidariedade”, enquanto a direito se firma na competição. Subjacente à noção de que somos essencialmente competitivos, não solidários, está o corolário do lucro e da ambição. Para a esquerda, devemos solidarizar o lucro; para a direita devemos e podemos lucrar com a solidariedade.



A esquerda é, ontologicamente, anticapitalista. Isso significa dizer que, para ela, os meios de produção devem ser socializados. Ou seja, não deve haver muito na mão de poucos, mas, sim, um pouco na mão de todos no que diz respeito à produção e ao gozo do lucro. Ao invés da produção de capital financeiro, o socialismo quer a produção do capital social. Nesse sentido, tanto faz opor-se ao capitalismo de Estado intervencionista quanto ao capitalismo de Estado Mínimo – este uma verdadeira utopia retórica criada nos laboratórios dos economistas à soldo do grande capital para engabelar os inocentes úteis e os inúteis, igualmente.


A esquerda é, ontologicamente, anti-autoritária. Ela denuncia, posiciona-se contra, rebela-se, e não aceita qualquer imposição do Estado sobre a Sociedade à reboque de uma miragem tal qual um futuro idealizado, como nos apresentam os tecnopolíticos de plantão que pensam serem possuidores dos remédios milagrosos necessários para catapultar este ou aquele país à redenção sócio-econômica destruindo, pela base, as conquistas sociais dos últimos anos. Por ser anti-autoritária, a esquerda tem um compromisso imediato e direto com a Sociedade, nunca com o Estado, este um instrumento de opressão cujos fundamentos ontológicos, sob os quais repousa sua suposta legitimidade, são flatus vocis.


A verdade é que do ponto de vista da propaganda o capitalismo, ou seja, a direita, apregoa que ganhou a guerra. Não mesmo. Quando menos se espera a Sociedade resiste, e o colossal processo de exploração através do qual cada dia mais um número maior tem menos, fica exposto a olho nu. Neste momento mesmo alguns, até então desavisados, mas puros de intenção, percebem onde estão metidos e apontam as fragilidades e inconsistências de um modelo que se firma no que pode arrancar, enquanto mais-valia, do grosso da população. São os arautos de uma nova era, a da aldeia global da qual nos falou Marshall McLuhan, onde qualquer informação é, sob todos os ângulos que se possam imaginar, do domínio de todos.

EM CAJAZEIRAS, O CINZA


“Um radialista”. Assim, secamente, Seu Antônio Gomes me identificou o morto cujo enterro passava pela esquina onde estávamos postados em Cajazeiras, Paraíba. Até que o enterro passasse não lhe dera atenção. Observara, fascinado, aquela fila coleante a se arrastar molemente ocupando todos os espaços da rua. Era sempre assim, fosse enterro, manifestação, passeata política, desfile: um fluxo constituído por unidades individuais aparentemente diferentes, mas idênticas em essência. O ser humano. Esse compósito de vilania e santidade arrastando-se em grupo do nada para o nada.

Seu Antônio, como eu, estava de braços cruzados olhando o enterro. Seu olhar era sardônico. Um olhar que combinava bem com o rosto magro, de feições indefinidas, comuns. Deveria ter sessenta e poucos anos. Cabelos grisalhos, abundantes, cortados curtos, displicentemente penteados para trás. Ao observá-lo tive a sensação de que ele parecia um elemento estranho à paisagem. Não combinava com Cajazeiras, uma cidade que, sendo grande para os padrões do Sertão, disso nada extraíra de bom, assim como não guardara o que de bom havia de quando era pequena. Era como uma questão de foco. Ele parecia deslocado não por que estivesse no centro da cidade, em pleno comércio, mas, sim, por que estava ali como se fosse um estrangeiro em pleno Sertão. A roupa não dizia nada, nem os sapatos, nem qualquer adereço, até por que não os havia, excetuando o relógio que, como tudo nele, também era muito discreto.

“O senhor não é daqui.” “Sou e não sou. Nasci aqui há uns sessenta e tantos anos atrás, e voltei há uns poucos dias para vender uma terra que me coube por herança.” E me perguntou o que eu fazia em Cajazeiras. Falei-lhe de minha pesquisa acerca de Massilon e que acabara de voltar de Missão Velha, no Ceará, terra onde o Cel. Isaias Arruda “reinara” na década de 20. Agora já estávamos sentados numa lanchonete que colocara aquelas mesas e cadeiras de metal com imensas logomarcas de cerveja na calçada. Mesas e cadeiras sujas, evidentemente. Como não era possível tomar um café respeitável, pedíramos água mineral. “Ah, o cangaço”, disse, e perguntou: “descobriu algo em Missão Velha?”. Sim, eu havia descoberto, mas não queria falar acerca de cangaço. Será que eu conseguiria transmitir oralmente, para aquele estranho, um homem educado, percebia-se facilmente isso, minhas impressões de viagem? Será que eu conseguiria prender sua atenção durante um tempo suficiente para dizer-lhe uma crônica elaborada com fragmentos de imagens e palavras? O que significaria tudo isso quando cada um fosse para seu lado e um tempo razoável tivesse passado desde então?

O cariri é verde, muito verde para ser Sertão, comecei. E Missão Velha parece uma cidadezinha perdida no tempo, uma Macondo. Lá, quando chegamos, fomos direto para o coração da cidade. Estacionamos. Seria dia de feira? Não, é que o pagamento da “esmola oficial do governo federal” era naquele dia. As feiras, como eram antigamente, não existem mais. Não há mais cantadores de viola, coquistas, literatura de cordel, contadores de “causos”, vendedores de drogas milagrosas, rezadeiras, adivinhos, mágicos, circos mambembes... Há tipos estranhos, é impossível não haver: uma mulher de mais de sessenta anos, horrorosamente maquiada, vestida como uma adolescente, a carne sobrando por sobre a barra da minissaia, a abraçar freneticamente uma comadre a quem aparentemente não via há muito tempo e lhe responder em cima da bucha quando ela dissera “mulher, você já tem muitos janeiros, né?; “tenho, mas você não fica atrás não, não é criatura?” E virando-se para o lado, tangeu o marido que empurrava um carrinho de sorvete caseiro: “vai, vai, que aqui é conversa de mulher”. O sorveteiro obedeceu, mas como vingança, ao passar por mim que observava deliciado a cena, levou a mão ao lado da cabeça, e fez, com o indicador apontado para si e desenhando um círculo, o comentário final: “é tudo doida”.

DA ARTE DE ROMPER UM GRANDE AMOR

clube.atrativa.com.br

Muito tempo depois a encontrei em um café, contemplando o mundo lá fora com aqueles seus olhos azuis maravilhosos através das volutas da fumaça do cigarro. Após os cumprimentos de praxe, não resisti e lhe perguntei como sobrevivera ao fim do seu casamento, tão minuciosamente condenado ao fracasso, segundo sua própria avaliação, quando nos vimos pela última vez. Ela sorriu, espreguiçou-se como uma gata, tomou lentamente um gole de café e me perguntou se eu queria saber a história toda ou somente o desfecho, com algumas pinceladas óbvias como arremate.

Antes de lhe dizer que não dispensava os detalhes lembrei-me que parte do seu fascínio era a administração do silêncio, e este nos induzia a supor regiões misteriosas do seu pensamento onde a fantasia bordava, junto com a realidade, situações fascinantes para quem soubesse ousar e tivesse coragem de receber. Já naquele tempo ela reinava impune, a tripudiar das vãs tentativas dos conquistadores ávidos e tímidos admiradores, sem que as recusas constantes diminuíssem a admiração que granjeava. Nela, nada se eximia de seduzir, mas mesmo assim um dia sucumbira a uma paixão inesperada e violenta, que a retirara do circuito das festas e badalações.

Desde o começo nós, seus amigos, percebêramos que não daria certo. Sutilmente sua liberdade fora sendo restringida – logo a dela, tão essencial a si. Aos poucos, milímetro por milímetro, fora cedendo sem notar, encantada por uma proposta enleadora de construção do futuro a dois, mão a mão, através da imagem de uma ponte afetiva que terminaria no infinito. Embora apaixonada foi através da persuasiva magia da visualização de um amor único, daqueles que nutrem uma alma só em dois corpos distintos, que ocorrera a derrubada das suas últimas resistências.

Mas finalmente despertou e a ânsia de viver livre, solta, cobrou sua fatura. Passou a se sentir sufocada e a perceber as invisíveis amarras que lhe prendiam o vôo. Queria ir embora, queria sumir, queria desaparecer, mas havia um obstáculo, um sério senão a impedir sua liberdade: o orgulho desmedido, o egocentrismo concentrado, a incontida auto-imagem que seu companheiro fazia de si mesmo. Não era possível que o relacionamento fosse desfeito sem que a explicação a ser dada para isso preservasse sua posição social e o alto conceito que fazia de si mesmo.

“Eu não podia dizer-lhe que ia embora por que o amor acabara; seu orgulho não aceitaria ser trocado por nada, por coisa alguma. Ele não admitiria nunca que não fora capaz de segurar-me e apaixonada, que eu nada mais sentia exceto um afeto meio dependente do alívio do afastamento definitivo. Tive, então, que criar uma paixão inexistente por outro e, pior, por alguém abaixo da escala de valores que ele prezava. Assim, libertei-me, e ele pode dizer por aí, quando questionado, que eu havia sido uma aposta perdida por que mal avaliada, incapaz de perceber a qualidade do sentimento que despertara, alçada a um nível incompatível com minha ausência de sofisticação e, assim, depois, tinha sido levada de volta, através de um "qualquer", ao mundo ao qual realmente pertencia”.